domingo, 9 de janeiro de 2022

As antíteses metafísicas de Althusser

 
por Carlos Nelson Coutinho

Essa digressão permite-nos melhor compreender as limitações essenciais da “leitura” althusseriana (análogas, em sua unilateralidade, às interpretações “antropologizantes”). Além de recusar a quase totalidade dos textos marxianos, Althusser interpreta de modo arbitrário os próprios textos em que considera estar implícita a filosofia marxista. O seu método de “leitura” — chamado de “sintomal” e cujas relações com a “arqueologia” de Foucault teremos ocasião de indicar mais detalhadamente — representa objetivamente uma deformação e uma manipulação dos textos marxianos. O conceito que, segundo Althusser, seria a chave de O capital e da teoria marxista da história é aquele da “eficácia da estrutura sobre seus efeitos”[1]. Em sua opinião, esse conceito — propriamente “científico” — superaria as noções “ideológicas” (ou “empíricas”) de totalidade concreta, do real como síntese de múltiplas determinações etc. Estabeleceria, ao contrário, que o real é constituído por um conjunto de “dados” ou “elementos” combinados por uma estrutura invisível, que só se manifesta em seus efeitos. (Essa estrutura, de resto, como veremos a seguir, é um produto do pensamento, não um fato ontológico real.) Mas tal conceito não aparece, como seria de esperar, em O capital. Em seu lugar, vemos Marx usar precisamente os conceitos e categorias “hegelianos”, os de totalidade concreta, de unidade dos contrários etc. Esse fato, contudo, não embaraça Althusser: por meio da “leitura sintomal”, ele estabelece que o “hegelianismo” é uma simples “linguagem”, sem relação com a essência da “prática teórica” de Marx. Mas como seria possível estabelecer que essa “linguagem” explícita (e não o suposto conceito oculto) é o inessencial? A resposta de Althusser é bastante “sintomática”: “Uma leitura filosófica de O capital só é possível como a aplicação do próprio objeto de nossa pesquisa, a filosofia de Marx”[2], isto é, daquilo que Althusser acredita ser a filosofia de Marx. Caímos assim no seguinte círculo vicioso: a transformação de Marx num neopositivista ou num estruturalista só pode ser obtida a priori, independentemente de qualquer texto, afirma-se que a filosofia marxista é similar a essas duas correntes. A “leitura sintomal”, portanto, tem a única função real de exemplificar essa similaridade prévia e arbitrariamente estabelecida.

Tomemos, como exemplo, uma das “leituras” de Althusser, escolhida na medida em que a deformação que lhe é subjacente está na base da dissolução althusseriana da ontologia e, consequentemente, de seu antimaterialismo. Althusser pretende provar que, em Marx, existe uma rejeição da “confusão hegeliana que identifica o objeto real e o objeto do conhecimento, o processo real e o processo do conhecimento”.[3] Com essa rejeição, Marx abandonaria qualquer atitude “empirista”, o que em Althusser se confunde não apenas com a objetividade da razão (a realidade submetida a um conjunto de leis racionais), mas até mesmo com a teoria materialista segundo a qual o conhecimento é um reflexo dessa legalidade ontológica. A frase de Marx citada por Althusser em defesa de sua “leitura” é a seguinte:

Hegel caiu na ilusão de conceber o real (das Reale) como o resultado do pensamento, envolvendo-se em si mesmo, aprofundando-se em si mesmo, colocando-se em em movimento por si mesmo, quando o método que permite a elevação do abstrato ao concreto não é nada mais do que o modo (die Art) através do qual o pensamento se apropria do concreto e o reproduz (reproduzieren) sob a forma de um concreto espiritual (geistig Konkret).[4]

A partir desse trecho marxiano, conclui Althusser:

Marx defende a distinção entre o objeto real (o concreto-real, a totalidade real) (...) e o objeto do conhecimento, produto do pensamento, que o produz em si mesmo como concreto do pensamento, como totalidade do pensamento, isto é, como um objeto do pensamento, absolutamente distinto do objeto-real, do concreto real.[5]

A “interpretação” althusseriana, paradoxalmente, substitui a crítica materialista de Marx por uma nova versão do idealismo criticado. No texto em questão, Marx não põe em discussão a tese hegeliana da objetividade da razão, mas sim a sua “ilusão de conceber o real como produto do pensamento”, ou em outras palavras, a identificação idealista que Hegel pratica entre realidade e a ideia. A essa ilusão idealista, Marx contrapõe — limpidamente — a concepção materialista do reflexo: o pensamento reproduz uma realidade cuja existência e cujas leis independem desse mesmo pensamento. É interessante sublinhar a totalidade da frase anterior, ou seja, o fato de que o pensamento reproduz o sistema de leis ontológicas, exteriores ao pensamento; tais leis não são, como pensa Althusser, uma criação do sujeito, da “prática teórica” ou do “modo de produção do pensamento”. Pois Marx fala numa “apropriação do concreto” e sabemos que, para ele (como para Hegel), “o concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, ou seja, unidade na diversidade”[6] Ora, quem diz “síntese” ou “unidade na diversidade” diz também totalidade, ou dialética do universal, particular e singular; e quem diz “determinação” diz igualmente sistema de leis e conexões, racionalidade objetiva etc. Assim, segundo Marx, o pensamento reproduz a própria rede das categorias ontológicas imanentes ao real, reproduz a essência (a universalidade) que existe no próprio real, independentemente do pensamento.

O universal, portanto, é um produto da própria realidade e não, como supõe Althusser, um resultado do sujeito, uma criação do pensamento científico. Essa posição de Althusser corresponde, decerto, à tese estruturalista geral, segundo a qual realidade compõe-se de “dados” singulares, ao passo que a universalidade surge apenas no nível da “estrutura”, ou seja, do sistema de regras mentais formalizadas. José Arthur Giannotti — em seu excelente ensaio sobre Althusser e comentando precisamente a interpretação althusseriana do trecho em discussão — observa:

Contra Althusser, sustentamos que tal espelhamento [ou reprodução] só se torna possível porque ocorre na própria realidade um processo de constituição categorial, contraposto ao vir a ser do fenômeno, processo que configura a essência de um modo de produção determinado e, por conseguinte, de uma forma de sociabilidade. A essência faz parte de cada momento do concreto, sem contudo esgotar-lhe todas as dimensões, de sorte que o discurso somente se tornaria científico quando reproduzisse a ordem dessa constituição ontológica (...). Ao percorrer o caminho do abstrato ao concreto, estamos formulando um discurso que reproduz uma síntese essencial que se dá além da prática teórica.[7]

Tomemos um exemplo concreto. Analisando a mercadoria, Marx mostra — em O capital — que no mundo antigo ou no feudalismo ocorreu produção de mercadorias, mas como fatos singulares ou particulares; tão somente no interior do capitalismo a produção de mercadorias torna-se o objetivo universal do sistema econômico. O pensamento, assim, deve reproduzir essa universalização que ocorre na própria realidade, independentemente, da ciência que a reproduz.

Portanto, nas palavras citadas de Marx, bem como em todo o seu pensamento, não há de modo algum a afirmação — extraída por Althusser — de uma “distinção absoluta” entre o objeto real e o objeto do conhecimento. Contra o idealismo, Marx certamente afirma a distinção relativa entre pensamento e ser; mas trata-se de uma distinção permanentemente eliminada pela práxis, a qual estabelece uma crescente unidade (que jamais se transforma em identidade) entre os dois momentos, precisamente na medida em que se verifica a reprodução (ou apropriação) do ser pelo pensamento. Portanto, nem identidade absoluta, como suponha Hegel, nem distinção igualmente absoluta, como supõe Althusser, mas unidade na diversidade, um processo dialético e histórico de crescente apropriação do real pelo pensamento e pela práxis dos homens. O objeto do pensamento, portanto, é o próprio objeto real: essa, de resto, é uma tese básica do materialismo.

Somente quando, por meio de uma abstração, eliminamos a dimensão ontológica da racionalidade — ou seja, quando operamos com o intelecto e não com a razão — é que podemos falar numa “suspensão” do real como objeto de pensamento. É o caso, por exemplo, da lógica formal, quando o pensamento toma como objeto suas próprias regras imanentes; precisamente por isso a lógica formal é tautológica, ou seja, nada afirma sobre a estrutura ontológica da realidade. Trata-se, assim, de uma abstração, de um procedimento parcial e unilateral, que deve ser reconduzido à totalidade concreta da racionalidade objetiva, subordinando-se à ontologia. Transformar essa abstração num fetiche, limitar a racionalidade à aplicação dessas regras lógico-formais (ao intelecto), é exatamente o ponto de partida do profundo agnosticismo da “miséria da razão”. Transformação e limitação que são absolutamente estranhas ao pensamento profundamente ontológico e dialético-materialista de Marx.

Assim, a arbitrária “leitura” de Althusser esconde um sério contrabando ideológico: ele substitui a ontologia e a gnosiologia materialistas do marxismo por uma nova versão da epistemologia neopositivista-estruturalista, colocando no lugar da razão dialética um fetiche do intelecto manipulador. A realidade objetiva perde a sua prioridade ontológica e epistemológica, convertendo-se numa simples matéria-prima a ser manipulada por um pensamento formalizado. Ou, mais precisamente, desaparece até mesmo como matéria-prima, já que — segundo Althusser — os “dados” do conhecimento seriam constituídos por conceitos derivados de uma outra “prática teórica”, ou do terreno ideológico etc. O conhecimento não iria do real ao conceito, mas de Generalidades I (ou seja, de conceitos “ideológicos”) a Generalidades III (conceitos científicos), por meio da aplicação de Generalidades II (regras formais ou método).[8] Vejamos como Althusser expõe essa sua clara rejeição da ontologia e do materialismo:

O conhecimento, trabalhando sobre seu “objeto”, não trabalha sobre o objeto real, mas sobre sua própria matéria-prima, que constitui, no sentido rigoroso do termo, o seu “objeto” (de conhecimento), o qual, desde as formas mais rudimentares do conhecimento, é distinto do objeto real.[9]
 
E, ainda mais radicalmente: “É perfeitamente legítimo dizer que a produção do conhecimento, que é o específico da prática teórica, constitui um processo que se passa inteiramente no pensamento”.[10] A realidade objetiva é assim descartada como “pseudoproblema metafísico”; qualquer tentativa de expressá-la conceitualmente converte-se em “empirismo”, ou seja, num procedimento ideológico que deve ser rejeitado. Com Althusser, assim, a “miséria da razão” penetrou no interior do marxismo contemporâneo.

As categorias de Althusser, por outro lado, vão paulatinamente revelando sua natureza estruturalista. Ao definir o “modo de produção do pensamento”, Althusser deixa claro que — como Lévi-Strauss ou Foucault — parte de uma fetichização do intelecto manipulador.

Ele [o modo de produção do pensamento] é constituído por uma estrutura que combina o tipo de objeto (matéria-prima) sobre o qual trabalha, os meios de produção teórica de que dispõe (...) e as relações históricas (...). Esse sistema de produção teórica, sistema material [?] tanto quanto “espiritual”, cuja prática é fundada e articulada sobre as práticas econômicas, políticas e ideológicas existentes — que lhe fornecem direta ou indiretamente o essencial de sua “matéria-prima” — possui uma realidade objetiva determinada. É essa realidade determinada que define os papéis e as funções do “pensamento" dos indivíduos singulares, que podem “pensar” somente os “problemas” já colocados ou que possam ser colocados; que coloca em operação, portanto, tal como a estrutura de um modo de produção econômica coloca em produção a força de trabalho dos produtores imediatos, mas de um modo que lhe é próprio, sua “força de pensamento” (...). O “pensamento” é um sistema real próprio.[11]
 
A realidade objetiva (econômica e política) como “matéria-prima”: o pensamento como “estrutura” que combina dados segundo regras formais (“meios de produção teórica”); a transformação dessa estrutura mental em algo objetivo, material, não apenas superior aos homens mas capaz de determinar aquilo que eles podem “pensar”: todos esses conceitos não foram encontrados por Althusser em Marx, mas em Lévi-Strauss e, particularmente, em Foucault. Esse novo fetiche do intelecto manipulador não deixa de ser a expressão de um mito filosófico tão somente porque Althusser — através de abstratas analogias verbais — define seus elementos com os nomes utilizados por Marx em suas análises econômicas. As “estruturas inconscientes”, a “episteme” e o “modo de produção do pensamento” são três nomes diversos para definir um mesmo objeto, resultante de um similar empobrecimento da razão, da equivocada identificação entre intelecto manipulador e racionalidade científica. Ao transformar esse intelecto fetichizado em algo objetivo, Althusser — como Lévi-Strauss ou Foucault — realiza ainda aquele movimento que designamos anteriormente como passagem do epistemologismo neopositivista ao pseudo-ontologismo do estruturalismo.

E, paradoxalmente, Althusser não terá condições de estabelecer um critério objetivo, materialista e dialético, para distinguir entre ciência e ideologia, entre verdadeira e falsa consciência. (Dizemos paradoxalmente porque, como vimos, essa distinção é essencial no programa althusseriano.) O estabelecimento desse critério é uma tarefa fundamental do autêntico marxismo, que, como igualmente vimos, não se limita a estabelecer a gênese social de um pensamento, mas também determina sua objetividade. O erro de Althusser, portanto não consiste em insistir na distinção, dissolvida no historicismo subjetivista, mas na base teórica sobre a qual a coloca. Para o materialismo dialético, cuja gnosiologia se apoia na teoria do reflexo, o critério de distinção reside na relação do pensamento com a realidade: o conhecimento humano é tanto mais científico quanto mais se aproxima de uma reprodução ampla e exata da “coisa em si”, de um modo desantropomorfizador, isto é, sem “acréscimos estranhos” do sujeito no objeto a conhecer (Engels). Ora, ao distinguir de modo absoluto conhecimento e realidade, ao transferir a racionalidade do ser objetivo para as “combinações estruturais” do “modo de produção do pensamento”, Althusser não pode aceitar esse critério materialista básico.
 
Por outro lado, sua concepção do real como simples matéria-prima do pensamento, como conjunto de “dados” singulares que recebem sua universalidade conceitual da prática científica, impede-lhe uma correta determinação das categorias ontológicas que a ciência deve reproduzir. Com efeito, o real — longe de se confundir com um coleção de “dados” singulares — apresenta-se como uma totalidade hierárquica, objetiva e dialética, de níveis e momentos. Se não se resume à pura manipulação, o conhecimento científico deve apreender essa hierarquia, ou seja, deve atingir a essência que se oculta por trás do fenômeno. Essa concepção rica e explicitada do real é um dos muitos legados da dialética hegeliana à filosofia marxista. Lukács observa:

O estabelecimento dessa gradação do ser (Sein, Dasein, Wesen, Existenz, Realität, Wirklichkeit) representa uma das maiores descobertas da lógica hegeliana. Sublinhemos, entretanto, que não se trata de uma hierarquia fria e rígida, como a dos neoplatônicos, mas de uma unidade dialética, isto é, contraditória, que relativiza o ser e o não-ser. A essência é dotada de uma existência mais profunda do que o fenômeno imediato, que é apenas um dos seus elementos constitutivos, enquanto a essência é precisamente a síntese, a unidade desses elementos.[12]
 
Se o pensamento respeita a objetividade dessa hierarquia, suas proporções e sua dialética concreta, estamos diante da ciência; se a deforma, se toma o imediato pela essência, a possibilidade abstrata pela concreta etc., temos a ideologia. Althusser, como se sabe, recusa essa concepção hegeliano-marxista da objetividade, designando-a como “empirismo”, como manifestação “ideológica”.
 
Assim, no lugar do conceito materialista de verdade objetiva (em sua dialética de absoluto e relativo), Althusser coloca a noção neopositivista de “validade”. Com isso, abandona a adequação dialética entre “coisa em si” e conceito, em favor de uma coerência “imanente” de natureza formalista. O marxismo, ademais, acredita que a possibilidade de verificar aquela adequação é dada pela prática; não temos aqui nenhum “pragmatismo”, como supõe Althusser, pois não se afirma que o pensamento é verdadeiro porque útil, mas sim que é útil por ser verdadeiro. Todavia, recusando como “ideológico” mais esse conceito marxista, Althusser substitui o critério da prática real por uma “prática” puramente imanente. Como sempre, conserva a terminologia marxista, mas substitui o conteúdo marxista por posições claramente neopositivistas e estruturalistas. Diz ele:

Falar do critério da prática em matéria de teoria recebe então o seu pleno sentido: pois a prática teórica é em si mesma seu próprio critério, contém nela mesma protocolos definidos de validação da qualidade do seu produto, isto é, os critérios puramente interiores à prática de demonstração matemática, pelo critério da prática matemática, isto é, pelas formas requeridas pela cientificidade matemática existente. Podemos dizer o mesmo dos resultados de qualquer ciência (...). Podemos dizer o mesmo da ciência que mais nos interessa: o materialismo histórico.[13]
 
A identificação entre matemática e ciência em geral, inclusive a ciência da história, é bastante sintomática. A matemática é uma variedade — altamente complexa — da lógica formal, ou seja, é conjunto de axiomas puramente formais, tautológicos. Quando digo 2 mais 2, já estou implicitamente dizendo 4. Por isso, torna-se possível utilizar na matemática, isto é, em relação à aplicação das categorias matemáticas à análise da realidade física objetiva; nesse caso, ressurge o critério da verdade — correspondência entre o real e o conceito — estabelecido por meio de um “experimento”, ou seja, de uma prática exterior ao sistema conceitual da ciência. (Esse método materialista, não empirista, foi aplicado à física matemática a partir de Galileu.) Ao realizar  aquela identificação, portanto, Althusser evidencia que seu conceito de “ciência” é integralmente formalista: a ciência não reproduziria a racionalidade objetiva, mas sistematizaria regras formais capazes de manipular “dados” fetichizados. Em outras palavras, Althusser identifica ciência com intelecto, abandonando inteiramente as categorias e os métodos da razão dialética. Para parodiarmos Lenin, poderíamos dizer que, entre a epistemologia de Althusser e a epistemologia neopositivista e estruturalista, existe a mesma diferença que há entre um diabo vermelho e um diabo amarelo.

Por outro lado, a rígida aplicação formalista da distinção entre ciência e ideologia, em Althusser, faz com que tal distinção perca qualquer flexibilidade dialética e converta-se num metafísico “tudo ou nada”. Também aqui estamos diante de um procedimento intelectivo, não de um procedimento dialético-racional; a categoria da descontinuidade absoluta (com sua necessária consequência, a homogeneidade também absoluta) substitui as mediações dialéticas, isto é, a unidade dos contrários, a transformação da quantidade em qualidade etc. Em Althusser, como em Foucault, tertium non datur [terceiro excluído]. A é igual a A e B é igual a B, com a necessária consequência de que A é radicalmente distinto de B. Henri Lefebvre percebeu corretamente essa substituição da razão dialética pelo intelecto formal:

O funcionamento de um tal pensamento se traduz por um dilema perpétuo, por um incessante “tudo ou nada”. O jovem Marx já é todo o Marx? Seguramente que não. Então ele não é nada (...). A excessiva fluidez das transições mal analisadas e das mediações mal apreendidas — que se eliminam por hipótese — é substituída por perguntas pedindo respostas com um sim ou com um não. Procedimento conhecido, que decorre de uma ideologia, aquela que reduz os “objetos” do conhecimento a um número finito de funções, de unidades discretas, de combinações... [O rigor althusseriano] reproduz assim a produção do objeto técnico: desmontável e remontável, dependendo de uma dupla análise (funcional e estrutural), mas de um único tipo de inteligibilidade: o sistema. A transição — que era considerada outrora como detentora do conteúdo mais rico e do sentido — torna-se suspeita. É substituída pela separação. Acentuam-se as descontinuidades até se obterem cesuras, epistemológicas e teóricas.[14]
 
O intelecto manipulador, assim, substitui a dialética de continuidade e descontinuidade (e suas mediações) por uma sucessão metafísica de sínteses formalistas e pseudo-homogêneas. Se o conhecimento não é uma reprodução da realidade objetiva, num processo de crescente aproximação, mas o produto de uma estrutura combinatória fetichizada, não se pode escapar a um empobrecimento: a substituição do cinema pela lanterna mágica. Também aqui, portanto, Althusser e Foucault assumem posições rigorosamente idênticas. O método althusseriano, que opera por meio de cortes, não pode compreender, por exemplo, a evolução do pensamento marxiano como uma explicitação e concretização de verdades inicialmente formuladas num nível abstrato; as “problemáticas” do jovem e do velho Marx seriam absolutamente distintas, cada uma formando uma unidade homogênea, a primeira inteiramente ideológica e a segunda inteiramente científica. O mesmo esquema aplica-se à crítica marxiana da filosofia e da economia burguesa. Marx não teria aprofundado o conhecimento do real contido nelas, isto é, eliminando alguns elementos ideológicos implícitos nas categorias clássicas e se aproximado ainda mais da essência da realidade; teria, ao contrário, operado uma ruptura radical, uma “revolução teórica”, introduzindo ex nihilo uma problemática e um objeto inteiramente novos. Essa posição não é apenas irracionalista, na medida em que deixa fora da ciência o problema das transições e das passagens; é ainda bastante próxima das concepções estalinistas-zdhanovistas, que viam no marxismo algo “radicalmente novo”. Portanto, não é casual que Althusser considere um “progresso teórico” a eliminação praticada por Stalin — em seu tristemente célebre Sobre o materialismo histórico e o materialismo dialético — da categoria hegeliana e dialética da “negação da negação”.[15]
 
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Notas:
[1] L. Althusser, Lire le capital. Paris, Maspero, 1967, v. 1, p. 33.
[2] Ibid., p. 40. O grifo é meu.
[3] Ibid., p.49.
[4] Ibid. O texto de Marx, retirado da “Introdução” de 1857, está em Fondements de la critique de l'économie politique (Gründrisse), Paris, Anthropos, 1967, v. 1, p. 30.
[5] L. Althusser, Lire le capital, op. cit., v. 1, p. 49-50.
[6] K. Marx, Fondements, op. cit., p. 30.
[7] J. A. Giannotti. "Contra Althusser". In: Teoria e Prática. Nº 3, São Paulo, 1968, p. 70.
[8] L. Althusser, Pour Marx. Paris, Maspero, 1966, v. 1, p. 187 ss.
[9] L. Althusser, Lire le capital, op. cit., v. 1, p. 53. Grifos meus.
[10] Ibid., p. 51. Grifo meu.
[11] Ibid., p. 50-51. Grifo meu.
[12] G. Lukács, Existencialismo ou marxismo?. São Paulo, Senzala, 1967, p. 230-231.
[13] L. Althusser, Lire le capital, op. cit., v. 1, p. 75.
[14] H. Lefebvre, “Sobre uma interpretação do marxismo: Louis Althusser”. In: H. Lefebvre, L. Goldmann e R. I. Makarius, Debate sobre o estruturalismo. São Paulo, Documentos, 1968, p. 90-91.
[15] L. Althusser, Pour Marx, op. cit., v. 1, p. 205.
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COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 200-212.
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