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por István Mészáros
I
Inevitavelmente, então, a “ciência proletária” de Marx, conscientemente oposta à “ciência burguesa comum”[1] de
Proudhon e seus seguidores — ou, neste ponto, a qualquer outro que
imaginasse que a teoria social científica, como “ciência” pura e
simples, pudesse ser separada e artificialmente contraposta à ideologia —, representou a unidade dialética
das aquisições teóricas e das determinações de valor que era possível
nas condições sócio-históricos dadas. Marx tratava com sarcasmo a
postura pseudocientífica dos “representantes da ʽjovem Françaʼ (não trabalhadores)” que rejeitavam sumariamente as visões de seus oponentes
como “preconceitos antiquados”, esperando a salvação com uma arrogância
intelectual característica, da gradual concretização de uma conformidade
global com seu “stirnerismo proudhonizado”.[2] E zombou de sua posição dizendo que eles se comportavam como se, no meio tempo,
a
história vá parar em todos os outros países e todo o mundo espere até
que os franceses estejam prontos para uma revolução social. Eles então
realizarão a experiência diante de nossos olhos, e o resto do mundo,
arrastado pela força de seu exemplo, fará disso, todo aquele que
complica a questão “social” com as “superstições” do mundo é um “reacionário”.[3]
Marx,
portanto, não vê qualquer utilidade para uma ideia de ciência que
pudesse ser separada, ainda que por um momento, de um compromisso social
praticamente viável.
Neste
sentido, a enextricável unidade da ciência e da ideologia na obra de
Marx, longe de ser um obstáculo ao aprofundamento teórico, constituiu
sua motivação pessoal, sua justificação e sua importância prática. Além
disso, quanto à metodologia, o reconhecimento explícito (e aceitação
consciente) das inevitáveis determinações ideológicas atuantes na
constituição de qualquer síntese teórica representativa permitia a Marx, por um lado, aprender criticamente o verdadeira caráter e a estrutura interna das concepções do passado; e, por outro, lhe possibilitava assumir uma posição incomparavelmente mais autocrítica em relação a seu próprio trabalho — explicado dentro e em relação a seu ambiente social específico — do que qualquer outro antes dele. Na verdade, elevou a autocrítica ao status de
princípio metodológico fundamental precisamente em virtude de seu
papel-chave, tanto para o aprofundamento teórico quanto para
possibilitar ao movimento social do proletariado superar as inevitáveis
contradições e as falhas de sua realização prática.
Visto que a opção de Marx por uma alternativa específica — o princípio orientador da visão de mundo e da estratégia por ele defendida — rejeitava, em razão de suas implicações potencialmente desmobilizadoras, a ascendência global
do capital, buscando aberturas radicais em uma direção decididamente
oposta a tais perspectivas, sua teoria representava, é claro, um “atalho” em direção a um estado da sociedade que ainda hoje está longe
de se realizar.
Entretanto, reconhecer isso não implica questionar a validade de sua visão para esta época histórica.
É característica metodológica importante das sínteses teóricas
representativas de toda uma época que elas tendem a concentrar seus
esforços em traçar as linhas fundamentais de demarcação, e por essa
causa não podem articular sua própria abordagem sem previsões e atalhos.
Em contraste com isso, as tendências históricas concretas não podem
seguir obedientemente nenhum modelo, seja ele “clássico” ou não, por
mais cuidadosamente que seja formulado, e mesmo que seja a partir do
ponto de vista historicamente mais avançado. Nunca será demasiado
insistir que em nenhum momento é possível prever em detalhes, quanto ao
futuro distante ainda a ser construído, o inevitável impacto recíproco
das várias forças interagindo, bem como os “desvios” em relação a um
curso de ação anteriormente concebido e implementado.
Disso tudo segue-se que as complicações teóricas (e práticas) — manifestas também no plano metodológico — não só podem, como devem
surgir de acordo com as circunstâncias, limitações e contradições
específicas dos movimentos associados à perspectiva marxiana, mesmo
antes da conquista do poder. Naturalmente tal proposição é ainda mais
verdadeira depois desse avanço, quando um determinado “caminho para o
socialismo” é adotado, com sua própria estratégia de desenvolvimento que
eleva ao status de modelo geral a “força das circunstâncias” e a margem de ação disponível e historicamente limitada e limitadora. Por isso — em lugar da tranquila continuidade de desenvolvimento de um marxismo ideal abstrato —, a história, de fato, produz uma multiplicidade de marxismos competindo uns com os outros e às vezes até se enfrentando hostilmente.
II
Todavia, por maiores que sejam os desvios teóricos e práticos em relação ao curso de desenvolvimento originalmente previsto, duas condições vitais permanecem operantes em meio às mais diversas determinações ideológicas. (Sem elas, um relativismo extremo dominaria — e paralisaria — os movimentos cujas as tendências rivais do marxismo tentam articular).
Em primeiro lugar, as várias abordagens marxistas (na medida em que estejam realmente comprometidas com a perspectiva marxiana, indo além dos meros comprometimentos “da boca para fora",” qualquer que seja a razão histórica ou tática destes últimos) devem conservar tanto as ideias centrais como os correspondentes princípios metodológicos da concepção original.
Quanto a isso, não é acidental que a socialdemocratização oportunista do movimento da classe trabalhadora estivesse associada, no plano da metodologia, a um “evolucionismo” e a um “cientificismo” mecanicamente orientados para a quantidade, e ao corolário natural dos mesmos: a rejeição da dialética das contradições objetivas e das mudanças qualitativas (revolucionárias). Como disse Engels, com razão: “Marx e eu fomos os únicos a resgatar a dialética consciente da filosofia idealista alemã e aplicá-la à concepção materialista da natureza e da história”.[4] Assim, tomando-se apenas um exemplo, descrever o princípio dialético da “negação da negação” — que aparece nos escritos de Marx em vários contextos — como “truques verbais”, como o fez o dr. Dühring, ou como uma “intrusão inadmissível do hegelianismo no materialismo científico”, em uma fraseologia mais recentemente em moda, são manifestações da mesma “podridão positivista” de que Marx se queixava.[5]
Caracteristicamente, um dos modos pelos quais se procurou tirar do marxismo a objetividade das determinações dialéticas consistia em afirmar que eram uma invenção de Engels, que falava sobre a dialética não apenas na história, mas, horrible dictu, também na natureza. Isto, insistiam, devia ser rejeitado como incompatível com os próprios escritos de Marx. No entanto, os próprios fatos, mais uma vez, dizem outra coisa. Se alguém é “culpado” nesse ponto, certamente é o próprio Marx, que escreveu a Engels, quase dez anos antes de este último começar a escrever sua Dialética da natureza:
Você também verá, pela conclusão do meu capítulo III [de O capital],
no qual se menciona a transformação do mestre-artesão em um capitalista — como resultado de mudanças puramente quantitativas —, que, no texto
afirmo que a lei descoberta por Hegel, de mudanças puramente quantitativas acabam se transformando em mudanças qualitativas, vale tanto na história quanto nas ciências naturais.[6]
A segunda condição vital que, apesar de tudo, permanece operativa, sustentando e justificando também a primeira condição, diz respeito ao ponto final histórico real da ascendência global do capital. É esta que, em última análise, decide a questão, ativando as contradições estruturais do sistema produtivo injusto e destrutivo do capital e de seu modo de controle social universalmente desumanizador.
Com relação à teoria, tal determinação geral tem incidência prática importante. Sem dúvida, as variedades particulares do marxismo estão intimamente ligadas, em suas funções mediadoras, a seu ambiente sócio-histórico específico, não apenas refletindo necessariamente as limitações práticas de sua situação, mas também, ipso facto, assumindo a problemática ideológica de seu adversário, sob a forma de concessões importantes. Não obstante, por mais que sejam compreensíveis as determinações particulares e as exigências mediadoras que se originam da contingência histórica dada, a concepção original da “nova fórmula histórica” — que, como tal, não admite em sua estrutura conciliações com a velha ordem social — deve, por fim, prevalecer.
Quanto às “concessões históricas” realmente inevitáveis, não estamos nos referindo à estratégia mal concebida e malograda do “eurocomunismo”, que conscientemente pretendia estabelecer o que chamava de “grande concessão histórica”, mas à necessidade de ajustes recíprocos nas ações das principais forças em oposição, em seus confrontos reais. Quaisquer que sejam os objetivos imediatos das partes envolvidas, seus ajustes recíprocos não podem deixar de ser concessões históricas, se vistos a partir da perspectiva marxiana que aponta para uma transformação socialista radical e total da ordem social dominante.
As inevitáveis restrições de tais ajustes e concessões são determinadas, evidentemente, pelas circunstâncias históricas prevalecentes e pela relação de forças em mudança. Dadas certas pressões muito grandes, como o perigoso estágio da corrida armamentista, ou a extrema dificuldade de garantir as condições materiais de “acumulação originária” (seja ela chamada de “acumulação do capital” ou “acumulação socialista”) na escala necessária, é em princípio concebível que a abordagem marxiana, com sua atitude radicalmente inflexível em afirmar a única solução factível — genuinamente socialista — para os antagonismos estruturais da sociedade, tenha de ser posta de lado por um período significativo, até mesmo em países que declaram estar envolvidos na construção do socialismo.
Entretanto, ver soluções permanentes nos ajustes e concessões temporárias, por mais que sejam necessários nas circunstâncias prevalecentes, seria tão ingênuo quanto imaginar que a intenção modernizadora da atual liderança chinesa possa transformar toda a China em uma grande Hong Kong. Não se deve confundir a escala de tempo e as modalidades de transformação socialista em determinadas regiões com o terminus ad quem — o resultado geral — do processo social que se desenvolve em nível global. As “concessões históricas” não eliminam as contradições subjacentes; apenas modificam suas condições de irrupção e eventual resolução.
No fim, não pode haver “meio-termo” entre a dominação do capital e a transformação socialista da sociedade em escala global. E isso por sua vez implica necessariamente que os antagonismos inerentes ao capital devem ser “resolvidos pela luta” até uma conclusão irreversível e estruturalmente garantida. Isto é inevitável, mesmo que o modo pelo qual o processo de “combate” se desenrola, por um período histórico longo e contínuo, só possa ser considerado uma genuína superação (Aufhebung) produzida pelas complexas interdeterminações da “continuidade na descontinuidade e da descontinuidade na continuidade”, no sentido indicado pela dialética das “mudanças quantitativas se transformando em mudanças qualitativas”. Ou seja, uma dialética objetiva de reciprocidades que a “filosofia viva” socialista da época deve refletir tanto em sua complexidade metodológica como em sua orientação teórica ideologicamente sustentada (e constantemente reforçada) rumo ao terminus ad quem da viagem.
É neste sentido que a concepção marxiana, apesar das flutuações causadas pelas várias “concessões históricas”, permanece metodológica e teoricamente válida para toda a época histórica de transição do domínio do capital para a nova ordem social, graças à vitalidade ideológica e ao discernimento científico nela manifestados em unidade dialética.
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Notas:
[1] Marx, carta a Kugelmann, 13 de outubro de 1866.= = =
[2] Marx, carta a Engels, 20 de junho de 1866.
[3] Ibid. Com referência ao “socialismo proudhonista agora em moda na França”, Marx insiste: “o comunismo deve acima de tudo se libertar deste falso irmão” (Carta a Weydemeyer, 1º de fevereiro de 1859). Acompanha os destinos de Proudhon e seus seguidores com profundo interesse, relatando a Engels em 1856 que “Proudhon se tornou diretor das ferrovias imperiais reais” (Carta a Engels, 29 de fevereiro de 1856), e a Lassalle em 1859 que “diz-se que Proudhon ficou louco e foi internado em um asilo em Bruxelas” (Carta a Lassalle, 10 de junho de 1859).
[4] Engels, Anti-Dühring, Lawrence & Wishart, Londres, 1975, p. 15.
[5] Ver a Carta a Engels, de Marx, em que ele falava sobre esta “podridão positivista” e descrevia os escritos de Comte como “paupérrimos em comparação com Hegel”, 7 de julho de 1866.
[6] Marx, carta a Engels, 22 de junho de 1867.
[7] A mesma carta escrita por ocasião da primeira publicação de O capital, contém também a frase em que Marx diz: “Espero que a burguesia se recorde de meus carbúnculos pelo resto da vida”. Mostrando um profunda paixão ideológica e o comprometimento de sua “ciência proletária”, ele fala nesta carta, no mesmo fôlego, sobre provas científicas e leis dialéticas como os “vampiros da lição de casa”, da luta em que ele está pessoalmente envolvido (através da sua posição na Internacional) pela “abolição da tortura de um milhão e meio de seres humanos”, de “outra prova do que são os suínos [a burguesia]”, etc.
MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. Trad. Magda Lopes e Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 4ª reimpr., 2012, p. 314-318.
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