segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Inglaterra e Brasil: duas rotas do social-liberalismo em duas notas


por Ricardo Antunes
ensaio em PDF/2013

I. A rota original

No início de 1997, quando o Tony Blair saiu-se vitorioso das eleições no Reino Unido, vários segmentos de esquerda, em várias partes do mundo, viram nesse evento o fim da nefasta era do neoliberalismo inglês. Parecia que a era Thatcher tinha finalmente sido derrotada, quase 20 anos depois. Dotado no passado de uma força relativa, o Labour Party (Partido Trabalhista) agora denominado New Labour, voltava ao poder.

Diferentemente de muitas experiências internacionais, na Inglaterra havia sido o TUC (Trades Union Congress, a central sindical Britânica) que dera origem ao Partido Trabalhista e que, desde então, se constituía no pilar básico de sustentação do trabalhismo. Mediados pela vinculação sindical, parte significativa da classe trabalhadora inglesa garantia seus votos ao trabalhismo, conferindo base sindical a ação política do Partido. E foi deste modo que o Partido Trabalhista esteve muitas vezes no comando do país, especialmente depois do pós-II Guerra, até a ascensão de Thatcher em 1979.

Com a ascensão do conservadorismo de Thatcher, uma nova agenda transformou substancialmente o Reino Unido, destruindo a trajetória anterior. A conversão do sindicalismo em inimigo central do neoliberalismo trouxe consequências diretas no relacionamento entre o Estado e classe trabalhadora.

Dirigentes sindicais foram excluídos das discussões da agenda estatal e retirados dos diversos órgãos econômicos que contavam com participação sindical. Foi com base nesse projeto que o neoliberalismo britânico vigorou até a vitória eleitoral do Partido Trabalhista[1]. O destroçamento social e sua política, viram eclodir, particularmente em fins de 1980, uma onda de explosões sociais que atingiu em cheio o conservadorismo thatcherista, do que foram exemplo as greves operárias e a revolta contra o poll tax (imposto que taxava especialmente os trabalhadores e os mais pobres).

Talvez se possa inclusive dizer que a importante vitória eleitoral do New Labour, no início de 1997, se deveu menos em função das propostas políticas de Tony Blair do que ao brutal desgaste do thatcherismo. Quando as eleições ocorreram no início de 1997, as classes dominantes britânicas já haviam concluído as mutações no interior do Partido Trabalhista. Um enorme processo de “modernização” operava-se no seu interior, levando-o a abandonar completamente seu passado trabalhista-reformista, para se converter em uma espécie de Partido Democrático inglês, apoiado especialmente pelos novos extratos da burguesia.

Era preciso buscar, no interior da “esquerda”, as condições de continuidade da política vigente na fase do neoliberalismo. Era preciso acenar com mudanças superficiais para que o essencial da pragmática do neoliberalismo fosse preservado.

Tanto no desenho da sua economia política, quanto nas mais distintas esferas da sua ação político-institucional, na sua política externa, nos valores e no ideário que propugna, o governo Blair e a sua terceira via podem ser compreendidos em alguns de seus significados básicos. Alguns anos antes mesmo de sua vitória eleitoral, já desde 1994, desenvolveu-se dentro do Partido Trabalhista uma “nova” postura que busca um caminho alternativo, tanto em relação à social-democracia clássica, quanto ao neoliberalismo thatcheriano. Quando Tony Blair iniciou o processo de conversão do Labour Party em New Labour, pretendia-se não só um maior distanciamento diante do conteúdo trabalhista anterior, mas também limitar ao máximo os vínculos com os sindicatos, além de eliminar qualquer vestígio anterior que pudesse lembrar sua designação “socialista” que, ao menos como referência formal, permaneceu até 1994 nos estatutos do Partido Trabalhista.

O debate levado à frente por Tony Blair, em torno da eliminação da cláusula 4 da Constituição partidária (que defendia a propriedade comum dos meios de produção), resultou na criação de um substitutivo que expressa limpidamente as mutações que estavam ocorrendo no interior do Labour Party. Em substituição à cláusula que se referia à propriedade coletiva, foi introduzida a defesa do empreendimento do mercado e rigor da competição, selando, no interior do programa do New Labour (NL), a vitória da economia de livre mercado diante da fórmula anterior.

A retórica socialista e a prática trabalhista e reformista anteriores encontraram seu substitutivo na defesa da economia de mercado, mesclando liberalismo com traços da “moderna” social-democracia. Começava então a se desenhar o que foi denominado por Tony Blair, respaldado em seu suporte intelectual mais sólido, dado por Anthony Giddens e David Miliband, como “terceira via”.

Em seu sentido mais profundo, a “terceira via” do NL teve como objetivo dar continuidade ao projeto de “modernização” do Reino Unido, redesenhando a alternativa inglesa dentro da nova configuração do capitalismo contemporâneo. Nessa sua nova fase, o NL aprofundou sistematicamente a legislação que flexibilizou e desregulamentou o mercado de trabalho iniciado por Thatcher.

A flexibilização e precarização do trabalho, as privatizações, a abertura comercial etc., deveriam, entretanto, ser contrabalançadas com ações como o reconhecimento dos sindicatos no interior das empresas, o estabelecimentos de níveis mínimos de salário, assinatura da Carta Social da União Europeia, entre outras medidas defendidas pelo primeiro-ministro britânico no início de seu mandato, para que seu governo não fosse pura e simplesmente entendido como uma continuidade integral em relação ao período dos conservadores. Era preciso dar-lhe um verniz social-liberal.

No essencial, entretanto, a “terceira via” configurou-se como uma continuidade da fase thatcherista uma vez que, dado o enorme desgaste que o neoliberalismo acumulou ao longo de quase 20 anos, acabou sendo fragorosamente derrotado eleitoralmente por Tony Blair[2].

O partido que emergiu vitorioso no processo eleitoral de 1997, despojado de seus vínculos com o seu passado reformista-trabalhista, converteu-se, então, no New Labour pós-Thatcher, “moderno”, defensor vigoroso da “economia de mercado”, da flexibilização do trabalho, das desregulamentações, da “economia globalizada e moderna”, enfim, em tudo aquilo que foi fundamentalmente estruturado durante a fase clássica do neoliberalismo.

Sua “defesa” do welfare state, por exemplo, converteu-se no desmonte de muitos aspectos da social-democracia e do trabalhismo inglês. Tony Blair, quando propugnava “modernizar” o welfare state, de fato o desconstruía, erodindo os direitos do trabalho, da previdência e da saúde públicas, definidos por Blair como “herança arcaica”.

Seu principal ideólogo, Giddens (1999), apresentou a seguinte analítica:

A “terceira via” oferece um cenário bastante diverso dessas duas alternativas [social-democracia e neoliberalismo]. Algumas das críticas formuladas pela nova direita ao Welfare State são válidas. As instituições de bem-estar social são muitas vezes alienantes e burocráticas; benefícios previdenciários criam direitos adquiridos e podem acarretar consequências perversas, subvertendo o que originalmente tinham como alvo. O Welfare State precisa de uma reforma radical, não para reduzi-lo, mas para fazer com que responda às circunstâncias nas quais vivemos hoje.

E acrescentava: politicamente, “a terceira via representa um movimento de modernização do centro. Embora aceite o valor socialista básico da justiça social, ela rejeita a política de classe, buscando uma base de apoio que perpasse as classes da sociedade”.

Economicamente, a terceira via propugna a defesa de uma “nova economia mista”, que deve pautar-se pelo “equilíbrio entre a regulamentação e a desregulamentação e entre o aspecto econômico e o não-econômico na vida da sociedade”. Ela deve “preservar a competição econômica quando ela é ameaçada pelo monopólio”. Deve também “controlar os monopólios naturais” e “criar e sustentar as bases institucionais dos mercados” (GIDDENS, 1999).

Ou conforme a formulação de Tony Blair:

A terceira via é a rota para a renovação e o êxito para a moderna social- democracia. Não se trata simplesmente de um compromisso entre a esquerda e a direita. Trata-se de recuperar os valores essenciais do centro e da centro- esquerda e aplicá-los a um mundo de mudanças sociais e econômicas fundamentais, e de fazê-las livres de ideologias antiquadas. (...) Na economia, nossa abordagem não elege nem o laissez-faire nem a interferência estatal. O papel do governo é promover a estabilidade macroeconômica, desenvolver políticas impositivas e de bem-estar, (...) equipar as pessoas para o trabalho melhorando a educação e a infra-estrutura, e promover a atividade empresarial, particularmente as indústrias do futuro, baseadas no conhecimento. Nos orgulhamos de contar com o apoio tanto dos empresários, como dos sindicatos (BLAIR apud ANTUNES, 1998, p.99).

E, no plano de sua política externa, sua ação oscilou entre a completa subserviência e a adesão ativa à política externa imperialista dos Estados Unidos, de que foi exemplo a ação britânica na Guerra de Kossovo ou na Guerra contra o Iraque.

A sua postura antissindical e contrária aos trabalhadores foi emblemática e está estampada na derrota da Greve dos Doqueiros de Liverpool (que ocorreu entre 1995/1998); na aceitação do essencial do desmonte da era Thatcher; na destruição continuada dos direitos do trabalho (e em alguns casos a intensificação, como a restrição dos direitos sociais das mães solteiras e dos deficientes físicos, que provocou uma onda enorme de protestos contra Tony Blair), assim como na política de ampliação das privatizações, sem falar na adesão servil e indigente – acima referida – de Tony Blair ao imperialismo político-militar dos EUA. Tudo isso evidencia que a “terceira via” foi, no fundamental, uma forma de preservação do essencial do neoliberalismo em sua política econômica, em seu desenho ideopolítico e em sua pragmática, com um verniz social-democrático cada vez mais descorado. Foi o que restou da social-democracia na fase mais destrutiva do capitalismo, que tenta mascarar alguns elementos do neoliberalismo, preservando sua engenharia econômica básica e sua ideologia regressiva. Por isso é que a “terceira via” tem sido uma via alternativa que o capitalismo vem gestando para manter o fundamental o que o neoliberalismo clássico construiu e que quer de todo modo preservar.

II. A rota surpreendente

Lula sagrou-se vitorioso nas eleições presidenciais em 2002, depois de três tentativas anteriores. Essa vitória ocorreu, entretanto, em um contexto internacional e nacional bastante diferente daquele dos anos 1980, quando o Brasil presenciou um importante ciclo de lutas sociais. Tratava-se, então, de uma processualidade contraditória: a vitória da “esquerda” no Brasil ocorrera quando ela estava mais fragilizada, menos respaldada e menos ancorada em seus polos centrais que lhe davam capilaridade (classe operária industrial, assalariados médios e trabalhadores rurais) e quando o transformismo já havia metamorfoseado e convertido o Partido dos Trabalhadores (PT) em um Partido da Ordem (ver ANTUNES, 2004, 2006 e 2001).

Ao contrário da potência das lutas sociais do trabalho dos anos 1980, o cenário era de completa mutação e a eleição de Lula em 2002 acabou sendo uma vitória política tardia. Nem o PT, nem o Brasil, eram os mesmos. O país havia se desertificado pelas medidas neoliberais da era FHC, e o PT já não era mais um partido de classe, oscilando entre a resistência ao neoliberalismo e a aceitação da política da moderação e da adequação à ordem. E que cada vez mais se aproximava de uma política de alianças muito ampla, com vários setores de centro e mesmo de direita, configurando-se em um partido defensor de um programa cada vez mais policlassista.

Um exemplo é bastante esclarecedor: no final do governo FHC, em 2002, houve um acordo de “intenções” com o FMI, que exigia dos candidatos à presidência concordância com os termos do referido acordo. O PT de Lula publicou então um documento denominado Carta aos brasileiros, no qual evidenciava sua política de subordinação ao FMI e aos setores financeiros internacionais.

Quando o governo Lula se iniciou, em 2003, suas primeiras medidas sinalizavam um projeto pautado mais pela continuidade ao neoliberalismo do que pela sua ruptura, ainda que sob a variante do social-liberalismo. Sua política econômica preservava a hegemonia dos capitais financeiros, reiterando as determinações do FMI. Mais ainda, ao preservar a estrutura fundiária concentrada, dar incentivo aos fundos privados de pensão e determinar a cobrança de impostos aos trabalhadores aposentados, o governo Lula não alterava nenhum traço essencial da formação social brasileira. Isso significou uma ruptura com parcelas importantes do sindicalismo dos trabalhadores públicos, que passaram a fazer forte oposição, especialmente no primeiro mandato do ex-presidente.

A política de liberação dos transgênicos – atendendo às pressões de grandes transnacionais –, a política monetarista de superávit primário para garantir a remuneração dos capitais financeiros e a não realização da reforma agrária, além do esquema de corrupção que ficou conhecido como “Mensalão”, demonstravam que o primeiro governo Lula dava clara continuidade aos fundamentos da política neoliberal.

Como esse governo se sustentava num leque de forças políticas, tendo em sua base de apoio desde setores de esquerda até núcleos da direita tradicional brasileira, as alterações que ocorreram no início do segundo mandato permitiram que reconquistasse o apoio majoritário da população brasileira, entre todas as classes sociais, conformando-se em um governo policlassista dos mais bem-sucedidos, que recusava qualquer política de relativo benefício à classe trabalhadora.

Essa primeira alteração significativa foi a resposta à crise do “Mensalão” como ficou conhecida a política de corrupção que quase levou o primeiro governo ao impeachment. Era fundamental que o segundo governo Lula ampliasse sua base de sustentação, desgastada perante a classe trabalhadora organizada que havia se decepcionado politicamente com as medidas do primeiro governo Lula.

Foi então que se deu, no início já do segundo mandato, uma alteração importante: Lula, depois da falência do programa social Fome Zero, ampliou o programa Bolsa-Família, uma política social focalizada e assistencialista, de grande amplitude que atingiu mais de 12 milhões de famílias pobres, com renda salarial baixa e que por isso recebiam um complemento.

Tal medida – assumida como exemplo pelo Banco Mundial – ampliou significativamente a base social de apoio a Lula em seu segundo mandado. Atingia não a classe trabalhadora organizada (sua base de origem), mas os setores mais pauperizados da população brasileira, que tanto dependem das políticas do Estado para sobreviver. Comparado aos governos anteriores, especialmente ao de FHC, essa política assistencialista de Lula assumiu uma proporção quantitativa muitas vezes maior, o que compensou o apoio que Lula e o PT perderam em vários setores organizados da classe trabalhadora – ainda que o tenham recuperado posteriormente, ao menos em parte.

Por outro lado, se o salário mínimo brasileiro ainda é aviltante – Dilma foi taxativa em manter a proposta de R$ 545, o que demonstra que sua política de combate à fome é puro assistencialismo e incapaz de tocar no lucro do grande capital, do qual o governo Lula foi servo exemplar –, é preciso reconhecer que, em comparação ao governo anterior de FHC, tal política assistencialista trouxe poucos, mas efetivos ganhos reais. O máximo que se poderá dizer do governo Lula é que ele foi “melhor” do que o de FHC. Não pode, então, haver maior exemplo da derrota que significou para a esquerda que não se vergou.

Desse modo, seu governo fechou as duas pontas da tragédia social no Brasil: remunerou de forma exemplar as diversas frações do capital (especialmente o financeiro, mas também o industrial e aquele vinculado ao agronegócio) e, no extremo oposto da pirâmide social, onde encontramos os setores mais “desorganizados” e “empobrecidos” da população brasileira – que dependem do estado para sobreviver – implementou uma política social assistencialista, além de pequena valorização do salário mínimo. É decisivo acrescentar, contudo, que tais medidas não confrontaram nenhum dos pilares estruturantes da desigual sociedade brasileira, onde a riqueza também continuou se ampliando significativamente.

Assim, é mister enfatizar que o governo Lula tanto minimizou os níveis de indigência social como aumentou o grande capital, abrindo o País ao capital forâneo e, triste papel de nosso semibonaparte, transnacionalizou setores importantes da burguesia brasileira.

A grande popularidade que o governo Lula encontrou ao findar o seu governo – tendo mais de 80% de aceitação nas pesquisas de opinião pública – e que foi suficiente para garantir a vitória de sua candidata, a ex-ministra Dilma Roussef, à presidência do Brasil, decorre, então, do fato de que, por um lado, seu programa social desenvolveu uma variante de assistencialismo com uma amplitude muito superior àquelas que haviam sido implementadas anteriormente pelos governos conservadores oriundos estritamente das classes dominantes.

Por outro, o fez garantindo altos lucros, comparáveis aos maiores da história recente do Brasil, para os grandes capitais financeiros (bancos e fundos de pensão), bem como para os capitais produtivos (siderurgia, metais pesados, agroindústria, commodities, etc.).

É importante acrescentar ainda outro ponto vital, que marcou particularmente o segundo mandato: quando a crise mundial atingiu fortemente os países capitalistas centrais, em 2008, o governo tomou medidas claras no sentido de incentivar, por intermédio do Estado, a retomada do crescimento econômico por meio da redução de impostos em setores fundamentais da economia, como o automobilístico, o eletrodoméstico e a construção civil. Incorporadores de força de trabalho expandiram fortemente o mercado interno, compensando assim a retração do externo que, no contexto da crise, diminuiu a compra das commodities produzidas no Brasil.

Se isso já não bastasse, seu governo contou ainda com o apoio de forte parcela da burocracia sindical, que se atrelou ao Estado por depender diretamente de verbas públicas. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Força Sindical, inimigas no passado, convivem bem em diversos ministérios do governo Lula.

Recentemente, o governo Lula aprovou uma medida que acentuou o controle estatal sobre os sindicatos ao determinar que as centrais sindicais passariam a receber o Imposto Sindical, criado na Ditadura Vargas, no final dos anos 1930. Ao mesmo tempo em que as centrais foram legalizadas (o que é positivo), passaram a ter direito de recolher o Imposto Sindical. Isso significa que, no limite, podem viver com recursos desse imposto e de outras verbas públicas, praticamente sem a necessidade de realizar a cotização autônoma entre seus associados. Sem mencionar o fato de que, durante o governo Lula, centenas de ex- sindicalistas receberam altos salários e comissões para participar do conselho de empresas estatais e ex-estatais, além de inúmeros cargos em ministérios e comissões criadas pelo governo.

No que concerne à liderança política, Lula a exercitou de forma exemplar ao manter relação “direta” com as massas, exercendo seus fortes traços arbitrais, e frequentemente messiânicos. Em uma quadra histórica em que as frações dominantes não puderam garantir a sucessão presidencial nem em 2002 nem em 2006, Lula tornou-se expressão de um governo excepcionalmente favorável às classes dominantes, uma vez que fala para os pobres, vivencia as benesses do poder e garante a boa vida dos grandes capitais, encarnando uma espécie de semibonaparte, recatado, cordial e célere diante da hegemonia financeira e hábil no manuseio de sua base social. Sua nova forma de ser provocou uma consciência invertida de seu passado e deslumbramento em relação ao presente.

Como consequência desse transformismo, seu governo demonstrou enorme competência em dividir os trabalhadores privados dos trabalhadores públicos. O mais importante partido de classe das últimas décadas, que tantas esperanças criou no Brasil e no mundo, exauriu-se como partido de esquerda transformador da ordem para se qualificar em gestor potente dos grandes interesses dominantes no País. Converteu-se em um partido que sonha, enfim, em “humanizar o capitalismo”, combinando uma política de parcerias com o grande capital – aí está seu traço privatizante, que procura esconder de todo modo – e de incentivo amplo à transnacionalização dúplice do Brasil (de fora para dentro e vice-versa), ao mesmo tempo em que se utiliza da força do Estado para incentivar seu desenvolvimento e expansão, e minorar, por meio de políticas sociais, o pauperismo existente.

O governo Lula – que poderia ter efetivamente iniciado o desmonte do neoliberalismo no Brasil – acabou tornando-se dele, inicialmente prisioneiro e, depois, lépido agente, ainda que sob a forma do social-liberalismo, incapaz de principiar a desestruturação dos pilares da dominação burguesa no Brasil.

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Notas
[1] Ver particularmente o capítulo V do livro Os sentidos do trabalho, op. cit., onde desenvolvemos detidamente as ideias apresentadas neste artigo.
[2] Outro traço onde Blair procurou expressar descontinuidade em relação à política de Thatcher aflorou ao tomar algumas decisões políticas, como o reconhecimento do Parlamento na Escócia (e também na Irlanda e País de Gales), mas que não se constituem como um entrave para a continuidade do projeto do capital britânico, reorganizado durante a fase neoliberal.
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Referências
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______. Trade Unions in Britain Today. Manchester: Manchester University Press, 1995.
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Resumo: O objetivo deste texto é analisar dois caminhos alternativos ao neoliberalismo praticado por partidos claramente conservadores. Discute as experiências do New Labour na Inglaterra, com a vitória de Tony Blair, em 1997 e do Partido dos Trabalhadores, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, procurando indicar seus elementos de continuidade e descontinuidade em relação aos seus respectivos governos anteriores.

Palavras-chave: social-liberalismo; neoliberalismo; trabalhismo.

Abstract: The aim of this paper is to analyze two alternative paths to neoliberalism practiced by parties clearly conservative. Examines the experiences of New Labour in Britain, with the victory of Tony Blair in 1997 and the Partido dos Trabalhadores (Workers Party), with the election of Luiz Inácio Lula da Silva, in 2002, seeking to indicate its elements of continuity and discontinuity in relation to their respective previous governments.

Keywords: social liberalism, neoliberalism, labourism.
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ANTUNES, R. “Inglaterra e Brasil: duas rotas do social-liberalismo em duas notas”. In: Currículo sem Fronteiras, v. 13, n. 2, p. 204-212, mai/ago, 2013.
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