quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Entre nomes e descrições: Frege, Russell e o atual rei da França


 
por Paulo Ayres

A notória divisão que Gottlob Frege faz entre sentido (Sinn) e referência (Bedeutung), a mesma que lhe permite manter um elo com o senso realista, é justamente o que representa um certo incômodo para a tradição extensionista da filosofia da linguagem que se segue a partir dele, visto que a abordagem nominalista se intensifica no decorrer da "filosofia analítica". Bertrand Russell é, nesse sentido, o mais destacado interlocutor da geração que surge imediatamente da obra fregeana no início do século XX. A lacuna, por assim dizer, que salta aos olhos é como a esquematização do autor alemão simplesmente oferece a abstenção de valor de verdade para determinadas sentenças.

A dependência do valor semântico (enquanto valor de verdade) da referência consegue explicar as proposições que se referem a crenças, devido ao conceito fregeano de "objeto" ser mais extenso que o físico. Contudo, o princípio da composicionalidade parece comprometido, pois nem sempre substituir dois nomes sinônimos garante o valor de verdade do todo — as sentenças de crença explicitam isso. Com efeito, a solução está na propriedade que Frege denomina "sentido". Esse "ingrediente do significado" (MILLER, p. 37) é mais imediato e acessível que a referência do objeto particular.

É através do sentido que Frege resolve a questão dos nomes portadores, como o mitológico "Ulisses". Tal dualidade permite o filósofo conceber expressões que tenham sentido, mas não têm valor semântico, isto é, que o usa sintaticamente numa expressão coerente em suas partes constituintes e com nome próprio. Diz algo com sentido, mas sem referência (valor semântico). A tese que Frege tira daí é a de que sentenças que se referem enquanto objetos sem referencial (sem valor semântico) não se deve avaliar semanticamente como verdadeiro ou falso. O peso colocado sobre a referência, na proposta fregeana, cobra o preço da análise que suspende sentenças.

E mesmo que o conceito de "sentido" em Frege reivindique a objetividade para além das representações, não evita a imprecisão por considerar como nomes próprios todos os conceitos além dos predicados. Essa é justamente a porta de entrada para Russell aprofundar a logicização linguística ao reduzir a questão semântica às descrições definidas. Em suma, questionar o próprio conceito de "nome próprio", base da obra fregeana, passa a ser o seu movimento de ruptura — movimento esse de intensificação do formalismo.

Diferente de Frege, Russell considera o nome próprio como uma indicação empírico-direta com um objeto nomeado: "isso é... aquilo é", como se apontássemos para a singularidade ao dizer esses nomes. Nomes próprios, assim sendo, são "secos", "diretos", e não portadores de sentido. Aliás, a dualidade realista sentido-referência estava na mira da navalha nominalista que Russell empunhava sem dó.

A questão dos nomes sem portadores é, para Russell, uma questão de descrições definidas vazias. E até mesmo os nomes naturais seriam camuflagens para essa abordagem, isto é, "descrições definidas disfarçadas". As sentenças que predicam realidade/irrealidade (existência afirmada/negada) de um nome próprio, por exemplo — algo que o agnosticismo de Frege postulou como sem sentido —, o agnosticismo de Russell vê apenas uma descrição (definida ou indefinida) sendo mencionada e, portanto, até ela passível de ser significante. Algo em sintonia com a linguagem ordinária, onde frequentemente falamos que "tal coisa existe" ou "não existe".

Russell concorda com a diferenciação analítica de Frege, quando esse diz que numa preposição como "Scott é Scott" e "Scott é o autor de Waverley" são distintas, ou seja, uma tautologia (A = A) e uma predicação (A = B), contudo, desconsidera a unidade de sentido como nomeação em sinônimos. O objeto linguístico, nessa perspectiva, se move integralmente como descrições. Aspecto negativo das navalhadas: mais descontinuidade, mais fragmentação, ou se quiser, mais análise voltada para si mesmo (e a analítica consiste justamente em despedaçar o conhecimento). O aspecto positivo da mesma abordagem e meta russelliana, conseguida com sacrifícios: Se tudo é descrição passível de ser formulada em lógica simbólica adequada, todos as proposições podem ser afirmadas/negadas, emitindo valores de verdade.

Como se pode dizer que a expressão "o atual rei da França é careca" é falsa sem recorrer à ontologia (a bruxa generalizada como "metafísica" pelos racionalistas formais)? O descritivismo de Russell, ao fazer de todas as sentenças descrições, almeja isso. Sendo uma descrição sem objeto, é uma sentença falsa. Independente do empenho epistemológico de Russell e do senso ontológico-platônico de Frege, é curioso como a filosofia da linguagem, e a tradição analítica que se forma daí em diante, é como uma cirurgia desnecessária e ultra-tecnológica para realizar algo bem simplório, chegando às raias do risível certas vezes. Enquanto isso, na vida cotidiana, com a sua linguagem ordinária, muitos estão carecas de saber da falsidade do "atual rei da França".

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Referências:

FREGE, G. "Sobre o sentido e a referência". Trad. Sérgio R. N. Miranda (UFOP). In: Fundamento, v.1, n. 3, maio/ago., 2011, p. 21-44.
MILLER, A. Filosofia da linguagem. Trad. Evandro Luis Gomes, Christian Marcel de Amorin, Perret Gentil Dit Maillard. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2010.
RUSSELL, B. Introdução à filosofia matemática. Trad. Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
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