sábado, 5 de fevereiro de 2022

Keynesianismo, neoliberalismo e os antecedentes da “crise” do estado

  
por Cristina Paniago[1][2]

Introdução

Entender o mundo de hoje implica nos debruçarmos sobre uma realidade social comprometida em todos os seus poros pela crise estrutural do capitalismo. Crise econômica, crise política, crise das subjetividades, das artes e das humanidades em geral – formas variadas de expressão da crise de superprodução que encontra seu fundamento neste modo de produção, relação já revelada por Marx desde o século XIX[3].

Como vivemos numa sociedade de classes, tais classes experimentam os efeitos da crise de forma bastante desigual, além de se verem comprometidas com sua solução também de pontos de vista de classe diferentes. Enquanto a classe trabalhadora, fundamentalmente, sofre a crise, a classe capitalista se preocupa em agir imediatamente e intervir no curso da crise, pois, de outro modo, não conseguiria manter a reprodução ampliada do capital social global e preservar sua condição de proprietária privada dos meios de produção. Nesse sentido, enquanto classe dominante, e diante das novas exigências postas pela reprodução social capitalista, se coloca na dianteira quanto à formulação de políticas saneadoras da crise.

O Neoliberalismo, enquanto reação articulada da burguesia às dificuldades expansionistas do capital, passa a encontrar espaço efetivo para ideias há muito propagadas (Hayek e seus parceiros reuniam-se em Mont Pelérin nos anos 1940), a partir da crise mundial dos anos 70 (século XX). Ele apresenta-se como um conjunto de medidas políticas, econômicas e sociais que visam tirar o capitalismo da crise e criar as condições necessárias para a recuperação da lucratividade da ordem global do capital em queda. Essas mesmas medidas intentam realizar objetivos diversos, a depender de quais interesses de classe procuram proteger. De um lado, observa-se uma série de medidas voltadas para a recuperação do lucro dos capitalistas, e de outro, imposições restritivas e autoritárias sobre a classe trabalhadora, cujo resultado é a degradação da sua qualidade de vida e trabalho.

O Estado vai atuar de forma decisiva na implementação de tais medidas neoliberais. Encarna, no decorrer do desenvolvimento da crise, o papel de principal vilão dos desequilíbrios econômico-financeiros provocados pela crise, através da alegada crise fiscal do Estado intervencionista do período anterior, que atuaria, para alguns, como um dos fatores causadores da crise. Por essa mesma razão, o Estado passa a ocupar a preocupação de governantes, intelectuais e organizações dos trabalhadores, como sendo um espaço eficaz de reversão da crise, pois se contornados os problemas que teriam sido gerados por ele no período que antecedeu a crise estrutural, poderia, então, retomar seu curso e impulsionar a recuperação do crescimento e do emprego. Ainda que isso signifique diminuir sua presença na economia, como diz reivindicar o pensamento liberal, o que não quer dizer tornar-se inoperante, mas ocupar-se de atividades sem atrativos para a acumulação e a expansão do capital.

O que nos interessa abordar, neste artigo, é o relacionamento intrínseco entre crise do capital, Neoliberalismo e Estado, resgatando as relações causais entre estes e a ordem do capital, tendo em vista a influência determinante que exercem sobre o cotidiano de nossas vidas e o futuro da humanidade. E mais, pretendemos apontar para o equívoco de, ao nos determos numa investigação parcial sobre a crise contemporânea, identificando o Estado keynesiano atuante no período anterior como o causador dos desequilíbrios econômicos atuais, esperarmos que com a “refuncionalização” popular do Estado poder-se-ão reverter os nefastos danos sociais causados aos trabalhadores.

Aqueles que adotam tal abordagem denotam explícita ou implicitamente a concepção de Estado como esfera autônoma, o qual, em poder dos trabalhadores, poderia reverter a tendência de crise estrutural do capital através da melhor utilização de seu instrumental político, jurídico e legal, ainda que se prescinda de qualquer alteração fundamental na base material produtiva e reprodutiva do sistema. De outro modo, a concepção da independência do Estado, diante das exigências da produção material do sistema dominante, também encontra apoio na visão liberal da disjunção entre economia e política, o que favorece o ocultamento da exploração do trabalho pelo capital como a fonte real de riqueza. Expressão da antinomia entre liberdade política formal e desigualdade social real, preceitos inseparáveis do ideário liberal.

No Brasil, vivemos momentos bastante ilustrativos dos resultados deste tipo de concepção, basta observar os últimos 20 anos da era neoliberal aqui gerenciada por personificações do capital dos mais variados espectros ideológicos e alianças partidárias – esquerda, direita ou centro – no interior do Estado. Mesmo os que se apresentaram como representantes dos trabalhadores e contaram com um corpo de intelectuais, administradores e sindicalistas experimentados da “esquerda”, em nada modificaram a atuação do Estado. Ao invés de “refuncionalizar” o Estado voltando-o para uma atuação popular e social, foram cooptados pela lógica reprodutiva do capital e suas exigências acumulativas a qualquer preço.

O que parece predominar na função social exercida pelo Estado são os interesses em jogo da classe dominante, os quais necessitam do apoio mais ou menos ativo do Estado. Em período de crise estrutural a atuação do Estado, sempre necessária e presente no auxílio e proteção da reprodução ampliada do sistema do capital, torna-se ainda mais importante, comprometendo-se com a própria sustentação direta de atividades de produção e circulação de valor. A “colaboração do Estado se torna crescentemente intervencionista” (MÉSZÁROS, 2002, p.698).

Desde o início do capitalismo o Estado Moderno, ressalta Mészáros (2002, p.700), citando Mandeville, teve de “'garantir a propriedade' e 'pôr o pobre estritamente a trabalhar', objetivos que têm de permanecer como propósitos permanentes do sistema enquanto sobreviverem o modo de produção capitalista e seu Estado”. Mas com o desenvolvimento do capitalismo e suas dificuldades reprodutivas expostas insistentemente através das crises, não bastava apenas isso. A despeito da defesa neoliberal da necessária redução do Estado, visando facilitar a ação do mercado na restauração da normalidade do crescimento econômico, o que se constata é um movimento contrário. Há uma maior requisição do Estado, que se faz presente através das políticas de incentivos fiscais, subsídios de toda ordem, financiamentos com taxa de juros reduzida e investimentos necessários para a estabilização do sistema como um todo. Essa tendência tem se acentuado com a crise estrutural.

O Estado é um complemento fundamental à reprodução do capital e deve garantir a manutenção do sistema como um todo. Compreender sua contribuição (e responsabilidade) para a crise estrutural passa pela recuperação dos desenvolvimentos dos próprios fundamentos da crise e das exigências postas pelo sistema autorreprodutivo do capital na esfera política específica do Estado, do Welfare State ao Neoliberalismo.

I. Os antecedentes da crise estrutural

O capitalismo, desde que adquiriu sua maturidade no século XIX, vive acometido por crises. É um sistema que produz contradições insanáveis, crise após crise, recuperando-se por meio de novos períodos de crescimento e expansão, os quais apenas promovem o deslocamento das contradições precedentes e não sua resolução (MÉSZÁROS, 2002). Dessa forma, as medidas saneadoras das crises são protelatórias, resultando em novos períodos de crise – as chamadas crises cíclicas. O exemplo histórico mais conhecido é a crise de 1929-33, que resultou na alternativa fordista como forma de expansão da acumulação do capital, juntamente com a ajuda do Estado orientada pela forte influência keynesiana.

Durante algumas décadas foi possível manter as altas taxas de crescimento da economia, a expansão do consumo estimulado pela produção em massa e a valorização da força de trabalho e de seu poder aquisitivo. No entanto, essa expansão da produção e da realização do capital encontrou duas barreiras intransponíveis: esgotamento da ocupação de novos territórios e mercados, e a saturação da capacidade de consumo naquela escala e intensidade. Novas contradições se recolocam, pois uma vez que se buscou o aumento da produtividade por meio do uso mais intenso da tecnologia, o efeito imediato foi a redução da demanda por força de trabalho. Ao mesmo tempo em que há um aumento da produção ocorre a eliminação dos potenciais consumidores e um excesso de capitais acumulados, tendo como efeito a crise de superprodução (MÉSZÁROS, 2002).

Para compreendermos inteiramente o desenrolar desses fatos e suas consequências sociais, não podemos deixar de colocar em cena a ação da classe trabalhadora. Como fator complementar a esse processo, devemos destacar a acomodação da classe trabalhadora e de seus dirigentes sindicais diante da política de negociação e de arrefecimento da luta de classe, posta como condição à obtenção dos ganhos materiais, então favorecidos pela fase de ascendência do capitalismo. Predominaram, então, o reformismo e a busca de conciliação de classe[4], comprometendo a autonomia e a independência de classe dos trabalhadores, deixando-os à mercê das benesses concedidas pelo capital, enquanto duraram.

Este período não durou por mais de três décadas, e para apenas alguns poucos países do capitalismo avançado. Esgotadas as condições dessa fase de crescimento, nova crise vai refletir a queda das taxas de lucratividade e o acirramento da concorrência para realização do capital no mercado global. A crise se estende a todo o planeta, ainda que com força e intensidade distintas. É acompanhada pela derrocada do bloco soviético e pela incapacidade de reação da classe trabalhadora, agora derrotada pela política de conciliação defendida há décadas pelo reformismo social-democrata.

A iniciativa para o enfrentamento da crise vem da classe capitalista, na defesa de seus interesses. A classe trabalhadora atua como mera observadora no processo de formulação de alternativas à crise, combalida pela derrota da alternativa soviética e pela falência do reformismo do Welfare State. Não sem demonstrar todo o seu descontentamento e revolta, como fez nas manifestações de 1968 na França, no outono italiano, entre outros movimentos. No entanto, sem poder oferecer uma alternativa de classe à incapacidade do capitalismo para resolver suas crises.

Caberá ao Estado um papel fundamental no desenvolvimento da crise, que agora se aprofunda e afeta a dimensão estrutural do sistema do capital[5]. De modo similar à estratégia keynesiana, cujo objetivo fundamental, à época, foi auxiliar a aceleração do crescimento das taxas de lucratividade com a garantia política e os benefícios econômicos necessários à implementação do consumo de massa, bem como os investimentos em infraestrutura facilitadores da realização do capital, hoje, o Estado encontra-se novamente no seio da crise.

O Estado passa, segundo o fundamento liberal, a ser responsabilizado sobremaneira pela eclosão da crise. Alegam que por ter se envolvido demasiadamente com os gastos sociais, estes acabaram por produzir uma crise fiscal e uma incapacidade do Estado em sustentar o grau alcançado de envolvimento com a economia e com o fornecimento de benefícios sociais indiretos aos trabalhadores.

Desse modo, atribui-se ao Estado uma enorme parcela de responsabilidade pela crise e, ato contínuo, propõe-se sua retirada dos negócios privados, uma vez que o mercado é sempre mais eficiente. Num primeiro momento a esfera pública atuou como complemento fundamental ao desenvolvimento dos interesses privados. No entanto, agora, com o Neoliberalismo, o setor público deve se retirar da economia e deixar o curso livre para o setor privado cumprir sua função "benevolente" na sociedade.

Esta aparente alteração do papel a ser desempenhado pelo Estado, sendo substituído o Estado sob orientação keynesiana, da fase de expansão acelerada do sistema do capital, pelo Estado "mínimo" do Neoliberalismo, do período de crise estrutural, não pode ser examinada procurando-se os elementos explicativos apenas na análise das diferentes medidas de política que os caracterizam. O elemento de continuidade que pode esclarecer a unidade existente entre eles é a função social que exercem na sustentação política complementar das necessidades materiais da acumulação do capital, em determinadas fases de desenvolvimento do sistema global do capital. Desse modo, a causalidade indutora das variadas formas de intervenção política, adotadas pelo Estado neste período, se encontra nas exigências postas pelo capital para a preservação de sua lógica reprodutiva.

O que vemos, portanto, como determinante nos passos iniciais da crise dos anos 70 não foi a falência do Estado devido a sua incompetência ou ao desempenho de papéis inadequados, mas sim ao esgotamento dos meios utilizados na ampliação da realização do capital, resultando numa crise estrutural agravada pelo acúmulo das contradições e pela ineficácia das medidas remediadoras até então utilizadas.

O fato de não poder enfrentar as causas de suas crises de abundância, pois colocaria em xeque seu próprio modo de existência, levou o sistema a buscar resolver os problemas mais imediatos, no curto prazo (se pensarmos nos 30 anos dourados de crescimento, e nos quase 40 anos de Neoliberalismo e crise), o que só iria provocar desajustes futuros, ameaçando a estabilidade artificialmente constituída.

Vejamos como isso pode ser reconhecido nas políticas adotadas pelo sistema global do capital, no período que antecedeu a crise estrutural.

II. Excedente de capital nos países avançados e crescimento da dívida externa na periferia

O que se pode verificar no desenrolar das últimas décadas do século XX foi uma requisição ainda maior da intervenção do Estado.

Com o esgotamento das condições anteriores de expansão, asseguradas por algumas décadas de crescimento acelerado do consumo de massa e do mercado mundial, novas estratégias se impõem. Já não são mais prioritárias as políticas sociais de benefício indireto à realização do capital e à acomodação da luta de classes que caracterizaram o período de ascendência do capital, o Welfare State. O excesso de capital acumulado necessita de novas oportunidades de realização e de centralização. A prioridade da acumulação desloca-se da esfera produtiva, que caracterizou o período anterior, e dirige-se à realização acelerada dos ganhos financeiros através da mundialização do capital financeiro (CHESNAIS, 1999).

Este movimento pode ser melhor percebido a partir do início dos anos 70 do século XX, quando os EUA, unilateralmente, rompem com o acordo de Breton Woods, cujo objetivo, em 1944, foi exatamente criar um sistema monetário internacional que superasse a instabilidade monetária e financeira manifestas na crise que levou à 2ª Grande Guerra.

Para a principal potência capitalista, que sai à frente na concorrência mundial após a 2ª Guerra, tais constrangimentos regulatórios dos negócios tornaram-se insuportáveis. Agora, premidos pelos sintomas iniciais da crise, os imperativos expansionistas do capital passam a exigir novas medidas e formas de realização do capital excedente, o que implica a eliminação de antigas regulamentações pactuadas e a adoção de medidas de liberalização e desregulamentação dos mercados, tais como adoção do sistema de taxas de câmbio flutuantes, interferência de financeiras privadas na determinação dos preços das moedas, liberalização dos fluxos de capitais, abolição dos controles sobre o movimento dos capitais. Tal processo de mundialização financeira, conforme análise de Chesnais, se completa nos anos 80 (CHESNAIS, 1999).

Esses desdobramentos liberalizantes do sistema global do capital vêm responder às novas necessidades impostas pela crise que sucedeu o período de intensa acumulação do Welfare State.

Mas qual o papel exercido pelo Estado nesse processo de liberalização da economia? Podemos atribuir a ele o papel de “vilão da crise”, como querem os liberais e muitos de seus oponentes que aceitam tal tese? Qual a função exercida, e se pode atribuir a ele uma função de autonomia (no sentido de independência) diante do capital, ao ser transformado em uma das causas da crise? Nesse sentido, pode-se esperar que o Estado possua os poderes suficientes para reverter a crise a partir do uso mais adequado e eficiente de seus instrumentos político-legais?

O que se observa historicamente, contrariando tais concepções, é que ao Estado sempre coube desempenhar a função e o papel mais adequados aos interesses dominantes do capital. O excesso de capital e o imperativo de uma lucratividade contínua e crescente, no caso do capital global dos países avançados, fizeram com que a busca de alternativas se voltasse à periferia do sistema. O Estado, nos países periféricos, passou a desempenhar o papel de receptor de capital excedente do centro do sistema. Ora tomando vultosos empréstimos externos, ora comprometendo-se a pagar a dívida externa com base nos juros agora determinados pelos agentes bancários e de investimentos liberalizados, com liberdade na fixação dos juros, de acordo com os interesses do mercado e do capital global.

Juntem-se a isso as novas figuras jurídicas e instituições financeiras que surgem no cenário mundial com peso antes inimaginável no capitalismo global.[6] Companhias de seguros, fundos de previdência privada por capitalização (fundos de pensão) e fundos mútuos de investimentos portadores de volumes gigantescos de recursos financeiros saem à busca de novos meios de recuperação da lucratividade. O Estado entra novamente como agenciador dos apetites insaciáveis do capital. A partir do final dos anos 80, nos países avançados, e dos anos 90, nos países periféricos, o Estado promove a abertura dos mercados e libera o acesso do capital privado àquelas atividades de natureza pública antes delegadas ao Estado.

As privatizações de empresas estatais, a flexibilização do papel do Estado na implementação de políticas sociais, a transferência de funções públicas para setores públicos não estatais, a reforma da previdência, tributária, administrativa, trabalhista/sindical e universitária, as ações com o intuito de derrubar todas as barreiras legais para a penetração do capital em áreas agora atrativas à busca de lucro constituem o conjunto das medidas, bem como o enfraquecimento da resistência dos trabalhadores através da perda de direitos, do desemprego, da precarização do trabalho e da redução do valor real dos salários.[7] O Estado tem por finalidade, como antes, tomar as providências adequadas que favoreçam economicamente e deem garantias políticas à acumulação do capital em sua nova configuração financeira (claro, preservada a base produtiva associada aos interesses comuns da acumulação global.)

Ao mesmo tempo em que tais medidas vão sendo implementadas, põe-se em movimento uma outra estratégia, cuja finalidade é atender às exigências acumulativas do capital em crise, qual seja, o crescente endividamento externo dos países periféricos. Processo que se iniciou nos anos 60, seguido pelos anos 70, como resultante da fase final da ascendência do capital, provocando um enorme endividamento externo nos países periféricos, justificado pela alegação de ser a condição necessária à modernização e ao desenvolvimento nacionais. Ocorre que, no decorrer dos anos 60, nos países periféricos, os déficits orçamentários começaram, gradualmente, a ultrapassar o excedente, aumentando rapidamente a dependência gerada por tais déficits, pois insanáveis com os recursos próprios de uma economia em queda (SWEEZY e MAGDOFF, 1988). Governos passam a contrair empréstimos a taxas acima da inflação e do crescimento econômico, e para pagar os juros da dívida incorrem em novos déficits orçamentários. Para recobri-los, novos empréstimos.

À época, o excesso de capitais e o imperativo à expansão e à acumulação do capital encontraram, assim, uma nova forma de resgatar a economia da tendência à estagnação – uma vez que Keynes e seus remédios, por meio de doses maciças de gastos deficitários, já haviam sido utilizados. Nos termos colocados por Sweezy e Magdoff (1988), não havia mais nada no “saco de truques”. Esse processo resultou na fragilização do sistema, que se tornou, segundo eles, extremamente sensível a tensões e pressões.

O resultado foi a submissão dos Estados periféricos a condições ainda mais desfavoráveis à travessia da crise, transferindo riqueza para o coração do sistema global através da transferência de capitais e do pagamento de dívidas astronômicas mediante juros crescentes (ao sabor do mercado). Instalou-se uma relação em que se estimula (e até mesmo se comemora a entrada em abundância de capitais externos) a dependência ao capital externo em excesso à procura de inversões lucrativas a qualquer preço, ao mesmo tempo em que exigem-se (internamente) políticas de austeridade e rigidez orçamentária na execução das atividades típicas do Estado, tais como políticas sociais no âmbito da educação, saúde, habitação, assistência social etc. Liberdade crescente para o capital e austeridade e restrição para as demandas do trabalho.

Boa parte dessa estratégia será encaminhada pelo Estado, visando realizar com êxito os desejos acumulativos das classes possuidoras. Mesmo sob a acusação de provocador de uma "crise fiscal", não deixou de lhes ser útil e eficaz em todas as conjunturas: de ascendência e de crise do sistema. Eficiência também reconhecida na repressão ou na cooptação das organizações sindicais e movimentos sociais, e na redução dos benefícios materiais e legais da classe trabalhadora.

III. A ilusão keynesiana de ontem, e de hoje

Não podemos atribuir apenas ao Neoliberalismo todos os males sociais atuais que recaem sobre a massa da população que trabalha, produzindo a riqueza alheia. Pois do contrário, estaríamos cometendo um equívoco maniqueísta, acreditando que uma ação do Estado mais abrangente e eficaz no atendimento das demandas sociais, no velho estilo keynesiano, agora renovado, poderia, de fato, reverter a crise do capital e assegurar um desenvolvimento social para todos.

Não são poucos os pesquisadores, partidos, sindicatos e movimentos sociais que têm defendido políticas democratizantes do sistema do capital e de seu Estado, buscando realizar um “revival” dos benefícios sociais que caracterizaram os diversos tipos de políticas de bem-estar nos “anos dourados” do capitalismo, há mais de 40 anos.

O Estado vinha de um período de intervencionismo ativo na economia (Keynesianismo), através do estímulo ao investimento estatal direto, incentivo ao crescimento dos mercados de consumo, juntamente ao auxílio decisivo dado à reprodução da força de trabalho, com as políticas sociais de pretenso caráter distributivista[8]. Entretanto, na nova conjuntura de crise, ele passa a atender às exigências do capital em crise por meio de um arsenal de medidas neoliberais marcado pela agressividade e o autoritarismo que tais exigências lhe impuseram. Vimos, assim, consumar-se a substituição da orientação keynesiana pela hegemonia neoliberal na direção dos negócios capitalistas e de seu Estado.

Tal inflexão operada na ação política geral do Estado capitalista não é motivo para espanto. Não há nenhum paradoxo entre o Keynesianismo e a “nova” orientação neoliberal. Se analisarmos a função social do Estado Moderno desde a transição do feudalismo ao capitalismo, quando a burguesia utilizou o absolutismo progressista para realização de seus interesses de classe, veremos que formas aparentemente opostas lhes prestaram serviços similares. A burguesia ganhava tempo até que alcançasse a maturidade política que as revoluções burguesas posteriormente revelaram, podendo, assim, dar forma ao seu Estado[9].

O que importa, ao se observar as aparentes alterações da forma do Estado, é a continuidade da orientação política geral na salvaguarda da reprodução do capital social total. Uma exigência vital, na medida em que o capital, fruto de uma relação social, só pode existir se houver uma tal imposição de poder que lhe dê as garantias políticas necessárias para que assegure, sem abalos, o êxito na exploração do trabalho e na acumulação da riqueza dele extraída.

O Estado não surge na história para simplesmente administrar e organizar coisas; torna-se uma esfera necessária para assegurar o poder dos que têm (proprietários) sobre os que não têm (não proprietários)[10], cuja relação é fundada em antagonismos irreconciliáveis. Estabelece relações de poder baseado na posse e no usufruto, privado e individual, da riqueza socialmente produzida. Portanto, o poder político que ele organiza está associado e subordinado (mas não reduzido)[11] aos interesses reprodutivos do capital e ao poder material que este exerce sobre a sociedade.

O Estado moderno, portanto, na essência, apresenta-se como uma mediação política cuja função é a realização das prioridades reprodutivas do sistema do capital, e para tanto tem que se adaptar a cada circunstância histórica, ou melhor, encontrar os meios mais apropriados a cada fase específica do desenvolvimento capitalista, definindo diferentes conformações históricas segundo os mesmos interesses dominantes.

Portanto, a crítica contra o intervencionismo do Estado feita pelos pensadores neoliberais, expressa uma divergência (e a urgência de se alterar) quanto aos meios e as políticas até aqui utilizadas, propondo a introdução de estratégias alternativas que melhor se coadunassem ao cenário de aprofundamento da crise, uma vez que o Keynesianismo não havia dado conta de debelar os efeitos da crise.

O Keynesianismo em nenhum momento contrariou os interesses do capital, ao contrário, foi uma estratégia de recuperação da acumulação do capital impulsionada pela crise que levou à 2ª Guerra Mundial. O próprio Keynes posicionou-se em defesa dos interesses do individualismo burguês sem nenhuma dissimulação ou retórica socializante. Quando propôs a “ampliação das funções do governo” na condução dos investimentos e do incremento do consumo, esclarece que
 
pode parecer (...) uma terrível usurpação do individualismo, eu a defendo, ao contrário, como o único meio praticável de evitar a destruição das formas econômicas existentes como um todo e também como a condição de funcionamento bem-sucedido da iniciativa individual (KEYNES apud MÉSZÁROS, 2002, p.730).

A estratégia keynesiana de intervenção na economia, “retirando” da iniciativa privada algumas das suas funções antes exercidas com exclusividade, tinha por finalidade encontrar novas formas de manutenção da ordem do sistema reprodutivo dominante, e garantir a expansão do capital, dado o esgotamento da fase do predomínio das “livres” leis do mercado. Mészáros expõe os elos de continuidade na função social do Estado liberal, presentes também no período keynesiano, ainda que suas proposições aparentemente negassem a liberdade de mercado. Para ele, ainda que

contrária ao laissez-faire, mas longe de ser antiliberal, a solução keynesiana se propunha a tratar das crises capitalistas (...) de um modo que salvaguardaria o sistema pelo aumento – estritamente subsidiário e complementar – do envolvimento do Estado no processo de reprodução econômica, sem o qual o autor [Keynes] temia o pior (...). (MÉSZÁROS, 2002, p.731)

A presença do Estado, a despeito de toda a alegação liberal da superioridade do mercado como meio automático de ordenamento das relações econômicas, é requerida em vista da visível incapacidade do mercado de assegurar a acumulação tranquila e segura do capital. O mercado autorregulável e eficiente passa a depender enormemente da “ajuda estranha” (“extraneous help”) do Estado[12]. Evoca sua ação política como mediação direta nos processos econômicos. Não mais somente como um complemento do poder político ao poder material exercido pelo capital, mas como interventor direto no ineficiente e problemático automatismo do mercado.

O Keynesianismo expressa, naquele momento histórico, a utilização do poder político para imposição, através do Estado, das medidas necessárias à acumulação e expansão do capital então ameaçadas. No período anterior, a reprodução ampliada do sistema era garantida por meios fundamentalmente econômicos, ficando o poder político restrito apenas a algumas funções básicas de garantia da ordem e da propriedade, de legitimação ideológica e de sustentação jurídico-legal.

No entanto, a alternativa keynesiana não poderia durar para sempre, uma vez que as contradições imanentes ao sistema se recolocariam novamente em níveis superiores. O apoio fornecido até então, pela intervenção keynesiana, se deu através da disponibilidade de fundos para a reprodução da força de trabalho[13] (saúde, educação básica subsidiada pelo Estado), a garantia da reprodução do capital fixo, a concessão de “subsídios maciços diretos sob as mais variadas formas”, (tais como, fundos de pesquisa, “lucrativos contratos estatais”, etc.) investimento em infraestrutura, “administra[ção] [do] sistema de seguridade social” (para “manter (...) uma quantia significativa de poder de compra”), etc... (MÉSZÁROS, 2002, p.732-734) Tudo isso teve um efeito extremamente positivo, enquanto o sistema pode manter afastadas as contradições estruturais que produzem suas crises. O capital crescente, e ávido por valorização, cometeu todos os excessos acumulativos sem a correspondente capacidade de dar vazão à superprodução.

Já no final dos anos 60, os países avançados passam a enfrentar grandes déficits fiscais com o endividamento dos Estados, como vimos, o que juntamente com seu enorme envolvimento direto com a reprodução das relações econômicas, esgotam a capacidade do Estado em atender às exigências cada vez maiores de um sistema em vias de mergulhar numa crise estrutural.

A ajuda keynesiana para tirar o capitalismo da crise do pós-guerra pode apenas protelar seus efeitos, e impulsionar para um nível mais profundo as contradições intrínsecas do sistema que retornam com mais força no final dos anos 70. Para Mattick (2010, p.8), “a solução keynesiana para os problemas econômicos que afectam o mundo capitalista pode proporcionar apenas um benefício temporário, e (...) as condições nas quais pode ser eficaz estão em curso de extinção”.

IV. O neoliberalismo e a condenação de Keynes

O Neoliberalismo, que se instaurou nos países capitalistas avançados a partir do final dos anos 70, surge condenando o intervencionismo do Estado como uma heresia liberal, algo inaceitável para o livre desenvolvimento da economia de mercado. As ideias defendidas por Hayek aguardaram por quase 30 anos a oportunidade de se transformar na alternativa estratégica à insustentabilidade do alto comprometimento fiscal do Estado keynesiano, responsável por déficits orçamentários crescentes e atolado em custos inadministráveis[14].

O Estado e Keynes atraíram toda a ira neoliberal e transformaram-se nos culpados da interrupção do ciclo de crescimento econômico contínuo que caracterizou o período do Welfare State.

A crise estrutural que se impõe como desdobramento do colapso da expansão sustentada com a “ajuda estranha” do Estado no pós-guerra exigia mudanças. Mudanças importantes em relação à intervenção keynesiana, que apareceram, segundo Mészáros, “pelo menos na ideologia e nas medidas políticas anti- trabalhistas, mesmo que, significativamente, não na prática econômica de financiamento do déficit patrocinada pelo Estado”. A proposição de Hayek, argumenta Mészáros, que continha
 
alegações de pureza econômica, associada à sua autocontraditória oposição à ‘interferência do Estado’, jamais poderia sequer sonhar em oferecer mais do que um estranho equivalente à "fase da parada" [stop phase] do Keynesianismo. Na verdade, o otimismo fatalmente presunçoso de Hayek precisava da intervenção do Estado nas questões econômicas numa escala consideravelmente maior – na forma de políticas do Estado (...) (ainda que verdade seja dita, com pouquíssima eficácia econômica sustentável) (MÉSZÁROS, 2001, p.198).

E não poderia ser diferente, uma vez que o Estado moderno, desde a fase originária do capitalismo, foi fundamental para a proteção e consolidação dos interesses capitalistas. O Estado Moderno constituiu-se no comando político necessário para a imposição do novo modo de produção sobre a classe trabalhadora e o ordenamento das forças capitalistas concorrentes em benefício da reprodução ampliada do capital[15]. Mesmo no período do liberalismo clássico ele jamais deixou de ocupar um papel vital na defesa dos interesses prioritários da expansão do capital, dosando sua presença de acordo com as demandas de lucratividade dos capitalistas.

O que se apresenta com caráter inovador, no que viria a se constituir nas medidas neoliberais de enfrentamento da crise estrutural do capital, é o apelo crescente, ainda que de forma dissimulada, à intervenção de “meios extraeconômicos” em auxílio à pretensa autossuficiência do mercado. Ao contrário do que propunha a retórica apologética da autorregulação do mercado em contraposição ao intervencionismo estatal keynesiano.

Hoje, mais do que antes, alerta Mészáros,

o Estado capitalista precisa (...) assumir um papel intervencionista direto em todos os planos da vida social, promovendo e dirigindo ativamente o consumo destrutivo e a dissipação da riqueza social em escala monumental. Sem tal intervenção direta no processo sociometabólico, que age não mais apenas em situações de emergência, mas em base contínua, torna-se impossível manter em funcionamento a extrema perdularidade do sistema capitalista contemporâneo. (MÉSZÁROS, 2002, p.700)

A condenação do Keynesianismo, por Hayek e seus seguidores neoliberais, mediante a acusação dos prejuízos resultantes da hipervalorização do papel do Estado em detrimento da alegada eficiência das leis do mercado na organização da ordem social dominante, se revela altamente contraditória, pois a ajuda do Estado torna-se ainda mais importante na sustentação do sistema do capital sob a crise estrutural.

Tal tendência contraria um dos fatores decisivos para a legitimidade alcançada pelo capitalismo desde sua origem, ao suplantar a forma feudal de exploração do trabalho servil fundada em meios eminentemente políticos, e oferecer a “liberdade” política como requisito à exploração diretamente econômica do trabalho “livre”, forma muito mais eficiente de produção do excedente. A “escravidão assalariada” inaugurada pelo capitalismo obteve enormes vantagens com a desoneração dos deveres e custos da manutenção da força de trabalho, além de obter dela uma subordinação “voluntária”[16], obrigada que foi, por meios violentos[17], a aceitar este como o único meio de garantir sua existência material.

A esta configuração contemporânea da relação entre economia e Estado, Mészáros denomina de “hibridismo do controle sociometabólico”[18], e aponta a presença do Estado, agora “em nome do big business[19], tão acentuada como no período anterior, apesar de negada pelo Neoliberalismo.

Desse modo, para o autor, pode-se dizer que

o século XX testemunhou a ascensão à proeminência de forças e procedimentos “extra-econômicos” que costumavam ser avaliados com grande ceticismo e rejeitados como estranhos à natureza do sistema do capital no momento de sua triunfal ascensão histórica. (MÉSZÁROS, 2002, p.822)

Todo este processo contraditório e ideologicamente ocultador das contradições insanáveis do sistema em crise, por um lado, dota o Neoliberalismo de certa vantagem protelatória na administração dos problemas sociais e econômicos. Por outro lado, é um forte indicador das alterações estratégicas requeridas pela ordem do capital, as quais, ao invés de impulsioná-lo para um novo patamar de expansão, o faz incorporar anomalias[20] que comprometem sua existência, e deterioram sua legitimidade reprodutiva fundada em fatores predominantemente econômicos.

O esgotamento do Keynesianismo, após 30 anos de Welfare State, e a retomada da “ajuda estranha” do Estado para suprir as demandas acumulativas na era neoliberal, levam a crer que a variedade de recursos mágicos do sistema está se esgotando. A mediação política do Estado torna-se cada vez mais autoritária e repressiva sobre os trabalhadores, visando à contenção das insatisfações sociais diante da incapacidade do capital de oferecer condições materiais de existência minimamente aceitáveis. Não podem reconhecer a “inadequação da ‘ajuda estranha’ que o Estado (...) [pode] oferecer sob as circunstâncias da crise sistêmica que se aprofunda.” (MÉSZÁROS, 2002, p.734)

Keynes é condenado por Hayek e este, usando recursos vitais, todavia negados, da era keynesiana é desmascarado pela crise estrutural do sistema global, dada a ineficiência das “novas” medidas adotadas para tirar o capital da crise.

Do ponto de vista dos trabalhadores, ambas as estratégias formuladas por estes representantes notáveis do que se passou a denominar de Keynesianismo e de Neoliberalismo, oferecem-lhe o mesmo lugar na cadeia produtiva e distributiva da riqueza social. Ainda que tenha tido uma participação maior no consumo geral com algum direito social reconhecido pela primeira, atualmente a última lhe reserva um futuro sombrio de desemprego crescente sem nenhum direito social materialmente significativo.

Mészáros, não hesita em afirmar que a

julgar pelas evidências da história desde o pós-guerra até nossos dias agitados, não importa quantas vezes as duas abordagens substituam uma à outra, ou até venham a se aliar no futuro pelos bem-dispostos donos da política, nem as possíveis variedades do Keynesianismo, nem a orientação econômica do tipo Hayek/Friedman têm probabilidade maior de resolver os inúmeros problemas e contradições da ordem econômica ampliada no Ocidente do capitalismo avançado (...) (MÉSZÁROS, 2002, p.199).

Portanto, iludem-se aqueles que orientam a resistência ou a oposição ao desastre social anunciado pelo continuísmo neoliberal, ancorados em uma esperança de feitos imediatos em benefício da classe trabalhadora com a retomada de um neokeynesianismo, seja de centro-direita, ou de esquerda. Iludem-se aqueles que pensam em alterar a função social do Estado e utilizá-lo como agente facilitador das lutas e conquistas sociais simplesmente ao ocupar seus espaços decisórios vitais. Desse modo, segundo Mészáros,

para as perspectivas da emancipação do trabalho, a importância da luta política e da crítica radical ao Estado - inclusive de suas “instituições democráticas”, principalmente o parlamento - nunca foi tão grande quanto na atual fase histórica do aparente “encolhimento dos limites do Estado”. (MÉSZÁROS, 2002, p.822)

V. Função social do estado e a crise estrutural do capital

A análise aqui desenvolvida sobre o Estado, com base em Mészáros, e a sua utilização pelo Keynesianismo e o Neoliberalismo em benefício indelével do capital e suas personificações, recupera sua função social primordial como esfera de dominação (enquanto “estrutura hierárquica de comando político”) e legitimação do poder material exercido pelo capital sobre a ordem social. Uma ordem social cindida em classes sociais irreconciliáveis em seus interesses vitais.

O Estado, portanto, não pode corresponder à função mediadora (acima dos interesses de classes) pensada pelos liberais, quando entendemos que ele, fundamentalmente, “é, por regra geral, o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe que, por intermédio dele, se converte também em classe politicamente dominante” (ENGELS, 1979, p. 193).

Em especial o Estado Moderno, na fase do capitalismo maduro, passa a se caracterizar de forma mais cristalina por uma intervenção permanente na base da produção material da riqueza, cuja finalidade é proteger e garantir as condições gerais da extração da mais-valia, fonte originária do capital acumulado e condição ineliminável à expansão.[21] É um “pré-requisito indispensável para o funcionamento permanente do sistema do capital” (MÉSZÁROS, 2002), devendo adequar-se a cada momento histórico para o atendimento a estas necessidades, mesmo quando define ações e medidas aparentemente contraditórias.

Assim, podemos entender por que o mesmo Estado democrático que reconheceu a luta pelos direitos sociais em geral e absorveu-os nos marcos do capitalismo, sem qualquer mudança substancial em seus mecanismos de poder político democrático, vem cumprindo, há algumas décadas, a agenda neoliberal sob crescente autoritarismo. O mesmo parlamento que aprovou os benefícios (temporários) ao trabalho, pressionado que foi pela luta de classes, os retira em razão das necessidades e interesses do capital em crise, contando muitas vezes com a presença das mesmas personificações do capital do passado. Não há qualquer incompatibilidade, antes ou depois, na função social exercida pelo Estado. Alteram-se apenas historicamente as formas e os recursos envolvidos no atendimento aos interesses do capital social global.

As contradições imanentes do sistema do capital e a ação das forças centrífugas de suas unidades produtivas exigem a constituição de um comando político em separado, cujo objetivo é “complementar – no nível apropriado de abrangência – os constituintes reprodutivos materiais” do sistema. Há uma “reciprocidade dialética entre a estrutura de comando político e a socioeconômica”. O princípio estruturador do Estado, em todas as suas formas, “é o seu papel vital de garantir e proteger as condições gerais da extração da mais-valia do trabalho excedente” (MÉSZÁROS, 2002, p.121).

Desse modo, no decorrer de todas as fases do desenvolvimento capitalista, o Estado tem por finalidade sustentar uma ação coesiva que realize os objetivos acumulativos e expansionistas do capital, independentemente dos mecanismos utilizados, os quais, ainda que aparentem ser contraditórios, não deixam nenhuma possibilidade para que se coloquem os interesses do trabalho acima dos interesses do capital (MÉSZÁROS, 2002).

Nesse sentido, considerando a relação, entre o Estado e a base material da sociedade capitalista, de complementaridade com funções distintas, é insuficiente analisar a crise atual atribuída ao Estado (incompetente, ineficiente, perdulário etc.) sem articulá-la ao desenvolvimento do sistema do capital como um todo, no cenário da crise estrutural. Da mesma maneira que é ilusório pensar que com medidas administrativas racionais, gerenciais e mais eficientes podemos reverter a relação de subordinação do público aos interesses privados da acumulação capitalista.

O que está implícito na posição daqueles que acusam o Estado de ser um dos principais responsáveis pela crise do sistema é a intenção de aprofundar sua inadequação para deslocá-lo de funções públicas que se tornaram atrativas para o capital privado, ou torná-lo mais dócil à penetração do capital financeiro especulativo através do relaxamento de restrições ao fluxo de capitais antes operantes. O Estado torna-se mais escandalosamente defensor de interesses monopolistas financeiros, abrindo-se para a terceirização de serviços e funções, e para a ampliação de fundos de investimentos criados a partir de suas próprias empresas estatais. Traz para o interior de sua função pública agentes comprometidos diretamente com critérios privados de lucratividade e eficiência econômica. É tipicamente uma diluição dos limites entre o público e o privado, em tempos de crise e de busca acelerada de recuperação das taxas de lucro do passado recente.

A partir deste tipo de compreensão do Estado e dos interesses de classe em jogo, sucessivos governos no Brasil têm se prestado a cumprir a agenda neoliberal de forma cada vez mais autoritária e com resultados sociais cada vez mais danosos.

A incapacidade teórica de se identificar as relações de codeterminação entre o Estado e a economia (sem prescindir do primado ontológico desta ante aquele) e a crescente ação do poder político em socorro às necessidades do enfrentamento da crise pelo sistema do capital podem desviar as atenções das forças sociais representativas do trabalho para alternativas ilusórias de recuperação do público no âmbito de um neokeynesianismo, intentando a recuperação da prioridade do público ante o privado. Tal desconhecimento da relação de complementaridade entre o Estado e o sistema do capital, o que significa admitir ilusoriamente que há uma independência do Estado em face dos determinantes estruturais do capital, leva-as a procurar constituir uma contra-hegemonia que, se pautada apenas pelo combate aos princípios da reforma proposta pelo Neoliberalismo, ficará prisioneira dos inquestionáveis marcos estruturais do sistema.

Em palestra proferida no Brasil, Mészáros retoma essa questão:

o Estado Nacional moderno é absolutamente incontrolável nos próprios termos de referência do capital, como uma questão de determinação estrutural insuperável. O fracasso completo de todas as tentativas orientadas para uma reforma do Estado socialmente significativa no decorrer do último século e meio fala inconfundivelmente sobre esta questão (MÉSZÁROS, 2009).

Sem provocar profundas alterações nos determinantes estruturais do sistema do capital não há “reforma da reforma” do Estado que nos direcione à emancipação do trabalho e à superação de toda forma de desigualdade entre os homens.

Por fim, retomamos a recomendação de Mészáros quanto à necessidade da crítica radical do Estado. É urgente recolocá-lo como alvo fundamental na luta política dos trabalhadores no processo de transformação radical das sociedades capitalistas e pós-capitalistas. Não no sentido das forças políticas dos trabalhadores capacitarem-se para gerenciar a crise do capital, mas para, ao visar à preparação de um processo social mais amplo e radical de transformações estruturais simultâneas, colocá-lo sob o controle dos trabalhadores como um primeiro passo transicional para a devolução integral do controle social ao trabalho emancipado, rumo à consolidação de uma sociedade sem capital e sem Estado.

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Notas:
[1] Este artigo, em uma forma reduzida, foi publicado na Temporalis, nº 15, 2009 – Revista da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS). Na versão atual ampliada este artigo foi publicado na coletânea Marx, Mészáros e o estado. São Paulo: Instituto Lukács, 2012.
[2] Professora doutora da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
[3] Com base em Marx, afirma Mandel (1990, p. 211/219) em seu estudo sobre a crise do capital que a “ crise econômica capitalista é sempre uma crise de superprodução de mercadorias”, constituída pelo “excesso de mercadorias sem realização do lucro médio esperado”, bem como pela “manifestação da queda da taxa de lucro”. Mais adiante, acrescenta: “as flutuações da conjuntura são sempre, em última análise, flutuações de acumulações e, portanto, de reprodução ampliada de capital. Mas o processo de reprodução do capital é precisamente a unidade do processo de produção e reprodução, como Marx precisou detalhadamente no Tomo II de O capital”.
[4] Só realizada sobre a repressão dos segmentos mais radicais dos trabalhadores que resistiram à política de conciliação de classe, e à disseminação de formas autoritárias de governo na periferia do capitalismo; nos países que não puderam ser incluídos, da mesma maneira, nos acordos de classe dos países de capitalismo avançado que adotaram as políticas do Welfare State. Segundo estudo de Lessa (2011), sobre o Welfare State, é farta a literatura que afirma que a conciliação de classes e a democracia que predominaram nestes casos tiveram como complemento necessário o uso da repressão e da tortura como estratégia de Estado.
[5] A conceituação da crise como estrutural encontra em Mészáros (2002, p.482/797-800) uma substanciosa fundamentação, distinguindo-a das crises anteriores do capitalismo. Uma crise estrutural, segundo ele,
afeta a totalidade de um complexo social em todas as relações com suas partes constituintes ou subcomplexos, como também a outros complexos aos quais é articulada”. O que não quer dizer que o sistema do capital esteja impedido de somar novos instrumentos ao seu já vasto arsenal de autodefesa contínua. Porém, no decorrer do tempo, para o autor, a situação global do sistema se agrava, uma vez que esta maquinaria tem sido utilizada com frequência crescente e com eficácia decrescente, sem que se vejam soluções duradouras que revertam as tendências fundamentais do sistema do capital no sentido do bloqueio de suas válvulas de escape expansionistas. Assim, uma crise estrutural não está relacionada aos limites imediatos, mas aos limites últimos de uma estrutura global". 
[6] Nos EUA, em 1996, “os ativos dos fundos de pensão alcançavam 4.752 bilhões de dólares, correspondendo a 62% do PIB americano.” (CHESNAIS, 1999, p.34).
[7] Lembra-nos Mandel (1990, p.231) que toda “crise de superprodução constitui uma agressão massiva do capital ao trabalho assalariado.” O que se traduz, segundo ele, em mais desemprego, aceitação de perdas salariais, aceleração do ritmo da produção, piora das condições de trabalho e redução da rede de proteção social.
[8] Distributivistas aqui tem relação com medidas exclusivamente voltadas para a esfera da distribuição, deixando intactas as relações de produção, no mais puro estilo liberal. A finalidade era distribuir parcela da riqueza entre estratos diferentes dos trabalhadores, mas jamais alterar a proporção relativa da riqueza entre o capital e o trabalho no conjunto do sistema do capital.
[9] A esse respeito consultar Laski (1973).
[10] A partir de Maquiavel (O príncipe), a filosofia política não tem como ignorar que a função primordial do Estado é administrar homens (classes) em conflito, muito mais que territórios, ou coisas. (GRUPPI, 1986, p.8).
[11] Sobre a relação de “reciprocidade dialética” entre o capital e o Estado, analisada por Mészáros, consultar os capítulos 2, 13 e 17 do Para além do capital (São Paulo: Boitempo, 2002).
[12] Mészáros se refere à “característica comum a todas essas tentativas de enfrentar a crise capitalista no século XX foi a de que, não importa por quais diferentes vias, todas forneceram, sem uma única exceção, a intervenção estatal maciça como ‘ajuda estranha’ exigida pelo sistema para a continuação da sua sobrevivência.” (MÉSZÁROS, 2002, p.730) 
[13] As políticas sociais implementadas pelo Estado keynesiano levaram à ilusão, até hoje sustentada por forças políticas de direita e de esquerda, de que se estava caminhando em direção a uma redistribuição irreversível e sustentável da riqueza, a tal ponto que os primeiros acusavam tais políticas de anticapitalistas, e os últimos, nutriam a esperança de estarmos caminhando gradualmente ao socialismo. Mattick (2010, p.219-220) comenta que as “medidas de carácter social, nomeadamente os subsídios de desemprego, pensões e assistência na doença, são também atribuídas ao Keynesianismo, embora a maioria delas tivesse sido criada na economia do laissez-faire, pré-keynesiana. Estas medidas não têm nada a ver com qualquer tipo de redistribuição do rendimento (...). Só são ‘sociais’ na medida em que estão consagradas na lei e, por isso, inserem-se na tendência geral de aumento do controlo do Estado sobre a vida social. Não aumentam o rendimento dos trabalhadores, pois estes pagam muito mais em impostos e contribuições para os vários organismos de segurança social do que o que recebem em prestações sociais”. G. Kolko (Wealth and Power in America, Nova Iorque, 1961, p.39), citado por Mattick (2010, p.220), afirma que “nos Estados Unidos, ‘as despesas com a segurança social não alteraram o nível de vida das classes de rendimentos mais baixos acima do que seriam alcançados se não estivessem obrigados a pagar impostos federais.’” 
[14] Os remédios keynesianos do Estado deixam de produzir os efeitos estimuladores do crescimento, passando a "ser rejeitados nos ‘países capitalistas avançados’ do Ocidente, quando seus custos começaram a se tornar inadministráveis” (MÉSZÁROS, 2002, p.731). 
[15] Mészáros indica existir, assim, uma relação de simultaneidade entre o capital e o Estado Moderno: “o capital chegou à dominância no reino da produção material paralelamente ao desenvolvimento das práticas políticas totalizadoras que dão forma ao Estado moderno.” (MÉSZÁROS, 2002, p. 106)
[16] Ver Marx (1978).
[17] Processo longamente analisado por Marx no período da Acumulação Primitiva do Capital. (MARX, 1984)
[18] Mészáros alerta para o fato de que “vivemos numa era em que, graças às dinâmicas internas de “hibridização” do controle sociometabólico estabelecido, a dimensão política é muito mais proeminente do que na fase clássica de ascendência histórica do capital. Naturalmente, o exame adequado deste problema não deve restringir-se às instituições diretamente políticas, como o Parlamento. Ele é muito mais amplo e mais profundo”. (MÉSZÁROS, 2002, p.821)
[19] Mészáros acrescenta: “agora mais do que nunca em nome do big business”, somada à imposição também de uma “série inteira de leis repressivas sobre o movimento dos trabalhadores”. (MÉSZÁROS, 2002, p.821)
[20] Segundo Mészáros (2002, p.734), toda essa ”ajuda estranha” para administrar a crise do capitalismo no século XX, “torna o sistema muito diferente de sua forma alcançada no apogeu da ascensão histórica do capital”.
[21] O Estado passa a transferir “parte do excedente de capital sob a forma de impostos aos capitalistas”, os quais usufruem dos fundos públicos para realizar seus investimentos. O Estado é convocado a atuar diretamente na contraposição “à tendência decrescente da taxa de lucro” (TEIXEIRA, 1996, p.214). E acrescenta Mandel (1995, p.116) - ocorre um “deslocamento dos gastos estatais (nunca tão altos como a partir dos anos 80)”, que migrarão dos gastos sociais para as despesas militares, subsídios à iniciativa privada, “respaldo a instituições financeiras falidas” e atendimento ao “pagamento de juros da dívida pública”. 
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Bibliografia:

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