segunda-feira, 6 de outubro de 2025

A miséria do “anti-historicismo”


por István Mészáros

A passagem mais famosa em que Marx resume sua posição sobre a dialética entre a base e a superestrutura é a seguinte:
Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as relações jurídicas, bem como as formas de estado, não podem se explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais da existência, em suas totalidades, condições estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e dos franceses do século XVIII, compreendia sob o nome de “sociedade civil”. Cheguei também à conclusão de que a anatomia da sociedade burguesa deve ser procurada na economia política. [...] Na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. [...] A transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura. Quando se consideram tais transformações, convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção — que podem ser verificadas fielmente com a ajuda das ciências físicas e naturais — e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas, sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim. Do mesmo modo que não se julga o indivíduo pela ideia que de si mesmo faz, tampouco se pode julgar uma tal época de transformações pela consciência que ela tem de si mesma. É preciso, ao contrário, explicar essa consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade. Eis por que a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir.[1]
Em primeiro lugar, deve-se grifar a importância da observação de Marx de que “convém distinguir sempre” entre as transformações materiais e as formas ideológicas. Pois, surpreendentemente, com frequência as interpretações não apenas passam completamente ao largo da questão, mas conseguem transformar as visões de Marx em seu exato oposto. Contudo, uma leitura atenta deixa muito claro que o objetivo de Marx é:
  • 1. focar-se na distinção em si, enfatizando a importância vital de manter constantemente em mente as diferenças qualitativas nela implícitas;
  • 2. insistir que a superestrutura não pode ser determinada com a mesma precisão que a estrita “transformação material das condições econômicas de produção”;
  • 3. indicar que como há uma interação dialética entre a superestrutura e a base material — e que, portanto, ambas afetam uma à outra de maneira profunda, assim constituindo conjuntamente um todo orgânico —, por implicação: o desenvolvimento geral de todo o complexo não pode ser “verificado fielmente com a ajuda das ciências físicas e naturais”.
De modo estranho, no entanto, a passagem é interpretada como se Marx tivesse dito: “convém nunca distinguir entre a transformação material das condições econômicas de produção e as formas ideológicas”. Quando tais qualificações vitais são desprezadas, está aberto o caminho para a construção de um edifício totalmente irreconhecível do marxismo, de acordo com uma visão de ciência tipo-fetichista. O resultado necessário desse tipo de leitura equivocada é uma distorção reducionista, a despeito do intento subjetivo por trás dela: seja o objetivo o de produzir algum “renascimento” estruturalista/marxista ou, ao contrário, aquele de suprir a agradecida plateia das expectativas culturais/políticas da burguesia com ainda outra “refutação final” do marxismo e seu alegado “historicismo”.

Podemos ver as  consequências de se identificar a concepção marxiana com um modelo de ciência natural no celebrado ataque de Popper ao marxismo. Em A miséria do historicismo[2] — título que, segundo o autor, “teve a intenção de aludir ao livro de Marx, A miséria da filosofia[3] — ele orgulhosamente anuncia que “consegui[u] elaborar uma refutação do historicismo”[4]. E é de tal maneira que se desenrola a linha de raciocínio dessa tão aclamada “refutação”:
1. O curso da história humana é fortemente influenciado pelo crescer do conhecimento humano. (a verdade dessa premissa tem de ser admitida até mesmo por aqueles para quem as ideias, inclusive as ideias científicas, não passam de meros subprodutos de desenvolvimentos materiais desta ou daquela espécie.)
2. Não é possível predizer, através de recurso a métodos racionais ou científicos, a expansão futura de nosso conhecimento científico. (Essa asserção pode ser logicamente demonstrada por meio de considerações que são feitas adiante.)
3. Não é possível, consequentemente, prever o futuro curso da história humana.
4. Significa isso que devemos rejeitar a possibilidade de uma história teorética, isto é, de uma ciência social histórica em termos correspondentes aos de uma física teorética [grifos de Popper]. Não pode haver uma teoria científica do desenvolvimento histórico a servir de base para a predição histórica.
5. O objetivo fundamental dos métodos historicistas está, portanto, mal colocado; e o historicismo aniquila-se.[5]
Como podemos ver, toda a “refutação” parte da invenção de um boneco de palha [straw-man] que depois pode ser nocauteado ou “aniquilado” com a maior facilidade. Esse prestativo boneco de palha é produzido pela substituição do complexo modelo dialético de base e superestrutura por uma caricatura absurdamente reducionista, segundo a qual as ideias “não passam de subprodutos de desenvolvimentos materiais”. Está é, obviamente, uma forma bastante grosseira de evitar a questão, posto que o autor pré-fabrica para seu próprio uso um alvo conveniente, que é “feito sob medida” para a refutação circularmente antecipada.

E esse é apenas o perímetro externo da teia de tautologias a partir da qual a “refutação” popperiana é construída. O próximo círculo é tecido ao separar, por definição — e, é claro, de forma arbitrária —, a produção do conhecimento das condições sociais e históricas de sua produção, de modo que se possa opor esse conhecimento artificialmente desencarnado às determinações e desenvolvimentos sociais/históricos.

Para ser exato, esse tipo de conhecimento desencarnado é imune às influências sociais e à possibilidade de previsão. Entretanto, ao definir circularmente o conhecimento de um modo que corresponda aos requisitos da “refutação” autoantecipadora, a realidade do conhecimento — com as condições reais de sua produção — devem desaparecer sem deixar rastros. Pois, no mundo real, o desenvolvimento do conhecimento é dialeticamente entrelaçado com os processos sociais, e é uma questão de grau quanto eles (a) influenciam e (b) são previsíveis no que se refere ao impacto recíproco que exercem um sobre o outro.

Portanto, enquanto é de fato impossível prever o aparecimento desse ou daquele item particular de conhecimento em um determinado momento na história — assim como é impossível prever os eventos particulares pelos quais uma tendência social-histórica afirma a si mesma — não é de modo algum impossível apreender a conexão entre a emergência e o posterior desenvolvimento de um certo tipo de conhecimento e as determinações sociais-históricas de amplas bases das quais tanto o conhecimento científico de uma era quanto o quadro institucional/instrumental da formação social correspondente se articulam em seus detalhes múltiplos.

Significativamente, os dois qualificadores são omitidos das deduções de Popper. O grau em que o desenvolvimento do conhecimento pode ou não ser previsto torna-se uma categórica negação da possibilidade de sua previsão. Ao mesmo tempo, não é feita nenhuma tentativa de especificar o grau em que o desenvolvimento “não previsível” do conhecimento — que, em si, está sujeito às “necessárias qualificações dialéticas” — invalida a previsão social/histórica em geral. (Em outras palavras, o que é rudemente distorcido aqui é que, como o desenvolvimento do conhecimento de fato é previsível até certo grau no sentido há pouco indicado, e como o avanço do conhecimento é, em si, apenas um dos fatores envolvidos no desenvolvimento social, a previsão histórica é de fato possível em um grau bastante significativo.) Soa muito melhor — e sustenta mais convincentemente a afirmação “consegui elaborar uma refutação do historicismo” — se se puder declarar categoricamente que, posto que o crescimento do conhecimento é imprevisível, por uma questão de impossibilidade lógica, portanto, a predição histórica é a priori impossível em outra que não a mais míope das escalas. De todo modo, o problema é que a omissão demasiadamente entusiástica das qualificações necessárias torna falaciosa a “refutação”/dedução popperiana, mesmo em seus próprios termos de referência.

Mas talvez a parte mais reveladora da teia popperiana de tautologias seja seu círculo interno e “prova derradeira”, como enunciado no ponto (4). Segunda esta, “não pode haver uma teoria científica do desenvolvimento histórico” porque nenhuma concepção histórica pode almejar ser como a “física teorética”. Aqui, mais uma vez, uma medida arbitrária é assumida por definição como o princípio orientador autoevidente de todo discurso racional sobre a ciência e a história, e, portanto a “refutação” é consumada ao concluir circularmente que o “historicismo” não equivale à medida arbitrariamente assumida.

Na verdade, a medida supostamente autoevidente é apenas uma peneira feita de enormes buracos — de fato tão grandes que até mesmo boa parte da ciência natural passaria por eles, sem mencionar a totalidade da ciência social — unida por nada mais firme e sólido que uma hostilidade ideológica cruzada [crusading] em relação ao marxismo.

O título de outro livro cruzado de Popper — A sociedade aberta e seus inimigos[6] — fala por si só a esse respeito. Qualquer coisa que não se encaixe no padrão de apologeticamente remendar e encobrir as rachaduras da ordem estabelecida — especialmente a ideia do automanejo da sociedade socialista pelos produtores associados, em conformidade com um plano geral que eles estabelecem para si mesmos — é categoricamente rejeitada ao ser rotulada de “holismo” e “perfeccionismo pré-científico”. Podemos ver o interesse ideológico sob a superfície desse exorcismo-por-rotulação nas seguintes linhas:
Razão adicional para considerar o enfoque holista da ciência social como enfoque pré-científico está em que contém um elemento de perfeccionismo. Compreendendo que não podemos transformar a terra em um céu, mas que podemos melhorar as coisas um pouquinho, também compreendemos que as coisas são passíveis de melhora gradual, pouco a pouco.[7]
A lógica desse procedimento “científico” é realmente reveladora. Primeiro, a ideia de melhorar as condições de vida por meio de grandes mudanças na sociedade é transformada em “um elemento de perfeccionismo” (e ipso facto condenado ao inferno como “pré-científico”). Em seguida, o alegado elemento do perfeccionismo é retoricamente igualado ao desejo de se ter, indiscriminadamente, “a terra em um céu” (e rejeitado como uma autoevidente absurdidade pela força da imagem em si). Tendo, pois, limpado o terreno — não por prova ou raciocínio, mas por retórica e rotulação — o autor pode agora apresentar a alegação totalmente insustentável (objetivo subjacente de todo exercício) segundo a qual “só podemos melhorar as coisas um pouquinho”. Por fim, o arbitrariamente assumido “pouquinho” estipula o único “método científico”concebível apropriado ao seu objeto: o “pouco a pouco” da “engenharia social” apologética confinada à manipulação tecnológica.

Naturalmente, a afinidade para com essa postura cruzada entorpece a sensibilidade filosófica daqueles que deveriam saber melhor — pelo menos no nível da lógica formal. Em vez disso, o verdadeiro caráter da “refutação” popperiana — o fato de que seu núcleo central é uma tautologia autorreferencial (o modelo mítico da “física teorética”), envolta numa dupla circularidade, como vimos anteriormente — continua escondido, e a iniciativa é aclamada como sabedoria derradeira. Portanto, graças em larga medida ao fetiche da “ciência” que é usado em suas “refutações” circulares, a gritante hostilidade ideológica — atrelada à falácia lógica — pode satisfatoriamente deturpar a si mesma como “a lógica da descoberta científica”.

De modo característico, até mesmo a especulação mais rebuscada é seriamente contemplada nesse “discurso científico”, contanto que prometa produzir alguma munição útil contra o adversário ideológico. Dessa forma, lemos em A miséria do historicismo:
Há, por exemplo, uma tendência para a “acumulação de meios de produção” (como diz Marx). Dificilmente esperaremos, porém, que ela persista dentro de uma população que decresça rapidamente e esse decréscimo talvez esteja na dependência de condições extraeconômicas, como, digamos, de invenções ou do direto impacto fisiológico (e talvez bioquímico) de uma zona industrial. Há, sem dúvida, a possibilidade de atuação de um número enorme de condições; e, para termos como examinar essas possibilidades, quando buscamos as verdadeiras condições de uma tendência, teremos sempre de tentar imaginar condições sob as quais a tendência em pauta desapareceria. Isso, contudo, é exatamente o que o historicista está impedido de fazer. Ele acredita firmemente em sua tendência favorita e não pode sequer pensar em condições sob as quais essa tendência deixaria de existir. A miséria do historicismo, seria cabível dizer, é uma pobreza de imaginação.[8]
Aqui, mais uma vez, é-nos apresentada uma caricatura de Marx como um materialista mecânico e um determinista grosseiro. Pois, a rigor, Marx não fala genericamente sobre uma “acumulação de meios de produção”, mas define com grande precisão as condições objetivas da tendência historicamente identificada em termos de “composição orgânica do capital”, de “taxa decrescente de lucro”, de “centralização e concentração de capital” etc. O que ele “falha” em fazer, obviamente, é suprir os apologetas do capital com uma lista de “condições” grotescamente extravagantes (de maneira autocongratulatória elogiada por Popper como “imaginação”), que invalidariam a priori sua preocupação com as contradições internas do capital, prefigurando o colapso do sistema.

Certamente, Popper deve saber que se a ciência perdeu seu tempo especulando sobre possíveis “invenções” e sobre todas as “possibilidades concebíveis”, bem como sobre as contrapossibilidades, nunca chegaríamos a levantar um dedo sequer para a realização de qualquer tarefa, pensando que “possivelmente” todas estariam fadadas ao fracasso como resultado de alguma contracondição interveniente “concebível”. Afinal, assim como a atividade prática da vida real em geral — sujeita a uma multiplicidade de restrições objetivas —, a ciência, também, não está preocupada com com a “má infinitude” das extravagantemente abstratas “possibilidades concebíveis”, mas sim com as possibilidades e probabilidades concretas, definidas em termos de sua de sua relevância mais ou menos direta mas pelo menos alguma, para os problemas em questão.

Portanto, rejeitar Marx numa era de população dramaticamente crescente como um historicista “que padece de uma deficiência de imaginação”, por sua suposta falha em falar um século antes sobre uma “população que decresce rapidamente” como a sólida contracondição de sua própria teoria, é algo espantoso. Pois, mesmo se desprezarmos quanto os próprios contraexemplos de Popper erram seu alvo, permanece o fato de que a única forma de satisfazer as condições estipuladas pelo autor — a saber, diluir a validade das tendências sociais/econômicas identificadas, evocando possíveis “invenções” e “incontáveis condições extraeconômicas possíveis”, bem como outras contracondições “imaginadas” “concebíveis” — é não ter nenhuma teoria crítica sobre as reais tendências sociais/econômicas. Mas, é claro, esse é precisamente o propósito do tão celebrado empreendimento popperiano.

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Notas:
[1] Karl Marx, Contribuição à crítica da economia política (trad. Florestan Fernandes, São Paulo, Expressão Popular, 2008), p. 47-8.
[2] Karl Popper, A miséria do historicismo (trad. Octany S. da Mota e Leonidas Henberg, São Paulo, Edusp, 1980). Publicado em 1957.
[3] Ibidem, p. 6.
[4] Ibidem, p. 5.
[5] Idem.
[6] Karl Popper, A sociedade aberta e seus inimigos (trad. Milton Amado, Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia. Edusp, 1987). Publicado em 1945.
[7] Karl Popper, A miséria do historicismo, cit., p. 87, ênfase de Popper.
[8] Ibidem, p. 69.
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MÉSZÁROS, I. Estrutura social e formas de consciência II: a dialética da estrutura e da história. Trad. Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 39-44.
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terça-feira, 20 de maio de 2025

ARTE REALISTA| Ponto de Ônibus

Ponto de Ônibus
Roger Moreira

Ônibus (Não!)
Ônibus (Não!)
Ônibus (Não!)
Ônibus (Não!)

Quê que eu tô fazendo aqui?
Nesse ponto de ônibus
Essas pessoas paradas aqui
Nesse ponto de ônibus

Quando eu tiver dinheiro
É quando eu tiver dinheiro
Eu prometo a mim mesmo
Que eu só vou andar de táxi
É, quê que eu tô fazendo aqui? (Táxi)
Oh, quê que eu tô fazendo aqui?

Ainda se o tempo não tivesse mudado
Ainda se o ônibus tivesse parado
E esse cara, aqui do meu lado
Fica me olhando com cara de tarado

Quando eu tiver dinheiro
É quando eu tiver dinheiro
Eu prometo a mim mesmo
Que eu só vou andar de táxi
Oh, quê que eu tô fazendo aqui? (Táxi)
Quê que eu tô fazendo aqui?

Ônibus (Não!)
Ônibus (Não!)
Ônibus (Não!)
Ônibus (Não!)

Ônibus (Não!)
Ônibus (Não!)
Ônibus (Não!)
Ônibus (Não!)

O motorista não foi nada educado
Passou na poça e me deixou encharcado
Parou à frente, superlotado
E o cobrador que nunca tem o trocado

Quando eu tiver dinheiro
É quando eu tiver dinheiro
Eu prometo a mim mesmo
Que eu só vou andar de táxi
Uh, ó o que eu tô fazendo aqui? (Táxi)

Por que eu? Por que eu? (Táxi)
Aí vem um, aí vem um (Táxi)
Oh, o quê que eu tô fazendo aqui?

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Acústico MTV - Ultraje a Rigor
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domingo, 4 de maio de 2025

Economia formal e imperialismo

 

por Prabhat Patnaik
People's Democracy/2019

A teoria econômica burguesa dominante, que ocupa a posição hegemônica no mundo acadêmico de hoje, é frequentemente criticada por ser “irreal”, ao proceder baseada em suposições que obviamente não correspondem à realidade. Contudo, esta crítica, apesar de válida, não capta a real intenção da teoria, que é a de servir como camuflagem ao imperialismo. O conteúdo teórico da economia burguesa dominante avança um conjunto de proposições sobre o funcionamento do capitalismo que nega qualquer necessidade e, portanto, qualquer papel ao imperialismo no desenvolvimento capitalista. Dado que o imperialismo é, de fato, um elemento crucial ao funcionamento do capitalismo, essas proposições são, por óbvio, “irreais”, mas destacar seu caráter “irreal” não basta. Este caráter “irreal” tem um propósito, e este fato não pode ser ignorado.

Dizer que a economia burguesa serve ao imperialismo não equivale a sugerir que todos os economistas burgueses desempenham deliberadamente este papel. Quando um determinado discurso ganha valor de face, muitos economistas insuspeitos, de modo inocente, se mantêm dentro de seus limites, por razões profissionais e de carreira. Como um determinado discurso ganha valor de face e como aqueles que desafiam seus limites são penalizados profissionalmente, são tópicos pertinentes à sociologia da vida acadêmica, e não serão discutidos aqui. Devo cingir-me à ilustração da minha proposição de que a economia serve para camuflar o imperialismo, e o farei recorrendo a apenas duas teorias padrão.

A primeira é a “teoria do crescimento”, isto é, a teoria que se ocupa do que determina o crescimento duma economia capitalista no longo prazo. A posição mais habitualmente defendida, que foi desenvolvida com rigor por Robert Solow, do MIT (Massachusetts Institute of Technology) e que ganhou um Prêmio Nobel pelo trabalho, o qual foi recentemente utilizado por Thomas Piketty (a propósito, nem Solow nem Piketty podem ser considerados ideologicamente de direita, de forma alguma), é que o crescimento de uma economia capitalista, no longo prazo, é determinado pela taxa de crescimento de sua força de trabalho. É claro que quando a taxa natural de crescimento da força de trabalho é de, digamos, 3% ao ano e a produtividade do trabalho a uma razão capital/produto dada cresce a 2% ao ano devido ao progresso tecnológico (isto é, cada trabalhador hoje equivalerá a 1,02 trabalhador no próximo ano), a taxa de crescimento desta economia, no longo prazo, de acordo com esta teoria, equivalerá a 5%. Resumidamente, a taxa de crescimento da economia equivalerá à taxa de crescimento da força de trabalho, não em unidades naturais, mas em “unidades de eficiência”. Mas isto é apenas uma variação sobre o tema; o ponto básico é que a teoria burguesa predominante, que é ensinada assiduamente em quase todas as universidades do mundo, considera que o crescimento econômico, sob o capitalismo, é limitado pela disponibilidade de mão de obra.

Ocorre que esta é uma proposição notavelmente bizarra, uma vez que, ao longo da sua história, o capitalismo deslocou milhões de pessoas através do globo para satisfazer as necessidades de acumulação de capital. Vinte milhões de escravos foram embarcados à força para cruzar o Oceano Atlântico, da África ao assim chamado “Novo Mundo”, para trabalhar em minas e em plantations. E depois que o tráfico de escravos chegou ao fim, 50 milhões de chineses e indianos (de acordo com uma estimativa) foram transportados, como coolies ou sob servidão por contrato, até a Primeira Guerra Mundial, a lugares distantes como Fiji, as Ilhas Maurício ou as Índias Ocidentais, novamente para trabalhar em minas e plantations, de forma a satisfazer as necessidades do capital metropolitano.

Quando se observa que o capital desenraizou, desta forma brutal, milhões de pessoas para suprir suas necessidades de mão de obra, dizer que a acumulação de capital simplesmente se ajusta com mansidão à disponibilidade de mão de obra interna é incrivelmente absurdo. Ainda assim, é o que a teoria econômica dominante defende. É claro que, se a teoria propusesse que a acumulação de capital fosse limitada pela disponibilidade de mão de obra, se o capitalismo tivesse que se arranjar somente com a força de trabalho interna, e que teria portanto forçosamente de percorrer o globo em busca de trabalhadores e desenraizasse um grande contingente de pessoas para satisfazer as necessidades de trabalho humano, isto é, se se tratasse de uma teoria ex ante utilizada para prover uma explicação do imperialismo (como um meio de superar uma escassez de mão de obra ex ante), estaríamos tratando de algo bem diferente. Independentemente de se concordar ou não com uma teoria dessas como uma explicação central para o imperialismo, tratar-se-ia ao menos de um esforço teórico honesto. Na verdade, o conhecido marxista austríaco Otto Bauer propôs precisamente esta teoria do imperialismo, que foi criticada por Rosa Luxemburgo.

Mas isto não é o que a teoria econômica dominante propõe. Ela diz que a acumulação de capital não é limitada ex ante pela disponibilidade de mão de obra, e sim ex post; seu propósito não é demonstrar a necessidade do fenômeno observável do imperialismo devido ao fator que ela enfatiza, nomeadamente a escassez de mão de obra, mas sim explicar o ritmo real da acumulação de capital em termos da disponibilidade de mão de obra interna sem qualquer referência ao imperialismo.

A bem da verdade, há teorias recentes dentro da economia burguesa mainstream que falam na superação da escassez de mão de obra através do estabelecimento de uma taxa apropriada de progresso tecnológico, de tal maneira que a taxa de crescimento da economia capitalista não mais seja limitada pela disponibilidade de mão de obra. Contudo, tais teorias ignoram completamente o imenso alcance global do capital e a sua tendência a deslocar milhões de pessoas através do globo de forma a atender suas necessidades. Em síntese, a teoria mainstream do crescimento, ao enxergar invariavelmente o capitalismo como um sistema fechado e autocontido, serve para obscurecer o fenômeno do imperialismo. E essa obscuridade caracteriza a economia burguesa como um todo.

A segunda ilustração deste ponto diz respeito à teoria do comércio, que propaga assiduamente a ideia de que o comércio internacional é sempre benéfico a todos os países. Esta visão é sustentada oficialmente por agências como a OMC (Organização Mundial do Comércio), que desejam impor o livre comércio por toda parte. Entretanto, toda a experiência de economias coloniais, como a Índia, fornece ampla evidência na direção contrária. A abertura comercial foi a causa da “desindustrialização” que lançou milhões de tecelões e outros artesãos ao desemprego, graças à importação de manufaturas baratas da metrópole capitalista. Os trabalhadores assim deslocados foram atirados aos campos, o que elevou o custo da terra, baixou os rendimentos do trabalho e deprimiu os ingressos de grande parte da população (excetuando-se, claro, os grandes proprietários da terra que, ao contrário, se beneficiaram do processo); esta foi a gênese da pobreza de massas nessas economias. Ainda assim, estudantes em todo o mundo, incluindo-se os que vivem nesses países, aprendem teorias que propagam as virtudes do livre comércio, ignorando a própria experiência.

Como a teoria mainstream realiza a façanha de “demonstrar” as virtudes do livre comércio? Ela o faz simplesmente por assumir que todos os “fatores de produção” encontram-se plenamente utilizados em cada economia, tanto antes quanto depois da abertura comercial. Se tomamos esta suposição como um dado, naturalmente não há espaço para qualquer “desindustrialização”, uma vez que os artesãos deslocados serão, por definição, completamente reabsorvidos pelo setor exportador em vez de permanecer desempregados ou subempregados. O facto de que o setor exportador numa economia colonial (ou, de modo geral, em qualquer economia do Terceiro Mundo ainda hoje) consiste em commodities primárias cuja produção não pode ser elevada arbitrariamente devido à disponibilidade limitada de terras e que portanto os novos desempregados simplesmente congestionarão o mercado de trabalho em detrimento de todos, é tido como inexistente. Com efeito, toda a acachapante evidência histórica da desindustrialização é tratada como se jamais houvesse ocorrido! E essa teoria obviamente tendenciosa, derivada de suposições deliberadamente construídas, é passada adiante como se sabedoria econômica fosse.

A inanidade da teoria econômica burguesa tornou-se óbvia a todos os que se engajaram na luta anticolonial, de Naoroji e Romesh Dutt a Gandhi e a esquerda. Como resultado, logo após a descolonização, houve um esforço, na Índia e em toda parte, para dizer a verdade sobre as experiências históricas desses países, e sobre a vacuidade da economia mainstream, aos seus estudantes universitários. Lamentavelmente, este não é mais o caso. No esforço de emular as universidades estrangeiras mais bem conceituadas, ostensivamente com o fito de atingir uma melhor qualidade de ensino, todos as instituições de ensino superior destes países propagam tais teorias econômicas burguesas do mainstream que servem para obscurecer o fenômeno do imperialismo aos seus estudantes.

A hegemonia intelectual desempenha um papel crucial no modus operandi do imperialismo; a predominância da teoria econômica burguesa mainstream é um elemento-chave desta hegemonia intelectual.
 
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[0] Tradução de Resistir.info e PCB.
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terça-feira, 25 de março de 2025

ARTE REALISTA| Spam de niver

Sinopse: Olá, [Nome do destinatário]!/h1, Parabéns! Hoje é seu dia! E nós do [Nome da sua empresa]/title não poderíamos deixar passar em branco! Venha até uma de nossas lojas para ganhar 5% OFF em qualquer compra acima de R$ 150,00... (Porta dos Fundos)

Spam de niver (farsa, BRA, 2025) de Bianca Frossard.

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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Sobre o ranking politológico dos liberais

 
por Samuel Braun
Instituto Humanitas Unisinos/2022

Os liberais — e com isso digo os estudados, não os papagaios modinha — não são capazes de escrever algo útil sobre a questão dos russos étnicos da Ucrânia porque parecem não ter o hábito de fazer ciência, ou seja, diferenciar sua corrente teórica da verdade científica. Tratam como uma mesma coisa por essência.

Dou dois exemplos que infectam meu feed: Augusto Franco e Joel Pinheiro da Fonseca. Os dois vêm escrevendo textos onde defendem um frouxo conceito totalizante chamado “democracia liberal”, e a partir dele medem quem está certo ou errado nas relações internacionais.

Augusto fala de um tal V-DEM, que sabemos possuir 5 tipologias de democracias diferentes. Ele fala, contudo, que a liberal é o ápice das demais. Em várias postagens diz que se trata de um percurso onde o número de partidos habilitados à escolha popular é o primeiro e eliminatório critério (referente à democracia eleitoral). Só que nesse método, estranhamente, os Estados Unidos, que só tem dois partidos efetivamente nacionais e não tem voto direto pra Presidente, está no alto do ranking democrático, quando jamais passaria do primeiro critério.

Augusto, como devem saber, ganha a vida com cursos, palestras e consultorias sobre... democracia. Joel ganha a vida escrevendo pra Folha de São Paulo. E lá repete as mesmas coisas, com menos detalhamento teórico. Supostamente a “democracia liberal” seria o paraíso que todos deveriam buscar, passando por níveis inferiores (que Augusto chama de democracia eleitoral, democracia populista, etc).

O que os dois fazem não é um caso curioso de engano semelhante, não é uma coincidência. A própria instituição que elabora o V-DEM publica seus relatórios destacando o V-Dem’s Liberal Democracy Index (LDI). No fim se trata disso, de um ranking de democracias liberais que será usado pelo Banco Mundial, agências da ONU e liberais abroad para impor suas preferências ideológicas sobre os desejos dos povos. O ranking se converte assim numa ferramenta antidemocrática de proa.

Inclusive o relatório anual entrega que se trata de um trabalho voltado para hierarquizar as variedades de democracias conforme sua aproximação com o liberalismo: “For most parts of the Democracy Report the focus is on gradual changes in the LDI”. Efetivamente as páginas finais classificam os países com setas subindo ou descendo entre níveis melhores e piores, partido de Closed Autocracy, passando por Electoral Autocracy e Electoral Democracy, até chegar a Liberal Democracy.

Ainda na publicação do V-DEM os países chamados de autocratas recebem a cor vermelha (do comunismo), e os liberais azul. Embora conceitualmente prevejam variedades de democracias, toda a publicação trata a liberal como a única realmente desejável, e a aproximação ou afastamento dela se converte abertamente em mais ou menos democracia, como usam os liberais citados no post. O resultado é a divisão do mundo entre os democratas (a.k.a. ocidente) e os autocratas (o “terceiro mundo” e todos os adversários da potência central do Sistema Interestatal), como podem ver no mapa.

Os EUA, sem eleição direta pra presidente tem o índice global de democracia 0.73, enquanto Cuba, com votações em todas as questões públicas desde os bairros tem 0.09. Chegam ao absurdo de darem 0,03 pra Cuba em participação política, metade do índice dos EUA! O máximo nessas medidas é 1.0.

Limitados a repetir esse índices sem entendê-los, inclusive porque nunca abrem suas bases de dados para estudar a metodologia, a quase totalidade de liberais repete tanto na economia como na ciência política a afirmação de suas preferências como se fossem meros dados naturais observáveis. E é este mesmo comportamento que anima a teoria liberal das relações internacionais.

A partir de idealizações sobre o que é democracia, previamente circunscritas àquilo que é mais próximo ou mais distante de sua perspectiva econômico-política, supõe ter em mãos um valor absoluto capaz de simplificar qualquer análise. Bastaria, assim, olhar quais regimes mais lhes agradam para descobrir quais regimes seriam mais democráticos, logo, merecedores do prêmio de superioridade ontológica. Profecia autorrealizável, tautologia.

Se os EUA, por hipótese, financiar milícias nazistas contra minorias étnicas, é democracia pois se trata de uma ação de um país classificado como democracia liberal. Se a Rússia enviar soldados para impedir bombardeios sobre essas minorias, é ataque antidemocrático porque a Rússia seria uma autocracia. É o clássico do juiz que julga pelo CPF. Pobre e preto? Culpado. Rico e branco? Inocente.

Guga Chacra tem sido um dos melhores articulistas liberais. Primeiro ele tem sofrido bastante nas suas entradas online na Globo, tendo que desmentir comentários de colegas menos informados e menos estudados que ele. Segundo, tem escrito em sua coluna todos os absurdos que fazem dos EUA um vilão internacional. Isso o diferencia dos ignorantes que ocupam os jornais e os TTs liberais.

Mas, no fim do dia, Guga precisa concluir pela defesa da ação do vilão, pois uma vez que o polo oposto aos EUA é aprioristicamente lançado à coluna das autocracias, não podem constituir uma opção à sagrada democracia liberal que os EUA representam. Já falou certa vez que embora os EUA sejam criminosos internacionais, toda opção disponível à eles é pior. Mesmo nos casos onde está clara a defesa de valores indiscutíveis da humanidade pelos rivais dos EUA, a elevação da tal democracia liberal a valor máximo impõe um black n' white analítico insuperável.

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sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Auguste Comte: a história idealista e o cientificismo


por Henri Lefebvre

Alguns filósofos colocaram de modo simultaneamente histórico e social o “problema” do conhecimento, rejeitando ao mesmo tempo a metafísica. É o caso, notadamente, de Auguste Comte.

Em seu Cours de philosophie positive (1842), ele formulou a célebre pretensa lei dos “três estados”. O espírito humano, segundo Comte, atravessou inicialmente uma etapa teológica, na qual atribui os fenômenos a causas sobrenaturais, ou seja, à ação de poderes arbitrários análogos à personalidade humana (espíritos mais ou menos fantasistas e conscientes, favoráveis ou cruéis). Em seguida, teria surgido o período metafísico, que explica os fatos naturais através de abstrações, de qualidades ocultas tais como a “pedridade” da pedra, a “virtude dormitiva” do ópio, o horror da natureza pelo vazio, a qualidade gravitacional dos corpos pesados, etc.

Finalmente, na era positiva ou científica, à qual chegamos, o espírito renuncia a conhecer as causas, estuda o “como” e não o “por quê” dos fenômenos e se contenta em descobrir as relações constantes e regulares entre esses fenômenos, suas leis.

Teremos mais tarde oportunidade de criticar o positivismo (que se apresenta como uma completa filosofia das ciências) sob outros aspectos. No momento, formularemos apenas algumas observações:

a) a lei dos três estados se apresenta como uma lei do espírito, como uma espécie de fatalidade que seu autor não explica (seria contrário ao “espírito” do seu sistema buscar o por quê delas, sua explicação). Comte não a relaciona de modo satisfatório com a atividade humana, com as relações mais simples e fundamentais do homem com a natureza. Essa “lei” se conserva no ar: é uma “lei” metafísica e idealista.

Se houve modificação no modo humano de considerar a natureza, essa modificação foi adquirida; foi justificada pelos seus resultados práticos; fundou-se na ciência e no efetivo poder do homem sobre a natureza.

Débil diante da natureza, o primitivo — como diz Comte — inventou efetivamente “explicações” fantasistas (e imaginativas) para os fenômenos; essas explicações desapareceram porque a natureza já não mais nos aparece, ou nos aparece em menos grau, como algo esmagador e hostil.

b) Quanto mais se estuda o “pensamento primitivo”, tanto mais se constata que ele envolve certos germes de um pensamento racional; e inclusive, num certo sentido, contém ele elementos superiores ao pensamento das épocas subsequentes. Os sociólogos e etnógrafos, depois de Comte, e em parte inspirados por ele, afirma que todos os primitivos têm a impressão de uma potência obscura, onipresente, que consideram sob um ângulo religioso (o “mana”). Sem entrar no exame detalhado da questão, observemos que essa imagem envolve um sentimento direto e profundo da natureza, de sua unidade. Quando o pensamento se torna mais diferenciado e também mais abstrato, mais analítico, esse sentimento espontâneo se perde. Subsiste apenas na arte; e é essa a razão por que a poesia, e mesmo as artes em geral, retornam obstinadamente ao primitivo (ou à infância que, em certo sentido, é o que em nós corresponde à vida primitiva). A consciência primitiva, portanto, comporta elementos válidos, os quais, precisamente hoje, são recolhidos por nós, embora superados, depurados de suas interpretações místicas, elevados a um nível superior.

c) Do mesmo modo, a época que Comte chamou de “metafísica”, a época da abstração, foi também aquela na qual foram inventados os instrumentos do pensamento e, em particular, a lógica (de Aristóteles e Hegel); não pode assim ser condenado em bloco.

d) Nossa época está longe de ser exclusivamente científica. Contínua penetrada por elementos de pensamento teológico e metafísico, que não podem ser tratados — como diz a escola sociológica — como simples sobrevivências[1]. Essas pretensas “sobrevivências” devem conservar um sentido e, por conseguinte, uma relação com a vida real; manifestam-se não apenas na vida cotidiana, mas nas ciências ou pretensas ciências.

Quando, durante anos, e ainda há bem pouco tempo, os economistas investigavam o papel do ouro na economia política, reunindo-se inutilmente em congressos e comissões internacionais com o objetivo de regulamentar as questões relativas à distribuição do ouro no mundo, o ouro aparecia como uma coisa dotada de poder sobre os homens. Essa coisa, esse produto humano, escapa ao controle e à razão dos homens! Os homens modernos e os economistas assumem diante do ouro a atitude do primitivo diante de um fetiche. Atribuem ao ouro um poder  independente deles; e esse fetiche, que não é mais que o produto dos homens, reina efetivamente sobre eles e adquire esse poder.

Em outras palavras: em todo setor não dominado, como, por exemplo, na economia, a atitude “teológica” ou “metafísica” subsiste; particularmente no setor social onde o homem ainda não domina suas próprias obras.

e) O devir da ciência é um devir social. A ciência matemática nasceu no Egito, na Jônia, na Grécia, antes mesmo do início da era metafísica; e isso por razões precisas, sobre as quais voltaremos a falar.

A lei dos três estados, portanto, representa uma tentativa interessante para colocar em termos históricos e sociais o “problema” do conhecimento; mas não é mais que uma primeira tentativa, muito insuficiente. Em sua brevidade, além do mais infecunda, a lei de Comte não pode substituir uma história precisa do conhecimento, nos diferentes povos e nas diferentes culturas que se sucederam.

A ciência na Idade Média admitia o horror da natureza pelo vazio. explicando assim, a seu modo, o fato já conhecido de que os líquidos, quando aspirados, sobem pelos tubos. E procedia assim por motivos teológicos: o vazio parecia indigno da potência divina. Num certo momento, nas condições da civilização urbana mais aperfeiçoada da época, os encarregados das fontes em Florença viram-se diante de um problema prático: bombear a água a uma altura bastante grande. Constataram que a água no interior das bombas jamais  ultrapassava um certo nível; acima, o vazio. Esse fato entrava em contradição com o princípio então admitido; e essa contradição, que tinha de ser resolvida, estimulou as reflexões de Torricelli. (Descoberta da pressão atmosférica e do barômetro.)

Esse exemplo simples mostra que se exerce uma atividade propriamente intelectual (condicionada historicamente) sobre dados práticos, sociais, experimentais. Essa atividade intelectual é uma reflexão que assume forma determinada e, por conseguinte, metódica e lógica.

Quando Kepler começou seu estudo dos movimentos planetários, imaginava que cada planeta era dirigido por um anjo, “angelus rector”; em sua opinião, a figura descrita sob essa direção angélica devia ser tão bela e tão simples quanto possível. Portanto, tentou inicialmente situar as posições observadas sobre círculos, mas fracassou. Depois, tentou a elipse; foi bem sucedido e houve, nesse sucesso, uma parcela de sorte. Na história do conhecimento (os exemplos poderiam ser multiplicados), a atitude “teológica” — embora em contradição com a atitude científica — nem sempre impede as descobertas, pelo menos em escala individual. (Socialmente, o problema se coloca de modo inteiramente diverso.) E isso porque existe, em toda descoberta, ao mesmo tempo que um processo de pesquisa intelectual e lógica, uma parcela de imaginação e de fantasia individual, uma parcela de gênio individual, que pôde em certos casos ser estimulada pelos temas ou problemas teológicos ou metafísicos[2].

O positivismo de Comte, portanto, simplifica exageradamente a história complexa, acidentada, multiforme, do conhecimento. Em particular, subestima a importância do instrumento, do método intelectual forjado pelos metafísicos: a lógica.

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Notas:
[1] Lévy-Bruhl, Morale et science des mouers, p. 273.
[2] Já que o materialismo dialético foi formulado nos séculos XIX e XX seria evidentemente absurdo exigir de cientistas anteriores, e mesmo daqueles de nossos dias, que raciocinassem segundo o materialismo dialético!
Por isso, os exemplos de descobertas feitas em nome de hipóteses místicas, teológicas ou metafísicas, poderiam ser multiplicados ao infinito. (Citemos, por exemplo, Maupertius e o princípio da menor ação; as descobertas de Flourens, de Claude Bernard, de Pasteur, bem como aquelas de Einstein, que se inspiravam no empiriocriticismo e em Mach, etc. etc.) (p. 254).
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LEFEBVRE, H. Lógica formal. Lógica dialética. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 71-74.
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