Instituto Humanitas Unisinos/2022
Os liberais — e com isso digo os estudados, não os papagaios modinha — não são capazes de escrever algo útil sobre a questão dos russos étnicos da Ucrânia porque parecem não ter o hábito de fazer ciência, ou seja, diferenciar sua corrente teórica da verdade científica. Tratam como uma mesma coisa por essência.
Dou dois exemplos que infectam meu feed: Augusto Franco e Joel Pinheiro da Fonseca. Os dois vêm escrevendo textos onde defendem um frouxo conceito totalizante chamado “democracia liberal”, e a partir dele medem quem está certo ou errado nas relações internacionais.
Augusto fala de um tal V-DEM, que sabemos possuir 5 tipologias de democracias diferentes. Ele fala, contudo, que a liberal é o ápice das demais. Em várias postagens diz que se trata de um percurso onde o número de partidos habilitados à escolha popular é o primeiro e eliminatório critério (referente à democracia eleitoral). Só que nesse método, estranhamente, os Estados Unidos, que só tem dois partidos efetivamente nacionais e não tem voto direto pra Presidente, está no alto do ranking democrático, quando jamais passaria do primeiro critério.
Augusto, como devem saber, ganha a vida com cursos, palestras e consultorias sobre... democracia. Joel ganha a vida escrevendo pra Folha de São Paulo. E lá repete as mesmas coisas, com menos detalhamento teórico. Supostamente a “democracia liberal” seria o paraíso que todos deveriam buscar, passando por níveis inferiores (que Augusto chama de democracia eleitoral, democracia populista, etc).
O que os dois fazem não é um caso curioso de engano semelhante, não é uma coincidência. A própria instituição que elabora o V-DEM publica seus relatórios destacando o V-Dem’s Liberal Democracy Index (LDI). No fim se trata disso, de um ranking de democracias liberais que será usado pelo Banco Mundial, agências da ONU e liberais abroad para impor suas preferências ideológicas sobre os desejos dos povos. O ranking se converte assim numa ferramenta antidemocrática de proa.
Inclusive o relatório anual entrega que se trata de um trabalho voltado para hierarquizar as variedades de democracias conforme sua aproximação com o liberalismo: “For most parts of the Democracy Report the focus is on gradual changes in the LDI”. Efetivamente as páginas finais classificam os países com setas subindo ou descendo entre níveis melhores e piores, partido de Closed Autocracy, passando por Electoral Autocracy e Electoral Democracy, até chegar a Liberal Democracy.
Ainda na publicação do V-DEM os países chamados de autocratas recebem a cor vermelha (do comunismo), e os liberais azul. Embora conceitualmente prevejam variedades de democracias, toda a publicação trata a liberal como a única realmente desejável, e a aproximação ou afastamento dela se converte abertamente em mais ou menos democracia, como usam os liberais citados no post. O resultado é a divisão do mundo entre os democratas (a.k.a. ocidente) e os autocratas (o “terceiro mundo” e todos os adversários da potência central do Sistema Interestatal), como podem ver no mapa.
Os EUA, sem eleição direta pra presidente tem o índice global de democracia 0.73, enquanto Cuba, com votações em todas as questões públicas desde os bairros tem 0.09. Chegam ao absurdo de darem 0,03 pra Cuba em participação política, metade do índice dos EUA! O máximo nessas medidas é 1.0.
Limitados a repetir esse índices sem entendê-los, inclusive porque nunca abrem suas bases de dados para estudar a metodologia, a quase totalidade de liberais repete tanto na economia como na ciência política a afirmação de suas preferências como se fossem meros dados naturais observáveis. E é este mesmo comportamento que anima a teoria liberal das relações internacionais.
A partir de idealizações sobre o que é democracia, previamente circunscritas àquilo que é mais próximo ou mais distante de sua perspectiva econômico-política, supõe ter em mãos um valor absoluto capaz de simplificar qualquer análise. Bastaria, assim, olhar quais regimes mais lhes agradam para descobrir quais regimes seriam mais democráticos, logo, merecedores do prêmio de superioridade ontológica. Profecia autorrealizável, tautologia.
Se os EUA, por hipótese, financiar milícias nazistas contra minorias étnicas, é democracia pois se trata de uma ação de um país classificado como democracia liberal. Se a Rússia enviar soldados para impedir bombardeios sobre essas minorias, é ataque antidemocrático porque a Rússia seria uma autocracia. É o clássico do juiz que julga pelo CPF. Pobre e preto? Culpado. Rico e branco? Inocente.
Guga Chacra tem sido um dos melhores articulistas liberais. Primeiro ele tem sofrido bastante nas suas entradas online na Globo, tendo que desmentir comentários de colegas menos informados e menos estudados que ele. Segundo, tem escrito em sua coluna todos os absurdos que fazem dos EUA um vilão internacional. Isso o diferencia dos ignorantes que ocupam os jornais e os TTs liberais.
Mas, no fim do dia, Guga precisa concluir pela defesa da ação do vilão, pois uma vez que o polo oposto aos EUA é aprioristicamente lançado à coluna das autocracias, não podem constituir uma opção à sagrada democracia liberal que os EUA representam. Já falou certa vez que embora os EUA sejam criminosos internacionais, toda opção disponível à eles é pior. Mesmo nos casos onde está clara a defesa de valores indiscutíveis da humanidade pelos rivais dos EUA, a elevação da tal democracia liberal a valor máximo impõe um black n' white analítico insuperável.
= = =
Nenhum comentário:
Postar um comentário