por José Guilherme Merquior
Segundo Albert Dicey (1835-1922), o jurista liberal que escreveu o clássico The Law of the Constitution, a reforma legal na Inglaterra conheceu duas fases durante o século XIX. De 1825 a 1870, seu objetivo foi primariamente ampliar a independência individual. Desde então, visou à justiça social. Dicey, um liberal conservador, amigo de sir Henry Maine, deplorou o salto do laissez-faire para o “coletivismo”. Outros partilharam seu relato do salto sem endossar a avaliação que fez dele. Eram os “novos liberais” de 1880, convictos de que o “individualismo mais velho” já não era válido no contexto social do industrialismo tardio. Começaram o que um deles, Francis Charles Montague (1858-1935), chamou de “revolta contra a liberdade negativa” — a noção ainda tão central no liberalismo libertário de Mill.[1]
Teóricos como Montague rejeitaram a visão evolucionista dos spencerianos, o uso do darwinismo como uma elegia ao valor ameaçado do individualismo. No livro The Limits of Individual Liberty (1885), Montague armou uma refutação habilidosa da analogia em que se predicava o darwinismo social. A livre competição, afirmou, deixava impotentes os fracos. Mas, na sociedade, os fracos estão longe de serem os piores. De qualquer forma, diferentemente do que acontece na natureza, em sociedade, as vítimas da evolução não são inteiramente eliminadas, porém permanecem como um peso morto no corpo social. Então, por que não os ajudar, especialmente porque a sua degradação termina por prejudicar o conjunto?
A defesa que Montague fez do liberalismo social estava longe de ser anti-individualista. Montague pensou que nos tempos modernos as pessoas diferem em suas personalidades (se não em suas vestimentas) mais do que diferiam no passado; na Idade Média, suas diferentes roupagens recobriam muito mais uniformidade — cavalheiro, burguês e camponês tendiam a partilhar a mesma vida interior ou a falta desta. Não é verdade, argumentou Montague, que a sociedade moderna é de tal forma organizada que deixa pouco espaço para a liberdade individual. O que é desafortunado é que a sociedade está organizada para a consecução de dinheiro, mas desorganizada para qualquer outra finalidade. A mesma fé individualista inspirou as famosas Lectures on the Principles of Political Obligation, pronunciadas em Oxford por Thomas Hill Green (1836-1882) em 1879 (publicadas postumamente em 1886).
A morte prematura de Green não impediu que sua redefinição do liberalismo se tornasse muito influente antes da Grande Guerra. Filho de um clérigo de Yorkshire, Green adotou o hegelianismo na Oxford de meados da era vitoriana. Mas seu hegelianismo era um tanto peculiar. Pois enquanto retinha a ideia do mestre de que a história é uma longa luta pelo aperfeiçoamento humano, ele pôs um acento kantiano na autonomia individual. Tanto em ética como em teoria política, Green salientou o valor absoluto da pessoa como a fons et origo das comunidades humanas.
O novo liberalismo era tão individualista quanto o de Mill. Não obstante, também implicava uma crítica dos pressupostos filosóficos de Mill. Como Montague, Green opôs-se a uma representação do que é humano na qual o conhecimento é, em última análise, reduzido a sensações, e a moralidade, a impulsos, e que encara a sociedade como um amontoado de indivíduos. Isso consistia num ataque franco ao empirismo, ao utilitarismo e à tradição atomista de Bentham-Mill, um ataque levado adiante em nome do idealismo à moda alemã.
Green insistiu em que a ação racional é ditada pela vontade e opção de uma forma que ultrapassa o deixar-se guiar simplesmente pelo desejo ou pela paixão. Ele estava longe da base humana da ética utilitária (e do famoso dito de Hume: “A razão é e deve ser escrava das paixões”). Para Green, os fins racionais da conduta implicam a compreensão de que, quando falamos em liberdade como algo de inestimável, pensamos num poder positivo de fazer coisas meritórias ou delas usufruir. Portanto, a liberdade é um conceito positivo e substantivo, e não um conceito formal e negativo. Nesse sentido, o idealismo do novo liberalismo foi efetivamente uma revolta contra a liberdade negativa no sentido de Locke e de Mill, fundada na ideia hobbesiana de liberdade como ausência de impedimento. Green caminhava de uma preocupação com liberdade de para uma estima novamente despertada de liberdade para.
E o que dizer quanto a suas opiniões a respeito do Estado? O liberalismo clássico fizera recair o peso da justificação sobre a interferência estatal. Normalmente, o Estado devia deixar que a cidadania livremente tratasse de seus negócios. Sua interferência só era legítima em benefício da segurança individual, como uma garantia da livre determinação pela sociedade da maior felicidade para o maior número. Green não era tão minimalista. A função do Estado, ensinou, devia consistir na “remoção de obstáculos” ao autodesenvolvimento humano. Isso era também uma ideia alemã, decorrente de Humboldt.[2] O Estado nunca se podia pôr no lugar do esforço humano para a Bildung, ou cultura pessoal, mas podia e devia “promover condições favoráveis à vida moral”.
Green acreditava que, em sua forma clássica, o liberalismo estava se tornando “obstrutivo”, na medida em que sua receita política minimalista tornava-se crescentemente obsoleta devido à penetração cada vez maior do direito na sociedade, e isso no mesmo passo em que a civilização progredia. A seus olhos, os receios de Maine-Dicey-Spencer quanto a tal tendência erravam o alvo, que consistia na qualidade da interferência estatal, e não no fato de que esta se verificava. Green pensou que é boa coisa a “remoção de obstáculos” mediante reformas esclarecidas que possibilitassem a um maior número de indivíduos gozar das mais altas liberdades. Deve-se estar preparado para violar a letra do velho liberalismo para ser fiel a seu espírito — o amparo à liberdade individual. Isso exigia fortalecer o acesso à oportunidade.
Crane Brinton chamou Green de um salvador do liberalismo.[3] E isso Green foi, porque mudou pressupostos e queria alterar práticas, sem renegar os valores básicos da doutrina. Por exemplo, embora não fosse partidário do laissez-faire, ele não abandonou o liberismo. Considerou a propriedade privada um arrimo essencial ao desenvolvimento do caráter, e resistiu à crença socialista de que o capitalismo é a causa fundamental da pobreza. Convencido de que a independência econômica alimenta a autoconfiança, desejou converter os trabalhadores em pequenos proprietários; e como admirador sincero do liberalista quaker John Bright (1811-1889), ele manteve uma visão enfaticamente não whig anti-aristocrática da história inglesa.[4]
No fundo, a ideia que Green tinha de aperfeiçoamento social consistia em que as classes médias iriam atenciosamente ajudar os pobres a se tornarem bons e conscienciosos burgueses — o que não é tão distante do próprio elitismo cívico de Mill. Como Mill, Green sublinhou a participação política como uma obrigação moral. Seus intérpretes modernos estão certos: Green deu ao liberalismo um recomeço de vida conjugando os valores básicos dos direitos e liberdades individuais com uma nova ênfase na igualdade de oportunidades, e no éthos da comunidade.[5] Ao fazê-lo, ele não conferiu ao novo liberalismo vitoriano tardio qualquer inflexão socialista. Isto ocorreria um pouco mais tarde, na teoria social da Belle Époque, em ambas as margens do canal da Mancha. Mas, com sua filosofia idealista altamente espiritual, Green escreveu o prólogo moral ao liberalismo social de 1900. Pode-se dizer que a carta original para o Estado social britânico, traçada pelo liberal William Beveridge (1879-1963) no Reform Club (onde mais poderia ser?) em 1942, reflete uma preocupação greeniana em equilibrar a segurança social com a liberdade individual. Green foi o pai do rejuvenescimento do liberalismo; efeito obtido mais exatamente na modificação do que na negação do credo clássico.
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Notas:
[1] F. C. Montague, The Limits of Individual Liberty. London, 1885, p. 2.= = =
[2] Como observado por Vittorio Frosini, La Ragione dello Stato: Studi sul Pensiero Politico Inglese Contemporaneo. (1963) Milano, Giuffré, 1976, p. 33.
[3] Crane Brinton, English Political Thought in Nineteenth Century. London, Cambridge University Press, 1949.
[4] A esse respeito, ver Robert Eccleshall, British Liberalism: Liberal Thought from the 1640s to 1980s. New York, Longman, 1986, p. 39.
[5] Ver Melvin Richter, The Politics of Conscience: T. H. Green and His Age. London, Weidenfeld & Nicolson, 1964.
MERQUIOR, J. G. O liberalismo: antigo e moderno. Trad. Henrique de Araújo Mesquista. Rio de Janeiro: É Realizações, 2014.
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