quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

O social-liberalismo de J. M. Keynes



por José Guilherme Merquior

Com a irrupção da guerra, a figura central no liberalismo de esquerda para o mundo de expressão inglesa não foi nem John Dewey nem Hans Kelsen, mas John Maynard Keynes (1883-1946). Não o filósofo-pedagogo, nem o jurista, mas o economista que reformulou a economia política tornou-se a principal referência do liberalismo reconstruído. Em seus Essays in Persuasion (1931), Keynes escreveu que “o problema da humanidade consiste em combinar três coisas: eficiência econômica, justiça social e liberdade individual”. O último princípio mostra a força de sobrevivência das preocupações de Mill, mesmo depois de meio século de especificações sociais-liberais. O segundo apenas provava que os novos liberais da Depressão não abandonariam as inquietações humanas, humanitárias e humanísticas da geração Hobhouse-Duguit-Dewey (os mestres sociais-liberais que haviam nascido por volta de 1860). Mas o primeiro elemento — eficiência econômica — foi uma lição amarga extraída dos traumas da guerra e da depressão mundiais.

Keynes deu ao liberismo ortodoxo o golpe de morte com seu livro The End of Laissez-Faire, de 1926. Mas já em 1919, como primeiro representante do Tesouro britânico na Conferência de Paz de Paris, ele discordara radicalmente da política aliada de sobrecarregar a Alemanha; afirmou em The Economic Consequences of the Peace que o capitalismo vitoriano fora apenas um caso especial, sendo o capitalismo normalmente frágil e instável. Em meados da década de 1929, Keynes compreendeu que o poder leninista estava historicamente decidido a destruir o capitalismo (a despeito das táticas de compromisso da NEP) e que o fascismo sacrificava a democracia para salvar a sociedade capitalista. Restava uma terceira opção, que era salvar a democracia renovando o capitalismo. Esta veio a ser conhecida e praticada como “keynesianismo”.

O revisionismo econômico de Keynes brotava de algo mais amplo que considerações econômicas e políticas: era profundamente vinculado a uma revolução moral. John Maynard Keynes pertencia a uma brilhante geração de eruditos de Cambridge (foi aluno do grande economista Marshall e de A. C. Pigou) determinados a ingressar numa ousada negação da moral vitoriana. Consideravam-se “imoralistas” e inspiraram o assim chamado grupo de Bloomsbury, o círculo literário londrino de Virginia Woolf e E. M. Foster.

Na aurora do século, em Cambridge, o filósofo G. E. Moore (1873-1958) solapara a ética tradicional. Em seu influente livro Principia ethica (1903), Moore afirmou que não há definição que se adapte ao “bem” a não ser diversas formas de “falácia naturalística”. Sugeriu então que se podem fruir delícias em “determinados estados de consciência... como os prazeres das relações humanas e o gozo de belos objetos”. Como logo reparou o companheiro de Keynes, Lytton Strachey, isso lançou fora a ética clássica e o cristianismo, juntamente com Kant, Mill, Spencer e Bradley, sem nada dizer da moralidade convencional em matéria de sexo.[1] Como Strachey, o jovem Keynes não estava acima de situar “os prazeres das relações humanas” em aventuras homossexuais. Numa total relação contra o ethos vitoriano, eles atribuíram uma importância menor ao comportamento e exaltaram exatamente o que os seus antepassados ascéticos, filisteus, que haviam sido severos dissidentes protestantes, obedientemente evitaram: relacionamentos pessoais e experiências estéticas. O avô de Virginia Woolf, sir James Stephen, fora um típico vitoriano: dizia-se que certa vez provara um charuto e o achara tão delicioso que nunca fumou outros. Os imoralistas de Cambridge e Bloomsbury passaram a entregar-se furiosamente a prazeres pecaminosos.

Os contemporâneos socialistas de Keynes, os fabianos como os Webbs e George Bernard Shaw, culpavam o capitalismo pelos males sociais. Keynes apontava para eles uma causa psicocultural, a ética puritana. Sua A teoria geral do emprego, do juro e da moeda (1936) tratou do problema do desemprego subvertendo a doutrina econômica. Keynes basicamente aceitou a microeconomia de Marshall, mas complementou a microeconomia — teoria do valor ou do preço — com um novo grau de atenção a níveis gerais de renda, produção e emprego. Influenciado pela ideia de Marshall de que explicando crescimentos e crises a análise econômica tem de ser separada de outras áreas da economia. Keynes viu no nível de receita, enquanto variável dependente, o problema crucial. Desafiando a equalização convencional de poupança com investimento, mostrou que a poupança, além de ser com frequência menos importante para o investimento do que o crédito, podia exceder a necessidade de investimento.

No cerne da economia clássica estava a Lei de Say, que afirmava que a oferta cria a sua própria demanda. Tradução: toda receita é gasta; o dinheiro não gasto em bens de consumo é poupado mas não entesourado, já que nenhum proprietário racional de poupanças desejaria manter um saldo que não produzisse receita. Keynes, no entanto, mostrou que em algumas circunstâncias o dinheiro é entesourado, se não por outro motivo, por não constituir apenas um meio de troca, mas também uma soma de valor para propósitos especulativos (um meio de adquirir bens no futuro). Assim, deixada a si mesma, a taxa de poupança não significaria alto investimento, acarretando a redução do desemprego. Por conseguinte, Keynes propôs “a eutanásia do capitalista” e “uma socialização um tanto abrangente do investimento”, como a resposta criativa do capitalismo à insistência socialista na socialização da produção. Como foi observado, a prescrição de Keynes residia em que o Estado controlasse os gastos e a demanda, em vez de controlar a propriedade e a oferta. Além disso, a concentração na demanda agregada muito fazia para desarmar a luta de classes, já que uma demanda forte levaria a um tempo a altos lucros e ao pleno emprego, com salários crescentes.

O diagnóstico de Keynes foi, com efeito, muito britânico. As singularidades da situação — o papel chave desempenhado pelo dinheiro, a quase-ausência de investimentos e de acumulação de capital — eram traços britânicos. Já foi dito que, embora Keynes gostasse de pensar em si mesmo como o coveiro que enterrara a economia ricardiana, ele estava apenas adaptando-a. O que Ricardo tinha principalmente feito fora analisar como o resultado da rivalidade entre latifundiários e industriais determina a taxa de acumulação de capital. Keynes, hostil à City[2], substituiu o latifundiário pelo financista e se concentrou no nível de emprego, em vez de fazê-lo na taxa da acumulação.[3]

Mas o keynesianismo projetou a análise de curto prazo de Keynes (sua teoria era defeituosa no que diz respeito a ciclos comerciais e retardamentos) numa receita de longo prazo para crescimento e desenvolvimento, apoiando-se em pressupostos duvidosos quanto à demanda e ao consumo. O próprio Keynes superestimou a racionalidade de políticas econômicas adotadas por governos democráticos — ele ignorou, numa palavra, o que Samuel Brittan chamou graficamente de “as consequências econômicas da democracia”, as múltiplas distorções acarretadas por pressões de grupos de interesses capazes de fazer prevalecer, ou de bloquear, o mercado político democrático.[4] Keynes não quis que o governo invadisse a esfera microeconômica. Mas tal ocorreu, muitas vezes em nome do próprio Keynes, atuando o governo diretamente sobre salários e preços. Keynes procurou a origem das baixas nos instintos entesouradores de uma classe de “capitalistas”. Contudo, Milton Friedman, escrutinando a história monetária dos Estados Unidos, entre a vitória dos Confederados e os anos de Eisenhower, descobriu que a instabilidade decorrera principalmente de inconstâncias no suprimento do dinheiro — e, portanto, do comportamento governamental mais do que qualquer outra coisa.

O paradoxo de Keynes consiste no seguinte: embora tivessem obtido lucros fabulosos, os capitalistas vitorianos haviam preferido investir a consumir; e quando os trabalhadores atravessaram a maior miséria, obedeceram ao invés de se revoltarem. Nada disso subsiste, via de regra, no capitalismo moderno, pós-keynesiano. Já não há mais autodomínio. Hoje em dia, o próprio setor público, com seus exércitos burocráticos, “cabala” para conseguir maiores gastos governamentais, alimentando ainda mais a “crise fiscal do Estado”. Ironicamente, as receitas de Keynes, o antipuritano, só funcionaram enquanto a ética puritana — a saber, ascetismo e abstenção — se manteve como força viva na sociedade capitalista.

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Notas:
[1] Robert Skidelsky chama a atenção para esse fundo de visão do mundo no primeiro fascículo de sua biografia, John Maynard Keynes, Hopes Betrayed 1883-1920 (Londres: Macmillan, 1983)
[2] A parte de Londres onde se estabeleceu a comunidade de negócios. (N. do T.)
[3] Devo essa observação a Marcello de Cecco de Siena. Ver sua contribuição a Robert Skidelsky, ed., The End of the Keynesian Era (Londres: Macmillan, 1977), p. 22.
[4] Cf. Samuel Brittan, The Economic Consequences of Democracy (Londres: Masmillan, 1977).
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MERQUIOR, J. G. O liberalismo: antigo e moderno. Trad. Henrique de Araújo Mesquista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p. 174-8.
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