segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

O ponto de vista da individualidade isolada


por István Mészáros

I. Concepções individualistas de conflito e natureza humana

A glorificação explícita do “individualismo metodológico”, com vistas a transformá-lo em um programa autojustificado e universalmente aceito, é de certa forma um fenômeno recente. Mas qualquer que seja nossa opinião sobre suas afirmações grosseiras e graves deficiências estruturais, o tema em si é da maior importância. Pois, em última instância, é o ponto de vista paradoxal da subjetividade isolada que impõe limites intransponíveis às concepções filosóficas particulares por meio dos desenvolvimentos analisados, não importando quão grandes sejam as discrepâncias entre os pensadores individuais que conceituam subjetivamente sua própria situação.

Em suas “Teses sobre Feuerbach”, Marx definiu a oposição irreconciliável entre sua abordagem e a de seus predecessores materialistas ao afirmar que:

O ponto mais alto a que leva o materialismo contemplativo, isto é, o materialismo que não concebe o sensível como atividade prática, é a contemplação dos indivíduos singulares na “sociedade burguesa”.[1]

Seja qual for a medida de suas diferenças em outros aspectos, no que tange à questão do ponto de vista social as considerações de Marx podem ser aplicadas a todas as filosofias que se originam nas fundações materiais do capital, incluindo as idealistas. Leibniz, [George] Berkeley, Kant, Fichte e Hegel estão, nesse sentido, não menos sujeitos às determinações problemáticas do ponto de vista do individualismo isolado do que [Paul-Henri Thirty] Holbach, [Claude-Adrien] Helvetius, [Ludwig] Feuerbach e outros que foram alvos diretos da crítica de Marx a respeito do materialismo. Certamente, o próprio Marx referiu-se a Hegel em uma das suas obras de juventude como alguém que compartilha “o ponto de vista da economia política”. Uma perspectiva que é essencialmente a mesma em todos os seus aspectos metodológicos fundamentais que o “ponto de vista da sociedade civil”, correspondendo ao ângulo privilegiado do capital, em contraste com a perspectiva de Marx da humanidade social (ou seja, aquela da humanidade “socializada” ou socialista).

O que está em questão aqui é a forma pela qual os filósofos conceituam os conflitos sobre os quais têm de se debruçar, a partir das condições previstas por um sistema social de produção inerentemente antagônico que os sustenta; e que eles, por sua vez, sustentam ativamente, mesmo que não o façam de maneira consciente.

Com sabemos, as formas possíveis de conceituação de conflitos são as mais diversas, de acordo com as especificidades das determinações sociais dos indivíduos e a transitoriedade das circunstâncias históricas, do bellum omnium contra omnes [a guerra de todos contra todos] de [Thomas] Hobbes à transformação única, levada a cabo por Kant, do conceito de “espírito comercial” de Adam Smith em uma filosofia moralista da história, sem mencionar o impulso “sadomasoquista” que supostamente deve caracterizar o “projeto” em relação ao “outro” no existencialismo sartreano. Ainda sim, por mais surpreendente que possa parecer à primeira vista, há uma afinidade estrutural fundamental em toda essa diversidade. Tal afinidade consiste na representação individualista — e des-representação — da natureza dos conflitos e antagonismos embasados objetivamente que podem ser percebidos sob as circunstâncias da formação social estabelecida em todos os níveis de relações interpessoais. Marx devidamente insiste no importante ponto de que:
 
As relações de produção burguesas são […] contraditória(s) não no sentido de uma contradição individual, mas de uma contradição que nasce das condições de existência social dos indivíduos.[2]

Entretanto, o que vemos no decorrer da história desses desenvolvimentos, de suas fases mais seminais aos tempos atuais, é uma distorção sistemática socialmente motivada dos antagonismos da “sociedade civil” como se fossem de caráter essencial ou primariamente individualista. Eles são tratados como se emanassem não das condições sociais de existência dos indivíduos, mas de sua suposta constituição natural como “indivíduos egoístas”.

Dessa maneira, uma “natureza humana” fictícia é projetada sobre eles, em consonância com a definição subjetiva/individualista da conflitualidade objetiva/social. E, obviamente, tal “natureza humana” assim estipulada é conceituada como uma “generalidade muda” na qual a multiplicidade de indivíduos isolados necessariamente toma parte como indivíduos separados e incuravelmente orientados a si mesmos. Eles são ilustrados como diretamente ligados (ou seja, em sua fictícia separação monádica) a alguma espécie precisamente em virtude de sua individualidade abstrata — socialmente indefinida — e genérica.

Também é preciso enfatizar, novamente, que a concepção dos indivíduos enquanto “genus-indivíduos” notada por Marx com relação a Feuerbach não é de maneira alguma confinada ao materialismo filosófico. Hegel também fala de uma totalidade de determinações na vida humana na qual “o processo de genus com o indivíduo”[3] é o momento determinante. O horizonte constritivo da “sociedade civil” que compartilham estabelece a identidade fundamental das concepções materialistas e idealistas também nesse aspecto.

Ironicamente, no entanto, essa solução das dificuldades que tais pensadores — os quais, em maior ou menor grau de consciência, se identificam com os interesses sociais do capital — estão objetivamente compelidos a adotar cria mais problemas do que consegue resolver, como veremos em seguida na discussão de outras características metodológicas cruciais de sua estrutura conceitual. Decerto o que acontece é que sua pressuposição da relação direta estipulada entre o indivíduo isolado/egoísta e a espécie humana meramente desloca a dificuldade original para outras séries de relações.

Com o resultado, os pensadores que compartilham o ponto de vista da individualidade isolada são confrontados com os mistérios de sua própria construção — com referência à natureza do próprio conhecimento, as determinações do desenvolvimento histórico, a relação entre “sujeito” e “objeto”, o “particular” e o “universal” etc. — cuja solução permanece necessariamente além de seu alcance. E justamente quão irônico tudo isso se torna pode ser apreciado ao lembrarmos que os problemas envolvidos deveriam ter sido supostamente resolvidos, de modo satisfatório e permanente, pela pressuposição estipulativa da “natureza humana” genérica dos indivíduos isolados, a qual se presume que iria transferir todos os problemas para o exterior da esfera de investigação legítima, de uma forma apriorística.

II. A elevação da particularidade ao nível da universalidade

Ao fim, todas as tentativas de escapar das contradições objetivas da situação social em si devem ser frustradas e derrotadas, mesmo que por vezes algumas figuras intelectuais notáveis tentem elaborar soluções no formato de engenhosos e complicados esquemas conceituais. E devem ser derrotados, antes de tudo, por causa do horizonte restrito fornecido pela individualidade isolada enquanto tal, dentro do qual as soluções mesmas são tentadas. Pois as próprias contradições são constitutivas daquele mesmo ponto de vista, na medida em que este se impõe como a única possibilidade de enfoque de uma solução associada com seu substrato social estilhaçado por conflitos, embora na visão de suas características inerentes não possa oferecer nenhuma solução real para os conflitos objetivos de interesses subjacentes e suas correspondentes dificuldades conceituais.

Decerto, normalmente — excetuando-se os períodos de extrema crise — o ponto de vista da individualidade isolada impõe-se sobre os pensadores referidos de tal maneira que obstrui até mesmo a percepção das dificuldades objetivas mesmas, com uma tendência a transfigurar suas determinações ontológicas sociais em questões epistemológicas individuais. Em outras palavras, as dificuldades intrínsecas à prática social (com referência à realização de objetivos tangíveis) são transubstanciadas nos mistificadores, e no nível da subjetividade isolada, insolúveis problemas de “como a imanência da consciência” — concebida como interioridade autorreferida do ego — “alcança seu objeto”; sem violar, vale notar, sua regra escolástica autoimposta de completar tal tarefa “rigorosamente dentro dos limites da imanência”.

No centro metodológico da tradição burguesa — de Descartes e [Blaise] Pascal a Kant, Fichte, [Søren Aabye] Kierkegaard, Husserl, Sartre, entre outros — encontramos esse “ego” orientado a si mesmo (e que necessariamente se frustra a si mesmo), nomeado e definido numa multiplicidade de modos diferentes, de acordo com as circunstâncias sócio-históricas cambientes e as respectivas constrições ideológicas dos sistemas particulares referidos.

Inevitavelmente, qualquer orientação metodológica que possua em seu cerne estrutural o ponto de vista da individualidade isolada segue a tendência de insuflar o indivíduo — o qual, em virtude de ser o pilar de sustentação de todo o sistema, pode apenas ser imputado — em um tipo de entidade pseudouniversal. Eis porque as concepções dúbias de “natureza humana” — que constituem um dos mais importantes lugares-comuns de toda a tradição filosófica, com suas afirmações completamente infundadas — não são os únicos corolários apriorísticos de determinados interesses ideológicos, mas ao mesmo tempo são também a realização de um imperativo metodológico inerente com vistas a elevar a mera particularidade ao patamar de universalidade. O outro lado da moeda é, evidentemente, a ausência necessária de um conceito viável de mediação — socialmente articulada — pela qual a dialética entre particularidade e universalidade possa ser compreendida em sua complexidade dinâmica[4]. Seu lugar deve ser ocupado pelo postulados abstratos de “unidade” e “universalidade”, como veremos no capítulo 7.

Essa obstinada persistência em conceituar tudo a partir do ponto de vista da individualidade isolada no decorrer de séculos de desenvolvimento filosófico apenas pode ser explicada pela contínua reprodução prática dos próprios interesses ideológicos subjacentes. Naturalmente, as formas em que tais interesses podem ser reproduzidos variam enormemente, de acordo com a intensidade historicamente flutuante dos antagonismos sociais e da relação prevalente de forças. Há épocas em que os antagonismos irrompem de forma violenta na superfície, clamando por conceituações como o bellum omnium contra omnes de Hobbes, enquanto sob circunstâncias históricas muito diversas eles são deslocados com êxito e permanecem latentes por períodos relativamente longos, gerando as várias teorias de “consenso” e as celebradas ideologias do “fim da ideologia”. Mas quaisquer que sejam as mensagens ideológicas imediatas de tais teorias, seu objeto metodológico comum é a produção de esquemas conceituais pelos quais se possa chegar à compreensão das manifestações de conflito sem que seja necessário alcançar suas causas subjacentes.

Nesse sentido, a explicação pseudocausal de Hobbes daquilo que ele denomina bellum omnium contra omnes — em termos de uma suposta “natureza humana” egoísta diretamente manifesta em cada indivíduo particular como “genus individual” — não é explicação alguma. É tão somente um trampolim para o salto necessário em direção à “solução” racionalizante do problema identificado por meio do poder absoluto do Leviatã. E mesmo [Jean-Jacques] Rousseau, cuja intenção crítica (às vésperas da Revolução Francesa) é bem-sucedida em diagnosticar alguns problemas e contradições muito reais daquela sociedade, é desgovernado por sua abordagem individualista/antropológica e pelos postulados formais/universalistas que a seguem. Pois ele conceitua o “corpo político” no modelo do “eu” abstrato, e conclui com a glorificação daquele como um “ser moral” hipostasiado, daí derivando a racionalização não apenas apologética mas também circular de que “tudo que é ordenado pela lei” é “legítimo”.

É assim que Rousseau argumenta a favor de tal posição em seu importante mas esquecido Discurso sobre a economia política:

O corpo político, tomado individualmente, pode ser considerado como um corpo organizado, vivo e semelhante ao do homem. O poder soberano representa a cabeça; as leis e os costumes são o cérebro, origem do sistema nervoso e sede do entendimento, da vontade e dos sentidos, dos quais os juízes e os magistrados são os órgãos; o comércio, a indústria, a agricultura são a boca e o estômago, que produzem a subsistência comum; as finanças públicas são o sangue que uma economia sábia, fazendo as funções do coração, reenvia a todo corpo, distribuindo a comida e a vida; os cidadãos são o corpo e os membros que fazem movimentar, viver e trabalhar a máquina, de modo que qualquer ferimento que esta sofra em uma de suas partes, imediatamente uma sensação de dor seria levada ao cérebro por meio de uma impressão dolorosa, se o animal estiver em perfeito estado de saúde.
A vida de um e de outro é o eu comum ao todo, a sensibilidade recíproca e a correspondência interna entre todas as partes. Se essa comunicação cessa, se a unidade formal é desfeita e as partes contínuas encontram-se numa simples relação de justaposição? O homem está morto ou o Estado desfeito.
Então, o corpo político é também um ser moral, dotado de uma vontade; e essa vontade geral, que tende sempre à conservação e ao bem-estar de todo e de cada parte e que é a fonte das leis, é para todos os membros do Estado a regra do justo e do injusto. Apenas para lembrar: isso mostra com que propriedade tantos escritores trataram como roubo a sutileza prescrita às crianças da Lacedemônia para ganhar sua refeição frugal, como se aquilo que a lei ordena pudesse não ser legítimo.[5]

Como podemos ver, o ponto de vista da individualidade isolada — que transforma o eu individual no modelo do “corpo político” entendido como uma “máquina orgânica”: modelo este que hipostasia a “sensibilidade recíproca” de todas as partes pelo funcionamento do Estado — pode apenas levar à afirmação moralista da necessidade interna do quadro estrutural estabelecido. A projeção do modelo individualista/antropológico sobre o complexo social como um todo “transcende” conceitualmente os antagonismos inerentes à ordem estabelecida e os substitui pelo mero postulado de um “ser moral”, o qual, por definição (e apenas por uma definição insustentável), “tende sempre à conservação e ao bem-estar do todo e de cada parte”, e assim decide legitimamente “o que é justo e injusto”. Dessa forma, não é de maneira alguma surpreendente que as pressuposições definidoras circulares da individualidade isolada — que necessariamente obliteram a mediação material vital dos interesses de classe, representando de modo distorcido a dominação de classe como harmonização de “todas as partes” com o todo — deve culminar na circularidade apologética que estipula que “tudo ordenado pela lei é legítimo”.

É igualmente relevante notar no presente contexto que o ponto de vista da individualidade isolada traz consigo não apenas uma série inteira de postulados morais  abstratos com relação ao funcionamento prático do constructo em sua totalidade, mas também somente pode referir-se ao conceito de uma “unidade formal” como seu embasamento. Em outras palavras, a tendência ao formalismo notada acima aplica-se a Rousseau não menos que a outras figuras formidáveis da tradição filosófica sob análise. Quanto ao próprio postulado da unidade, devemos nos ater com mais atenção a seus problemas intrínsecos no capítulo 7.

III. A inversão das relações estruturais objetivas

A função ideológica crucial do ponto de vista da individualidade isolada é a inversão radical da relação estrutural objetiva entre diferentes tipos de conflitos e antagonismos. Dada a sua constituição e orientação imanentes, deve concentrar a atenção nos aspectos secundários e subjetivos/individualistas da contradição, relegando simultaneamente — quando sequer os reconhece — os antagonismos primários da sociedade à periferia.
  • Assim, apenas a “competição entre indivíduos” pode ser reconhecida como estando enraizada em determinações objetivas — ou seja, genericamente “naturais” —, enquanto os problemas de “conflito de grupo” e “interesse de grupo” devem ser dissolvidos no inócuo conceito de “interação individual agregativa”.
  • De modo similar, no nível das estruturas materiais da sociedade, é a esfera da distribuição e da circulação que são levadas em conta, com seus conflitos secundários e vicissitudes competitivas individualistas, enquanto as pressuposições objetivas do sistema material fundamental da formação social capitalista consiste na distribuição exclusiva que define essa ordem social em termos de monopólio inalterável do controle sobre o processo de produção em favor do capital e de sua “personificação: o capitalista” — que define essa ordem social em termos do monopólio inalterável do controle sobre o processo de produção em sua totalidade — levaria a cabo suas implicações explosivas e, consequentemente, inaceitáveis. Isso conduziria, na verdade, a perceber que a única disputa de fato relevante, ao fim, é aquela que se refere às fundações estruturais do sistema produtivo mesmo. Uma disputa concebível apenas enquanto confronto de classes, no qual um dos lados de visualizar uma ordem social radicalmente diversa como a única solução viável para o conflito, em contraste com os choques competitivos mais ou menos marginais cuja existência é permitida no interior dos parâmetros estruturais do sistema estabelecido já pré-julgados e protegidos a priori.
  • De modo compreensível, o ponto de vista da individualidade isolada não pode contemplar tais confrontos e alternativas. Vistos de seu ângulo privilegiado, os tipos de relações de conflitos objetivamente dados devem ser invertidos e transubstanciados em formas de competição essencialmente individualistas em torno de objetivos estritamente limitados e gerenciáveis de modo capitalista. E aqui podemos ver tanto a inseparabilidade do método de seu substrato ideológico quanto a identidade fundamental entre o ponto de vista da individualidade isolada — preocupado apenas com conflitualidade individualista — e o ponto de vista economia política, que não pode ser orientado em direção à esfera da “competitividade” estruturalmente pré-julgada da circulação autoexpansiva do capital.
  • A hipostatização anistórica e idealista das categorias; a inversão metodológica de suas interconexões objetivas (como, por exemplo, no caso da relação entre produção e consumo); a tendência a explicações unilaterais e mecânicas, trazendo em seu bojo uma crença fetichista na determinação natural e na permanência absoluta das relações sociais refletidas nas inversões categoriais; a liquidação dos resultados dialéticos obtidos em contextos ideologicamente menos sensíveis; o triunfo final da circularidade até nos esquemas conceituais de figuras magistrais como Hegel — todas estas são características metodológicas reveladoras da tradição filosófica aqui investigada, que frequentemente se afirmam contra as intenções subjetivas dos filósofos abordados. Todas essas características mostram de forma inquietante as contradições internas e limitações estruturais do ponto de vista economia política — em sua equivalência metodológica ao ponto de vista da individualidade isolada — o qual não pode ser transcendido sequer pelo mais grandioso dos êxitos individuais que emanam do substrato social e das premissas materiais do capital.
Significativamente, a linha de demarcação a esse respeito entre variedades de idealismo e materialismo que compartilham o ponto de vista da “sociedade civil” e da economia política é virtualmente inexistente. A título de ilustração, podemos recordar o modo pelo qual Ricardo define a diferença entre capital fixo e circulante:

Dependendo da rapidez com que pereça, e a frequência com que precise ser reproduzido, ou segundo a lentidão com que se consome, o capital é classificado como capital circulante ou fixo.[6]

Como Marx corretamente comenta:

De acordo com isto, uma cafeteira seria capital fixo, mas café seria capital circulante. O materialismo cru dos economistas que concebem como propriedades naturais das coisas as relações sociais de produção entre pessoas, e as qualidades que as coisas possuem porque estão subsumidas sob essas relações, é da mesma maneira um idealismo tão cru quanto, ou mesmo fetichismo, já que imputa relações sociais a coisas enquanto características inerentes, mistificando-as.[7]

Em um plano diverso, na obra de Adam Smith — que muito influenciou não apenas Kant mas também Hegel — a circularidade ideologicamente motivada predomina. Pois:

O capital aparece para ele [...] não como se contivesse o trabalho assalariado como sua contradição interna desde sua origem, mas sim na forma através do qual emerge da circulação, como dinheiro e é portanto criado a partir da circulação, pela poupança. Assim, o capital não realiza a si mesmo originalmente — precisamente porque a apropriação do trabalho alienado não é em si incluída neste conceito. O capital aparece apenas posteriormente, após ter sido presumido como capital — um círculo vicioso — comandando o trabalho alienado. Assim, de acordo com Adam Smith, o trabalho deveria ser igual ao produto, daí que o trabalho não deveria ser trabalho assalariado e o capital não deveria ser capital. Portanto, na intenção de introduzir lucro e renda como elementos originais do custo de produção, ou seja, com vistas a obter uma mais-valia do processo de produção capitalista, ele os pressupõe, da maneira mais desastrada. O capitalista não deseja abrir mão do uso de seu capital por nada; o proprietário de terras, de modo similar, não deseja ceder por nada terras e solo para a produção. Ele espera algo em troca. Esta é maneira pela qual ele é introduzido — mas não explicado —, com suas demandas, como fato histórico.[8]

Dessa forma, o comportamento “desastrado” de um grande pensador — a pressuposição claramente circular daquilo que precisa ser traçado e explicado historicamente — produz o ideologicamente bem-vindo resultado de transformar as condições específicas do processo de trabalho capitalista nas eternas condições naturais da produção de riqueza em geral. Ao mesmo tempo, uma necessidade sócio-histórica determinada — em conjunção com uma temporalidade a ela apropriada — é transmutada em uma necessidade natural e condição absoluta da vida social enquanto tal.

Ademais, já que a questão da origem do capital é circularmente evitada — a saber, a dimensão exploratória de sua gênese na “apropriação do trabalho alienado”, em permanente antítese em relação ao trabalho, é retirada de foco —, o caráter inerentemente contraditório, e decerto definitivamente explosivo, desse modo de produção de riqueza permanece oculto de maneira conveniente. Consequentemente, a concepção burguesa do processo de trabalho capitalista, predicando a permanência absoluta das condições “naturais” dadas, não pode ser perturbada pela percepção de sua  dinâmica histórica e de suas contradições objetivas.

A conceituação hegeliana de mundo, do ponto de vista da economia política, não é de modo alguma radicalmente diferente em sua substância daquilo que encontramos nos escritos de seus grandes predecessores escoceses e ingleses. É verdade que, em Hegel, não há resquício da abertura “desastrada” e da circularidade algo ingênua de Adam Smith. Entretanto, as mesmas determinações e contradições do horizonte constritivo do capital são reproduzidas em sua filosofia ao nível mais elevado de abstração. De fato, as contradições idênticas e a circularidade concomitante são reproduzidas talvez de modo mais conspícuo que em qualquer outro lugar precisamente no âmbito sublimado e transubstanciado da lógica hegeliana. Assim, como resultado das geniais transformações filosóficas de Hegel, a circularidade socialmente inevitável do ponto de vista da economia política é elevada ao nível do mais sublime princípio metodológico da “ciência” e conscientemente adotada como ponto pivotal de todo o sistema. Nas palavras do próprio Hegel:

A Ideia Absoluta é o único objeto e conteúdo da filosofia. Pois contém toda a determinação, e sua essência é o retorno a si mesma através da autodeterminação ou particularização, ela possui várias fases. [...] a mediação obtém seu curso através da determinação; chegando a um conteúdo por meio de um Outro aparente de volta a seu início de tal maneira que não apenas reconstitui o começo (enquanto determinado, contudo), mas que o resultado é igualmente determinação transcendida, e portanto é  reconstituição da indeterminação primeva com a qual o método originou-se. [...] Por motivo da natureza do método que fora demonstrado a ciência aparenta ser um círculo que retorna a si mesmo, pois a mediação inclina-se de volta a sua origem ou simplesmente substrato. Ademais, este círculo é um círculo de círculos, pois cada membro, sendo inspirado pelo método, é intro-Reflexão, a qual, retornando ao começo, é ao mesmo tempo a origem de um novo membro. [...] Assim, a Lógica também, na Ideia Absoluta retornou a esta simples unidade que é o seu começo.[9]

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Notas:
[1] Karl Marx e Friedrich Engels, “Karl Marx – Marx sobre Feuerbach (1845)”, em A ideologia alemã (São Paulo, Boitempo, 2007), p. 539.
[2] Karl Marx, Contribuição à crítica da economia política (trad. Maria Helena Ribeiro Alves, 2. ed., São Paulo, Martins Fontes, 1983), p. 25.
[3] G.W.F. Hegel, Philosophy of Mind (Oxford, Clarendon, 1971), p. 64.
[4] Para uma história penetrante do conceito de “particularidade” de Kant e Schiller até meados da década de 1950, ver Georg Lukács, Introdução a uma estética marxista: sobre a categoria da particularidade (trad. Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978).
[5] Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a economia política e Do contrato social (trad. Maria Constança Peres Pissara, Petrópolis, Vozes, 1996), p. 25.
[6] David Ricardo, Princípios de economia política e tributação (trad. Paulo Henrique Ribeiro Sandroni, 2. ed., São Paulo, Nova Cultural, 1985), p. 53.
[7] Karl Marx, Grundrisse: Foundations of the Critique of Political Economy (trad. Martin Nicolaus, Londres, Penguin, 1973), p. 687.
[8] Ibidem, p. 330.
[9] G.W.F. Hegel, Science of Logic (Londres, Allen & Unwin, 1929, v. 2), p. 466-85.
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MÉSZÁROS, I. Estrutura social e formas de consciência: a determinação social do método. Trad. Luciana Pudenzi, Francisco Raul Cornejo e Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2009. p. 47-55.
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