por György Lukács
Todas as grandes filosofias que marcaram época na história do pensamento fundavam-se no emprego de um método original. Assim foi para Platão e para Aristóteles, para Descartes, Spinoza, Kant, Hegel e tantos outros. Vejamos portanto a originalidade do método existencialista. Declarar que o existencialismo deriva da fenomenologia de Husserl não seria uma resposta satisfatória à questão que colocamos. Quem sonharia aliás contestar a originalidade de Spinoza, invocando os empréstimos que lhe fez Descartes? Husserl não foi existencialista, mas o método fenomenológico influenciou profundamente o existencialismo.
A questão essencial é entretanto saber quais foram as contribuições verdadeiramente novas desse método. Repetimos que esse problema não depende da filosofia enquanto ciência especializada, mas do exame da atitude da filosofia enquanto comportamento humano abstrato, em face das grandes questões da humanidade de nosso tempo. Considerando a questão desse ângulo, veremos que a fenomenologia moderna é um desses métodos filosóficos que se propõem ultrapassar tanto o idealismo como o materialismo, engajando-se num “terceiro caminho” do pensamento e fazendo da intuição a fonte de todo conhecimento verdadeiro. Desde Nietzsche, passando por Mach e Avenarius até Bergson e mesmo além, a maior parte dos pensadores burgueses modernos orientam-se nesse sentido. A Wesensschau de Husserl representa apenas uma etapa dessa revolução.
Essa constatação por si própria não poderia entretanto constituir um argumento decisivo contra o método fenomenológico. Para poder responder à nossa questão, é necessário primeiramente apreciar no justo valor filosófico e histórico o “terceiro caminho” e determinar o lugar da intuição no processo de conhecimento.
Existe um “terceiro caminho” fora do idealismo e do materialismo? Para quem considera a questão de modo sério, no espírito das grandes filosofias do passado, desdenhando as frases ocas de certos pensadores modernos, a resposta só pode ser negativa. Há, com efeito, duas possibilidades: primado da existência sobre a consciência ou inversamente primado da consciência sobre a existência. Os sistemas filosóficos em voga, que se orientam para o “terceiro caminho”, colocam habitualmente a correlação da existência e da consciência, proclamando que uma não poderia existir sem a outra. Por essa afirmação chega-se a expulsar pela porta, para fazê-lo voltar pela janela, porque admitindo que a existência não pode existir sem a consciência, abandona-se o materialismo, segundo o qual a existência é independente da consciência.
Tal é a cruel realidade do período imperialista que impôs aos pensadores burgueses o “terceiro caminho” nas suas pesquisas filosóficas. O idealismo intransigente não pode afirmar-se abertamente senão em uma época de estabilidade sem choque. Lembremo-nos da anedota de Goethe sobre o idealismo subjetivo de Fichte. Um dia, no transcurso de uma manifestação na Universidade, os estudantes quebraram as janelas de seu professor e Goethe aproveitou para declarar: “Eis uma ocasião bem desagradável para Fichte convencer-se da realidade do mundo exterior”.
Este incidente material anódino foi seguido, no domínio espiritual, de destruições de uma amplitude sem precedente na história. Uma das primeiras vítimas dessas destruições foi o idealismo filosófico sincero. Abstração feita de alguns pensadores tão oficiais quanto insignificantes, os últimos idealistas foram frequentemente invadidos por uma resignação profunda e foram obrigados a reconhecer a falência do idealismo em face do mundo real (Valéry, Benda etc.).
O ascetismo pequeno-burguês dos idealistas de meados do último século deveria igualmente contribuir para preparar o declínio do antigo idealismo. Vimos que desde Nietzsche, o corpo reconquistou direito de cidadania na filosofia burguesa. O pensamento moderno exige um aparelho conceitual próprio para demonstrar e para manter a realidade primordial das alegrias terrestres e da vida corajosa, sem entretanto fazer a menor concessão ao materialismo. Essa reserva é de uma importância capital, pois ao passo que florescia esse novo idealismo, o materialismo deveria tornar-se a ideologia do proletariado revolucionário. A posição de um Gassendi ou de um Hobbes tornou-se então indefensável para os pensadores burgueses. Em suma foi preciso abandonar o método do idealismo, mas salvaguardando todos os seus resultados e seus fundamentos: eis a necessidade histórica do “terceiro caminho” na existência e na consciência burguesa no decorrer do período imperialista.
A fenomenologia, especialmente na sua evolução após Husserl, acreditou descobrir na Wesensschau um instrumento de conhecimento capaz de aprender a essência da realidade objetiva, sem no entanto ultrapassar a consciência humana, mesmo a individual. A Wesensschau é uma espécie de introspecção intuitiva, que não tem por objeto o processo de reflexão em si mesmo, enquanto processo psicológico, mas a estrutura dos objetos desse processo, e a natureza do ato abstrato pela qual a reflexão põe seu objeto. É assim que se constitui a noção fenomenológica do ato e do objeto intencionais.
Esse método convinha bem a Husserl, que se consagrou exclusivamente às questões da lógica pura. O emprego do método é muito menos justificável em Scheler, que volta para os problemas da moral e da sociologia, ou em Heidegger e Sartre, que estudam os últimos problemas da filosofia. Seria, com efeito, perfeitamente possível perguntar-se se esse método está ou não apto a apreender a realidade objetiva e se não é em si mesmo subjetivo e arbitrário por sua natureza.
Quando se trata da questões decisivas da realidade social, os fenomenólogos resvalam para os problemas essenciais da teoria do conhecimento. Têm o hábito de apaziguar seus escrúpulos teóricos, declarando que o próprio método fenomenológico consiste em “pôr entre parênteses” o problema da realidade intencional. A aplicação rigorosa desse método mostra-nos que o conhecimento da realidade é simplesmente inacessível à fenomenologia.
Em Heidelberg, onde Scheler veio me ver durante a Primeira Guerra Mundial, tivemos uma conversa muito interessante e muito característica sobre esse assunto. Scheler dizia que sendo um método universal, a fenomenologia pode tomar tudo por objeto intencional. Assim, por exemplo, disse ele — pode-se proceder perfeitamente ao exame fenomenológico do Diabo, colocando anteriormente entre parênteses o problema de sua existência.
Muito bem, disse eu. Em seguida, quando a análise fenomenológica do Diabo está terminada, resta-lhe suprimir o parêntesis e eis que o diabo surge diante de nós...
Scheler riu, ergueu os ombros e não respondeu nada.
O que a intuição fenomenológica apreende é verdadeiramente a realidade? Com que direito a fenomenologia fala da realidade de seu objeto? Essas questões esclarecem cruamente o arbitrário do método. Como explicar que ninguém tenha sonhado até o presente em ressaltar o fato espantoso de que as “realidades” descobertas pelos representantes mais conhecidos do método intuitivo eram muito diferentes umas das outras por seu tipo e sua estrutura? A intuição de Dilthey descobre, por exemplo, a “cor” do processo histórico, a de Bergson identifica a realidade à própria continuidade, isto é, à duração que dissolve as formas rígidas da vida cotidiana; a de Husserl, em compensação, chega a justapor de maneira rígida, e por assim dizer espacial, as categorias lógicas do existente. Contentavam-se com uma harmonia relativa que reinava no interior de cada escola sobre a natureza dessa realidade. Além do mais, os partidários de intuições completamente opostas cooperavam num espírito bastante amistoso...
Essa situação espantosa explicava-se tanto pela necessidade do “terceiro caminho”, quanto por razões ideológicas precisas. A tendência dominante da filosofia no estágio do imperialismo consiste em negligenciar as condições sociais, em considerá-las como dados secundários, não afetando quase “a essência da realidade humana”. A Wesensschau, que toma por ponto de partida absoluto os dados imediatos da experiência vivida, sem analisar sua estrutura e suas condições, para chegar às suas últimas revelações abstratas, podia facilmente aparentar total objetividade científica. É assim que se constituiu um mito lógico que convinha, magnificamente, à atitude da intelligentzia burguesa de hoje: o mito de um mundo que se pretende objetivo, do qual o pensador proclama a existência independente da consciência — um mundo que a consciência contenta-se em conhecer e não em criar, como nos idealistas do passado — mas um mundo cuja estrutura e essência não deixam de ser determinadas pela consciência individual.
Para esboçar uma crítica ao método fenomenológico, tentaremos uma análise sumária de um exemplo de sua aplicação. Escolhemos a obra intitulada Wissenschaft als Philosophie, de Wilheim [Vilmos] Szilasi, discípulo bem conhecido de Husserl e de Heidegger. Escolhemo-lo de propósito, porque Szilasi é um pensador sério, imbuído de objetidade científica, e não um fabricante de mitos como Scheler. Por outro lado, o exemplo que oferece presta-se muito bem a ser tratado brevemente.
Szilasi começa seu curso submetendo a um exame fenomenológico o “ser-com-outro” (Miteinandersein) dele mesmo e de seus auditores. A Wesensschau dá-lhe a seguinte imagem “objetiva” do mundo exterior, isto é, da sala onde se encontra: “... esse espaço com suas tábuas trabalhadas de diversas maneiras não constitui uma sala de aula senão porque nós damos esse sentido preciso a esse amontoado de madeira. Fazemo-lo porque esse sentido está a priori em estreita correlação com nossa tarefa comum”. E partindo dessas constatações, Szilasi deduz o que segue: "A situação atual do Miteinandersein determina a priori o Wassein.
Seria útil submeter esses resultados da Wesensschau a um pequeno exame metodológico. Constatemos primeiramente que o fato de ver numa sala de aula “tábuas trabalhadas de diversas maneiras”, em lugar de dizer simplesmente que estão lá mesas ou carteiras, é uma constatação artificial e primitiva. É certamente inevitável do ponto de vista do método empregado, pois se Szilasi declarasse simplesmente que, por sua instalação, a sala de aula presta-se igualmente a ser o teatro de conferências linguísticas, matemáticas etc., destruiria automaticamente o efeito mágico próprio à noção de experiência intencional, isto é, a criação a priori do Wassein.
Apressemo-nos entretanto em acrescentar que o que falta nessa análise é muito mais importante do que o que nela figura. A sala de aula em questão encontra-se em Zurique e a conferência que nós citamos ocorreu por volta de 1940. Szilasi dá sua conferência em Zurique a esse fato é função de diversos dados de ordem social, Antes do advento de Hitler, Szilasi ministrava seus cursos em Friburgo. Em 1933, foi suspenso, e alguns anos mais tarde, teve de deixar a Alemanha onde sua segurança pessoal estava ameaçada. Por que a “contemplação da essência do Miteinandersein” era incapaz de abarcar e de revelar esse conjunto de dados que são entretanto ao menos tão essenciais como as tábuas trabalhadas de diversas maneiras?...
Mas voltemos um instante às nossas tábuas. O fato de que estas puderam ser transformadas em mesas, carteiras etc., supõe um certo grau de desenvolvimento da indústria e da própria sociedade. Seu estado e a condição de conjunto da sala — aquecimento, janelas, ventilação, iluminação etc. — são por sua vez inseparáveis de outros fatos e conjuntos de natureza social. Poderíamos continuar ao infinito.
Portanto não é necessário aprofundar muito a crítica especulativa do método fenomenológico para constatar que, mesmo entre seus partidários mais sérios e objetivos, esse método chega a opor a consciência do indivíduo isolado ao pretenso caos das coisas e dos homens, porque, sem confessá-lo faz abstração de todo elemento social. Portanto, somente o sujeito pensante é suscetível de criar uma ordem objetiva nesse caos. Em definitivo, o famoso “terceiro caminho” que julgou ultrapassar o materialismo e o idealismo, assim como a não menos famosa objetividade da fenomenologia, levam-no exatamente ao neokantismo.
A fenomenologia e a ontologia que dela deriva ultrapassam apenas em
aparência o solipsismo epistemológico do idealismo subjetivo.
Contentam-se simplesmente em substituí-lo por um solipsismo ontológico,
graças a uma nova definição dos mesmos problemas. Exatamente como há
quarenta anos, quando os discípulos de Mach acusavam-se mutuamente de
tender ao idealismo e cada um deles estava convencido de ser o único a
ter realizado o famoso “terceiro caminho”, os existencialistas atuais
acusam-se, também, de tendências idealistas. Assim, por exemplo, segundo
Sartre, Husserl — por quem tem aliás a mais alta estima — não teria
superado o kantismo. Quanto a Heidegger — que estima igualmente — eis
como fala dele: “O ser-com (mitsein) concebido como
estrutura de meu ser, isola-me tão seguramente quanto os argumentos do
solipsismo... Seria inútil, consequentemente, procurar em Sein und Zeit a superação de todo idealismo e de todo realismo” (L'être et le néant, p. 306). A palavra realismo pode aliás ser substituída por materialismo, sem nenhum risco de confusão.
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LUKÁCS, G. Existencialismo ou marxismo? Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Ciências Humanas, 1979, p. 67-75.
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