terça-feira, 21 de dezembro de 2021

A fé de Keynes no capital e na natureza metafísica


por István Mészáros

I. Em nome do filho e contra os hereges

O sistema de dois pesos e duas medidas, movido pela ideologia e viciosamente tendencioso, é evidente em toda parte: mesmo aqueles que se orgulham em dizer que representam, a “qualidade de vida”. Dificilmente poderia ser de outro modo. A ordem dominante precisa aplicar para si mesma critérios radicalmente diferentes dos aplicados àqueles que devem ser mantidos em sua posição subordinada. Assim, os defensores intelectuais do status quo e guardiães “neutros” de sua ortodoxia ideológica podem falsear suas autoconfiantes declarações de fé em suas próprias ideias, combinados com ataques violentos a seus adversários, como um “conhecimento científico” indiscutível sem se preocupar em apresentar, em favor de suas declarações, nenhuma comprovação extraída das teorias rejeitadas.

Nesse sentido, John Maynard Keynes pode escrever sobre Marx de modo mais abusivo, em meio a uma aprovação entusiástica, utilizando insultos como “provas” contrárias a seu odiado alvo e favoráveis a suas próprias ideias. Eis seu “argumento”:

Como posso aceitar uma doutrina que estabelece como sua bíblia, acima e além de qualquer crítica, um manual econômico obsoleto que sei que é não apenas cientificamente errôneo, mas também sem interesse ou aplicação para o mundo moderno? Como adotar um credo que, preferindo a lama ao peixe, exalta o proletariado rude acima da burguesia e da intelligentsia que, com todas suas falhas, representam a qualidade na vida e certamente carregam as sementes de todo o avanço humano? Mesmo que precisássemos de uma religião, como poderíamos encontrá-la no desordenado lixo das livrarias vermelhas? É difícil que um filho instruído, honrado e inteligente da Europa ocidental encontre aí seus ideais, a menos que tenha sofrido antes um estranho e terrível processo de conversão que tenha mudado todos seus valores.[1]

Evidentemente, nunca ocorreu a Keynes que houvesse algo de errado ou problemático nos valores espoliadores do “filho instruído, honrado e inteligente” — e cegamente autocomplacente — “da Europa ocidental”. Argumentando a partir e no interesse do sistema econômico estabelecido, parece ser suficiente àqueles que acham que “carregam consigo as sementes de todo o avanço humano” meramente decretar as palavras de sabedoria e absoluta inalterabilidade dos valores que sustentam os poderes existentes.

Não é preciso dizer que, se um intelectual socialista agisse do mesmo modo e se aventurasse a descrever as receitas keynesianas de manipulação monetária capitalista como “o lixo pseudocientífico das livrarias azuis”, ele seria instantaneamente excomungado por nossos vigilantes “estudiosos” e expulso do mundo acadêmico sem muita cerimônia. Mas Keynes — cuja ignorância sobre a obra de Marx só é superada por seu ilimitado senso de superioridade em relação àqueles que produzem tudo aquilo que a “qualidade de vida” honradamente expropria para si — não somente pode se sair com tais tiradas pomposas e grosseiramente “não acadêmicas” contra seu alvo, como ser, ao mesmo tempo, aclamado como o grande exemplo de “objetividade científica” e a refutação final de Marx. Obviamente, o pensamento que identifica os próprios desejos com a realidade não tem vergonha nem limites.

II. O sacrifício e o paraíso capitalista em 2030

Nas últimas décadas, os intelectuais se intimidaram em admitir a essência de classe em suas teorias e posturas ideológicas. Lançando um olhar para a dramática mudança ocorrida no mapa social do mundo entre 1917 e 1949 — isto é, entre o início da revolução russa e a vitória da revolução chinesa —, preferiram buscar a segurança reconciliatória, negando não somente a existência dos fenômenos (outrora claramente questionados, mas agora felizmente ultrapassados) do imperialismo, exploração, capitalismo, etc., e mesmo de classes e conflitos de classes.

Keynes não utilizou tais estratagemas ideológicos defensivos. Totalmente convicto de que a ordem dominante manteria para sempre seu controle sobre tudo o que realmente importava, não hesitou em declarar com condescendente confiança:

Quanto à luta de classes como tal, meu patriotismo local e pessoal, como os de qualquer um, exceto poucos desagradáveis entusiastas, liga-se a meu próprio ambiente. Posso ser influenciado pelo que me parece ser a justiça e o bom senso, mas a guerra de classes vai me encontrar do lado da burguesia educada.[2]

Assim, aberta e desafiadoramente, Keynes assumiu em relação a tudo uma posição ideológica altamente partidária. Agora, se considerarmos os princípios orientadores de sua teoria, que ele formula a partir de um ponto de vista ideológico tão firmemente comprometido, descobriremos que, apesar de suas confiantes projeções de uma solução feliz para os problemas e dificuldades cuja existência é forçado a admitir pelo impacto da crise econômica mundial de 1929-33, sua concepção geral não nos conduz a lugar algum. Keynes apresenta a mais rígida e dogmática separação entre o avanço material-produtivo (“a solução do problema econômico”, em sua terminologia) e a melhoria das condições da existência humana em todos os aspectos, conforme as potencialidade dos objetivos conscientemente adotados.

Keynes descreve o processo de reprodução produtiva de uma perspectiva “materialista vulgar” mecanicista daquilo que ele próprio denomina “a máquina econômica”,[3] declarando com otimismo ilimitado que a ciência, a eficiência técnica e a acumulação de capital (e esta última graças ao “princípio do juro composto”[4], e não à exploração nacional e internacional) estão perto de resolver, “gradualmente”, é claro, “o problema econômico da humanidade”. Uma questão que, de acordo com Keynes, deveria ser considerada “um assunto para especialistas, como a odontologia”.[5] Se ainda estamos com problemas como a “depressão mundial reinante” e a “anomalia do desemprego em um mundo repleto de carências”[6], é apenas porque,

Por enquanto, a própria rapidez dessa mudanças [na eficiência técnica] está nos causando danos e provocando problemas difíceis de solucionar. Os países que sofrem relativamente mais são os que estão na vanguarda do progresso. Estamos sendo afetados por uma nova doença [...] isto é, o desemprego tecnológico [...] Mas esta é somente uma fase temporária de desajuste. Tudo isso significa que, a longo prazo, a humanidade está solucionando seu problema econômico.[7]

Como podemos ver, o sermão de fé ideológica não parece ter mudado muito, se é que mudou alguma coisa, após tantos anos que nos separam da época em que foram escritas as linhas citadas. Supõe-se igualmente que nosso crescente desemprego não seja mais do que uma “fase temporária de desajuste” por causa da “rapidez das mudanças na eficiência tecnológica”, tudo em prol da boa causa de se permanecer na “vanguarda do progresso”.

A diferença é que Keynes podia ainda, em 1930, confiantemente prognosticar que “o problema econômico da humanidade” seria resolvido dentro de cem anos nos “países progressistas”.[8] Entretanto, através de suas restrições pode-se perceber que, para Keynes, o conceito de “humanidade” — que se considera prestes a solucionar o problema econômico — é limitado aos “países progressistas” e às “vanguardas do progresso” (seus codinomes para designar os países imperialistas dominantes). Isto, mais uma vez, sublinha a total irrealidade de seu diagnóstico “científico”.

Além disso, de acordo com a antigo postulado da economia política burguesa, segundo o qual a própria natureza implantara a “motivação das riquezas” em todos os seres humanos, Keynes afirma “que fomos claramente desenvolvidos pela natureza — com todos os nossos impulsos e instintos profundos — para solucionar o problema econômico. Se o problema econômico for resolvido, a humanidade estará privada de seu propósito tradicional”.[9] E é assim que descreve a mudança positiva que sucederá aos indivíduos que ele considera tão profundamente determinados pela própria natureza em seus mais íntimos “impulsos e instintos”:
 
Quando a acumulação de riqueza já não for de alta importância social, haverá grandes mudanças no código moral [...]. Estaremos então livres, afinal, para descartar todos os costumes sociais e práticas econômicas, que agora mantemos a todo custo, por mais desagradáveis e injustos que possam ser em si mesmos, por serem enormemente úteis para a acumulação do capital [...]. Prestaremos honras àqueles que podem nos ensinar a aproveitar a hora e o dia com virtude e bondade, as pessoas encantadoras que são capazes de colher um gozo direto das coisas, os lírios do campo que não trabalham nem fiam.[10]

Como é tocante, poético e sedutor!

Visto mais detidamente, no entanto, o discurso keynesiano sobre a miraculosa conversão do ser que, por um instinto natural, é um ganhador-de-dinheiro — conversão que ele prevê, deveria ocorrer cerca de um século depois de 1930 — aparece uma opinião inteiramente gratuita. Sem qualquer base e, mais do que isso, contra os argumentos sobre a força da “natureza” que ele próprio havia enunciado poucas linhas antes, Keynes contrapõe com arbitrariedade o mundo impotente do “dever ser” à realidade existente do “é”, sublinhando sua polaridade também pelo abismo temporal que coloca entre eles.

Em todo caso, a ilusória redenção quase religiosa proposta como real não é o verdadeiro propósito do discurso de Keynes. Ele oferece o prêmio moral-religioso da “recompensa final” aos indivíduos — para quem a terra prometida está no além, pois em cem anos estarão todos mortos — com a condição de que troquem a busca de uma possível mudança radical num futuro não tão distante pelo seu adiamento para além de qualquer expectativa de vida possível, aceitando assim com santa resignação a ordem estabelecida das coisas. Keynes, imediatamente depois das linhas citadas, leva-nos de volta à sua bem prosaica e totalmente mistificadora visão da realidade. Eis como prossegue seu Ensaio sobre a persuasão, depois de elogiar os lírios do campo:

Mas cuidado! Ainda não chegou a hora para isso. Durante pelo menos outros cem anos devemos fingir para nós mesmos e para todos os outros que o bom é ruim e o ruim é bom, porque o ruim é útil e o bom não é. A avareza, a usura e a prudência devem ser nossos deuses ainda por algum tempo. Somente elas podem nos tirar do túnel da necessidade econômica para a luz do dia.[11]

Keynes desorienta seu público, fundindo (e confundindo) deliberadamente “útil” com lucrativo (o verdadeiro termo operativo sob sua fraseologia diversa). Ele está convencido (ou melhor, quer nos convencer) de que os problemas da “necessidade econômica” são problemas técnicos, que devem ser deixados para os “especialistas em gerência de usura” e odontologia econômica. Nesse sentido, Keynes insiste em que os especialistas “humildes, mas competentes” por ele recomendados estão destinados a nos levar do “túnel da necessidade econômica” para nosso “destino de bem-aventurança econômica”,[12] desde que confiemos neles incondicionalmente – assim como ninguém que esteja com dor de dentes, e em seu juízo perfeito, questionaria a sensatez de se entregar à competência de dentistas especializados para aliviar sua dor. Na verdade, Keynes está tão convencido da validade da sua visão “odontológica” do “problema econômico” que conclui seu ensaio com estas palavras: “Se os economistas conseguissem levar os outros a vê-los como pessoas despretensiosas e competentes, como o fazem os dentistas, isto seria esplêndido”.[13]

Infelizmente, a meros 42 anos [hoje 13 anos] do limite estabelecido pelo próprio Keynes para atingir nosso prometido destino de “bem-aventurança econômica”, estamos hoje muito mais distantes do fim do túnel do que há 58 anos, apesar dos grandes avanços na produtividade conseguidos em todas essas décadas.

O motivo disso é que o “problema econômico” de que Keynes fala não é, na verdade, o da “necessidade econômica” — que, em sua opinião, seria automaticamente eliminado no devido tempo pela feliz “acumulação de riqueza” —, mas um problema profundamente social (ou socioeconômico). Não há riqueza acumulada que possa sequer começar a eliminar as restrições paralisantes das determinações socioeconômicos atualmente impostas se a crescente riqueza social for despejada (como é o caso hoje em dia) no poço sem fundo do complexo militar-industrial, ou de outros tipos de desperdício, em vez de satisfazer às necessidades humanas.

De modo semelhante, a despeito do tratamento autocondescendente (e que, exatamente, por isso, é muito popular em nossos dias) que Keynes dá ao problema, não existe um “desemprego tecnológico”. O desemprego em massa — muito maior hoje do que 1930, quando Keynes prometeu “para breve” a luz do fim do túnel — poderia, em princípio, ser eliminado praticamente da noite para o dia. Não pela milagrosa criação de novos empregos por uma “terceira” ou “quarta revolução industrial”, mas por uma estratégia social conscientemente adotada e que tenha em vista reduzir o tempo de trabalho dos membros da sociedade, de acordo com as necessidades reais e os objetivos produtivos da força de trabalho disponível.

Assim os interesses ideológicos que ele defende sem hesitação aprisionam numa posição sem esperança até aqueles “dentistas” econômicos tecnicamente mais competentes como Keynes. Pois dados os pressupostos necessários de seu ponto de vista social — pressupostos que se originam do objetivo consciente e desafiadoramente adotado de defender os direitos adquiridos da “burguesia educada” —, Keynes fica impedido de perceber o óbvio. Ou seja, a despeito das garantias de seu confortante sermão econômico, não estaremos sequer mais perto da prometida luz no fim do túnel nem daqui a mil anos, pela simples razão de que estamos caminhando na direção oposta, buscando lucro sob o pretexto de “utilidade” e destruindo com irresponsável “eficiência técnica” os mais preciosos recursos humanos e materiais, ao atribuir à cega “máquina econômica” do capital a tarefa de solucionar o “problema econômico da humanidade”.

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Notas:
[1] Keynes, “A short view of Russia” (1925), republicado em Essays in persuasion, Nova York, Norton &Co., 1963, p. 300.
[2] Keynes, “Am I a liberal?” (1925), Essays in persuasion, p. 324.
[3] Keynes, “The end of laissez-faire” (1926), Essays in persuasion, p. 319.
[4] Keynes apresenta uma racionalização quase inacreditável até da pilhagem colonial britânica em termos de juros compostos”. Eis como defende a sua causa: “O valor dos investimentos britânicos no exterior atualmente é avaliado em cerca de 4 bilhões. Isto nos proporciona uma renda à taxa de cerca de 6,5%. A metade disso trazemos para casa e desfrutamos; a outras metade, 3,25%, deixamos acumulando no estrangeiro a juros compostos. Algo assim vem ocorrendo há cerca de 250 anos. Calculo que o início dos investimentos britânicos no exterior esteja no tesouro que Drake roubou da Espanha em 1580. [O que está muito certo, é claro, pois a Espanha o roubara das suas colônias]. [...] A rainha Elizabeth viu-se com cerca de 40 mil libras na mão. as quais ela investiu na Levant Company - que prosperou. Com os lucros da Levant Company, a East India Company foi fundada, e os lucros desta grande empresa foram a base dos investimentos subsequentes da Inglaterra no exterior. Essas 40 mil libras, acumulando-se a juros compostos de 3,25%, correspondem aproximadamente ao volume real dos investimentos da Inglaterra no exterior em várias datas, e realmente atingiriam hoje o total de 4 bilhões de libras, que já citei como sendo o que representa nossos atuais investimentos no exterior. Portanto, cada libra que Drake trouxe, em 1580, corresponde agora a 100 mil libras. Este é o poder dos juros compostos”. (“Economic possibilities for our grandchildren, Essays in persuasion, p. 361-2.) Lendo-se tais “argumentos e as “provas que os apoiam, não se sabe bem se é o caso de rir diante de seu nível de penetração “científica ou de chorar diante do fato de que algumas pessoas possam realmente levá-los a sério. A autoconfiante cegueira ideológica de um importante intelectual burguês dificilmente poderia encontrar uma forma de manifestação mais espalhafatosa.
[5] Ibid., p. 373.
[6] Ibid., p. 359.
[7] Ibid., p. 364. “A humanidade está solucionando seu problema econômico”, foi grifado por Keynes.
[8] Ibid.
[9] Ibid., p. 366.
[10] Ibid., p. 369-70.
[11] Ibid., p. 372.
[12] Ibid., p. 373.
[13] Ibid.
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MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. Trad. Magda Lopes e Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2004, pp. 60-64.
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