por Paulo Ayres
Ciência típica da fase de decadência ideológica burguesa – fenômeno que tem a sua afirmação no plano histórico-universal em 1848, com a Primavera dos Povos[1] –, em linhas gerais, a sociologia[2] representa o divórcio entre os estudos econômicos (em especial a básica esfera de produção que era objeto de estudo da dissolvida political economy), os estudos históricos do desenvolvimento do ser social e os estudos dos contemporâneos pores teleológicos secundários – estes últimos agora tomados como fantasmagóricas “relações sociais modernas” e considerados o objeto de estudo desta nascente semiciência. A sociologia tem o seu parto positivista na França, com a “física social” de A. Comte, enquanto na Inglaterra se desenvolve as bases do “darwinismo social” com H. Spencer e, em outro tom, nas atípicas terras alemãs as “ciências do espírito” (Geiteswissenschaft) são uma versão que recebe contornos românticos por W. Dilthey e F. Tonnies.
Além da superficialidade social, a antidialética sociologia é também permeável aos dois extremos ideológicos referenciados quando, no primeiro capítulo, observamos as três abordagens sobre o trabalho (work): o naturalismo e o culturalismo. Não é sem razão, portanto, que os dois mais destacados sociólogos até hoje, sejam, no fim das contas, representantes de cada uma destas duas abordagens. O francês Émile Durkheim e o alemão Max Weber, os dois clássicos da sociologia[3], ilustram, nesse sentido, os tratamentos possíveis e complementares sobre as classes sociais dentro da lógica apologética do pós-1848: coesão funcional(ista) e situação volúvel dos “humores” do mercado e da sorte individual(ista).
Ideólogo da primeira fase da Terceira República Francesa (1870-1940), quando “a tempestade revolucionária passou”[4] e o massacre da Comuna de Paris (1871) é uma página virada, Durkheim desenvolve um estudo sobre a divisão do trabalho que lima as noções de antagonismo (isto é, as expressões das lutas de classes) e concebe uma diferenciação harmônica, funcionando tal como um corpo biológico, onde a ideia de classes sociais é entendida na chave de uma espécie de órgãos vitais necessários para a manutenção da saúde deste ser que é a sociedade burguesa. O moralismo coletivista durkheimiano é uma necessidade posta pelas suas convicções políticas e por suas posturas metodológicas que, como bom racionalista formal, parte sempre do status quo estabelecido e inquestionável para, a partir daí, se auto-enxergar como o cientista “neutro”, recortado de qualquer influência ideológica, que visa entender o seu objeto petrificado de pesquisa.
Congruente com a tradição da miséria da razão[5], o objetivismo de Durkheim diferencia dois tipos de solidariedade, a mecânica de feição física e a orgânica de feição biológica. Obviamente, para este tipo de naturalismo, a segunda é o aspecto humanamente enriquecedor, pois não consegue enxergar as especificidades do ser social, muito mais complexo do que estas meras analogias biológicas. Com isso, a divisão social do trabalho (no sentido de sua forma alienada) é tomada elogiosamente como o componente de individuação:
Bem diverso é o caso da solidariedade produzida pela divisão do trabalho. Enquanto a precedente implica que os indivíduos se assemelham, esta supõe que eles diferem um dos outros. A primeira só é possível na medida em que a personalidade individual é absorvida na personalidade coletiva; a segunda só é possível se cada um tiver uma esfera de ação própria, por conseguinte, uma personalidade. É necessário, pois, que a consciência coletiva deixe descoberta uma parte da consciência individual, para que nela se estabeleçam essas funções especiais que ela não pode regulamentar; e quanto mais essa região é extensa, mais forte é a coesão que resulta dessa solidariedade (DURKHEIM, 1999, p. 108).
As classes sociais, para essa leitura sociológico-naturalista e para as tendências teóricas que se ramificam dela, são naturalizadas como peças sociais necessárias, onde as particularidades das funções sociais (referentes aos contextos históricos distintos e as de um mesmo contexto social) são desfocadas em nome da centralidade presentista do coletivo[6], ou das estruturas, tal como o estruturalismo enfatizará em outra leitura posteriormente, ou mesmo do fetichismo da técnica, à maneira das inúmeras teorias que há décadas e décadas apostam que a tecnologia no capitalismo contemporâneo está reconfigurando a sociabilidade classista de modo que as classes sociais (ou, ao menos, algumas tal como estabelecidas na fase concorrencial do capital), seriam uma coisa do passado ou em vias de extinção[7] (variando os detalhes das apostas nas penas dos autores).
Contudo, podemos perceber que no nosso cotidiano falamos – e muito – de “classes sociais” (senso comum, grande mídia privada, órgãos estatais etc.). Então que “classes” são essas exatamente?
Ora, a resposta está no outro clássico da sociologia. Não que tenha surgido com ele, mas este cientista social, por sua fama estabelecida, é um catalisador desta categoria alternativa. Weber, um sociólogo filho de outro contexto (a Alemanha que passou pela via prussiana e agora se depara com as guerras imperialistas e o “perigo vermelho” melhor organizado de forma comunista e social-democrata), não pode se dar ao luxo de ignorar o caráter desnivelado e conflituoso da sociedade antagônica e capta as expressões das lutas de classes, reorientando-a para uma tipologia (gnosiologia neokantiana) em que a categoria de classes sociais é rebaixada, metafisicamente, a apenas um componente de uma soma de estratos. Além disso, como foi dito, a própria ideia de “classes sociais” aqui retoma uma linha fenomênica de superfície (embora concreta como dado social), do senso comum e de teorias mais antigas, em que a quantia de renda é valorizada como critério de demarcação classista e pouco, ou nenhum (dependendo do autor, instituto etc.), interesse é demonstrado pela fonte de renda (e como se origina tal riqueza). Esse foco na superfície da renda é favorecido pela própria dinâmica da sociedade burguesa consolidada, que realiza uma intensa circulação de capitais e meios de pagamento (a nova forma de riqueza é radicalmente móvel). Entretanto, esse sistema dinâmico não significa nem uma “mobilidade social” que derrube as tendências capitalistas de concentração e centralização de capitais[8], e também não significa que o indivíduo alterna de classe social, no sentido de estratificação ontologicamente predominante da sociabilidade antagônica, dependendo da quantia de dinheiro que ele tem no bolso ou na conta bancária.
Adepto do subjetivismo metodológico, Weber valoriza o “destino individual” como o norte de demarcação classista. Desmancha-se a funcionalidade estrutural do conceito e observamos o espetáculo superficial das oportunidades de mercado, tal como o discurso liberal (social ou neo) narra aos quatro cantos ao lidar com o fato incontornável da desigualdade social. “Classe social”, para o sociólogo de Heidelberg e para a versão mais disseminada, “oficializada” no mundo do capital, é, em suma, “situação de mercado”.
Como observa Ranieri Carli (2013, p. 95), o conceito weberiano atribui inteiramente ao sujeito individual “a responsabilidade por estar em determinada classe social”. O culto do “empreendedorismo”, entrelaçado ao fetichismo do mercado de trabalho (labour market), impede que a análise deste “homem para todas as estações” (MÉSZÁROS, 2004, p. 210-219) alcance o movimento da totalidade material e hierarquizada do ser social. A esfera de produção, e a sua determinação (dialética) da esfera de distribuição e da troca, é menosprezada por este teatro de sombras sociológico chamado “classes sociais”. E mesmo o significado da esfera de distribuição não é apreendido em seu alcance profundo nessa abordagem, pois não há apenas a distribuição de produtos, enfatizada na economia burguesa, mas antes também há “a distribuição dos instrumentais de produção” e a “distribuição dos membros da sociedade nos diferentes tipos de produção” (MARX apud LUKÁCS, 2013, p. 504). Ou seja, como Marx disse nos Grundrisse, há uma “distribuição incluída no próprio processo de produção” e, esta sim, representa uma fundamentação para as classes sociais.
Enquanto isso, em reboque desta categorização sociológica, é reforçada aquela ideia liberal de que “classes”, estando fundamentada no mercado, indica que
aqueles cujo destino não é determinado pela oportunidade de usar, em proveito próprio, bens e serviços no mercado, isto é, os escravos, não são, porém, uma “classe”, no sentido técnico da expressão. São, antes, um “estamento” (WEBER, 1982, p. 214).
Nessa operação, nota-se claramente a valoração positiva do conceito de “classes sociais”. Tal como uma conquista árdua de universalização feita pela “sociedade moderna-pluralista-ilustrada-laica” (geralmente nas abordagens da ideologia liberal, o adjetivo burguês some como momento predominante de caracterização). O “desencanto” romântico de Weber, por ser metafisicamente unilateral, funciona na base mecânico-binária de rejeição e saudação. Essa categoria de “classe social” está mecanicamente elencada nesta última e, justamente nesse sentido, determinadas críticas oriundas da perspectiva do anticapitalismo romântico ao abismo social contemporâneo, geralmente, não questionam as estruturas, mas só os efeitos modernos mais escandalosos, especialmente na cultura (é aí que a tradição romântica fará emergir a distorcida Kulturkritik). No caso de Weber, não há nem o descarte do termo “lutas de classes”, mas sim, a sua reutilização pela lente sociológica: “luta pelo acesso ao mercado e para determinar o preço dos produtos” (ibidem, p. 218).
Essa miopia decorrente da fragmentação acadêmica da ciência social não consegue nem ser contornada por uma proposta de “interdisciplinaridade”. E Lukács cita justamente Weber[9] – um intelectual que se interessava por várias áreas do estudo do ser social – como um exemplo claro de especialização mesquinha:
Isto pode ser visto claramente através do exemplo de um sábio de nosso tempo, o qual mesmo sendo um cientista escrupuloso, dispunha de vasto e multiforme saber e, não obstante, jamais superou uma especialização estreita: refiro-me a Max Weber. Weber era economista, sociólogo, historiador, filósofo e político. Em todos esses campos, tinha à sua disposição profundos conhecimentos, muito superiores à média e, além disso, sentia-se à vontade em todos os campos da arte e da sua história. Apesar disto, não existe nele qualquer sombra de um verdadeiro universalismo (LUKÁCS, 1981, p. 122-123).
Na “Pequena ontologia”, falando desta especialização mesquinha disseminada pelo contexto histórico do pós-1848 decadente, Lukács (2010, p. 289) usa até o termo “idiotismo da especialização” como algo que “alivia e estimula a subsunção das ciências particulares à manipulação capitalista universal”. Ou seja, esta pseudo-universalidade teórica, de uma maneira ou de outra, joga água no moinho da universalidade efetiva do metabolismo do capital, pois não acompanha adequadamente o seu movimento real, petrifica as suas categorias e não pode criticar as suas raízes. Deste modo, a superação da deformadora divisão capitalista do trabalho intelectual (intellectual labour) de âmbito acadêmico não se resolve numa “totalidade posta pela intelecção”, mas somente “como resultante de uma ontologia do ser social, compreendido em sua especificidade abrangente”, como enfatiza Netto (1976, p. 77).
Entretanto, não se deve vilipendiar essa outra estratificação referente à quantia de renda. Ela diz algo muito importante sobre a participação dos indivíduos na reprodução social. Seja a noção tripartite popularizada de “classe alta”, “classe média” e “classe baixa”, seja a versão ainda mais sintética, relativista e quase sem nitidez de “ricos” e “pobres”, “elites” e “plebe”, ou ainda uma versão pretensamente mais “científica” e “oficializada” por órgãos estatais e privados, tomando como “classes sociais” um patético abecedário de “classes A, B, C, D e E” que, sempre revisa as suas variáveis de critérios, porém, continuamente se atem ao conceito liberal de “classes”[10]. Para se ter uma ideia do poder de mistificação desta conceituação, nos anos de vigência do lulismo (entendido aqui de maneira ampla como os governos de coalizão PT-PMDB do período de Lula e Dilma), esta noção foi usada intensamente como propaganda destes governos social-liberais de que estariam promovendo uma ascensão classista nas camadas populares. Reza a lenda que no “Brasil, um país de classe média” (slogan), emergiu no novo século uma “nova classe média” em meio à supererxploração dos trabalhadores[11].
A questão decisiva, que coloca as perspectivas liberal e socialista em campos excludentes é, portanto, como situar essas camadas de quantia de renda na análise da dinâmica social: um grupo fundamental ou um grupo de efeito, respectivamente. Para o economista Marcelo Neri (apud Luce, 2013, p. 171), apologista da era lulista e ex-ministro do governo Dilma, por exemplo, as camadas de renda são o grupo fundamental: a questão é “dinheiro no bolso”, pois para ele, justificando os seus critérios, é “a parte mais sensível da anatomia humana”. Essa epiderme, entretanto, é pura cortina de fumaça para não se tocar em assuntos mais profundos – mesmo porque, mesmo da perspectiva limitada da esfera de circulação, as migalhas destas formas de distribuição de renda também não surtem um efeito considerável nos desníveis da desigualdade social.
As camadas de renda, na verdade, são um grupo de efeito sobreposto à estratificação das classes sociais, mas ontologicamente fundado por estas últimas. Elas não se direcionam para a efetiva produção e a reprodução do ser social, ou melhor, são parte do movimento de reprodução como o aspecto de apropriação (Aneignung), alienadamente mediada, do patrimônio material e espiritual da humanidade. Exatamente por isso, tal categoria também tem o seu valor para além das mistificações da cortina de fumaça do pensamento burguês. Ela está relacionada com a categoria da liberdade – por mais que liberdade e dinheiro sejam, em certo aspecto, mutuamente excludentes. O dinheiro, poder alienado da humanidade, como disse Marx[12] ao captar a essência deste princípio equalizador miserável, por mais que rebaixe os indivíduos sociais ao movimento reificador da venda (Veräusserung), é, goste-se ou não, o meio de compra de “doses” de liberdade, especialmente na sociedade burguesa madura. Por isso, e levando em conta os valores ideológicos dominantes que formam a consciência dos seres humanos num contexto assim, muitos sujeitos (pessoas, grupos, empresas, nações etc.) matam e morrem por esses pedaços coloridos de papel (ou pelas condições materiais e os créditos intangíveis que representam determinado valor mercantil). Ora, se a liberdade no seu sentido dialético-materialista nascente e mais básico, diz respeito à escolha concreta entre alternativas concretas, logo essa mediação de segunda ordem aumenta o grau de liberdade para o indivíduo transitar geograficamente, ganhar mais tempo livre e se apropriar de mais objetivações – simultaneamente o aprisionando em relações profundamente reificadas (negando o sentido mais amplo de liberdade). E o protesto em forma de “vida alternativa” de certos anticapitalistas românticos, tais como alguns grupos de hippies, são totalmente impotentes e, unilateralmente, enxergam apenas o lado do estranhamento do dinheiro, como mediação decadente e desumana, ao se acharem mais livres que a população mainstream.
Há ainda um fator problemático de outra ordem no conceito sociológico de “classes sociais”: tal abordagem penetra – não sem passar por uma determinada e frágil peneira antiliberal – em teorizações de alguns cientistas sociais do campo marxista com propostas de reformulação dos agentes sociais no contexto do capitalismo monopolista[13]. E, assim sendo, a miséria semicientífica da sociologia, variando o autor em algum grau, deixa algumas lacunas em certas obras marxistas. Mesmo não sendo algo explícito, alguma porção metodológica deste conceito de “classe social” é absorvido em propostas de revisão do conceito marxiano.
Em certos casos, até a categoria “trabalho” padece junto. É preciso fazer menção a uma forma híbrida de abordagem do trabalho (work), mas que não significa, com isso, que seja uma “quarta abordagem”, pois ela apenas une, paradoxalmente, a abordagem ontológico-dialética (ontopositividade do trabalho) com raciocínios do culturalismo. Essa abordagem “ontológico-culturalista” pode se apresentar de duas formas: identificação entre práxis ocupacional e trabalho (work) ou uma tese adaptativa da “descentralidade do trabalho” (work). Na primeira forma, se trata de considerar a centralidade fundante do trabalho (work), mas entendendo que outras formas da práxis, várias atividades teleológicas secundárias, são (ou se tornam) trabalho (work) igualmente, seja por uma imbricação com a esfera de produção ou apenas porque se apresentam como meios de sobrevivência ocupacionais. Essa abordagem ontológico-culturalista, apesar de fazer a defesa da centralidade do trabalho (work) também, é assaz problemática, pois realiza uma dissolução do que seria propriamente o trabalho (work) e não o diferencia adequadamente de outras práticas humanas. Isso faz parte de uma ideologia mais abrangente que a do “fim do trabalho”, é o “adeus ao proletariado”: dissolver a atividade fundante (work) e a classe operária no conjunto dos assalariados. Entre os autores brasileiros com essa posição estão R. Antunes, M. Iamamoto e D. Saviani – os aspectos contraditórios dessa leitura relativista são analisados por Lessa (2011). Já a segunda forma de abordagem ontológico-culturalista é a incorporação problemática da tese da “centralidade capitalista-cotidiana do trabalho” de Postone (tal tese estaria certa se o referido fosse especificado como labour, contudo, tal como se apresenta, esta tese faz a velha indistinção entre work e labour), de modo que a negatividade retire o caráter emancipatório do trabalho (work). A edição nº 22 da revista Verinotio (2016) é dedicada aos textos de autores brasileiros que defendem essa posição: M. Duayer, P. H. Furtado de Araújo e M. F. Escurra. A falta de rigor, ao não diferenciar o trabalho (work) de serviço (service) e não indicar a relação de ambos sob a forma do trabalho abstrato (labour), é impressionante em autores com fortes influências lukacsianas. Por via diferente, este grupo, assim como o outro, se desloca em certo nível para um conceito sociológico de “trabalho”, em vez da categoria ontológico-econômica de Marx.
E o sintomático do poder de penetração desta abordagem unilateral é que nos exemplos referenciados logo acima estamos falando de lukacsianos, isto é, de pensadores marxistas vinculados à defesa ortodoxa da metodologia dialético-materialista como superação (Aufhebung) do padrão moderno-liberal; pensadores que, com a vista mais privilegiada de hoje, percebem os déficits que a sociologia (e outros compartimentos positivistas) gerou nas teorias marxistas da II Internacional (G. Plekhanov, F. Mehring, K. Kautsky...), da III Internacional (N. Bukharin, A. Zhdanov, J. Stalin...) e, do outro lado, o transbordamento feito pelo ecletismo do marxismo heterodoxo (K. Korsch, E. Fromm, S. Zizek...). Entretanto, mais ou menos consciente disso ou não, todos estes companheiros lukacsianos absorvem acriticamente, em algum grau, determinados aspectos metodológicos típicos dessa especialização mesquinha de feição fragmentária e burguesa.
Além disso, vivemos em um tempo conturbado para as chamadas ciências humanas, intensificado na última quadra do século XX (pós-consenso neoliberal) com a ampla e multifacética cultura denominada de pós-modernismo[14] (estágio superior da tradição do irracionalismo moderno), gerando a neofilia acadêmica que afeta até quem não pertence necessariamente a esta corrente (os marxistas, os formal-racionalistas e os neoiluministas). Tal como gírias da estação, novas categorias são propostas eventualmente de maneira pouco criteriosa, independente se, nos fins das contas, é a busca decadente de acadêmicos por “quinze minutos de fama”, como diz Lessa, ou a busca sincera, porém estabanada, de alguns intelectuais de esquerda. Aliás, o pesquisador da Escola de Maceió resume bem o cenário atual que afeta também alguns marxistas:
A crescente distância para com a realidade impõe um outro traço característico do novo “estilo”: a forma vai se tornando cada vez mais rebuscada e obscura, novos conceitos e formulações vão se impondo quase semanalmente com um estilo crescentemente rococó. Sociedade se converteu em “formação societal”, determinações sociais em “societárias”, relações sociais em “relações societárias”, produtos do trabalho em “produtos laborativos” ou “laborais”, teoria em “teorização”, “essencialidade” substitui essência, “supra-sumir” no lugar de superação, realidade passa a ser “efetividade”, expressões como “(in)material”, “precariado”, “pobretariado”, “infoproletariado”, etc. possuem livre curso. A obscuridade dos novos conceitos é positivamente valorizada em si e por si – por um lado, porque conflui com a adoração da novidade e, por outro lado, porque fortalece a nebulosidade geral do discurso que é imprescindível para que as expressões e conceitos imprecisos possam ter a aparência de rico conteúdo e formidável achado teórico. A velha e boa máxima da “navalha de Occam” já não tem mais lugar no novo Zeitgeist; a novidade tem um valor intrínseco e é cultivada sem críticas (LESSA, 2014a, p. 323).
Sem a busca pela fundamentação ontológico-genética, sem a perspectiva teórica dialético-materialista da totalidade e/ou sem o bom uso da navalha de Occam – o uso nominalista é um péssimo uso da navalha –, muitas editoras e congressos de pesquisa social se tornam um festival de egos acadêmicos e necessidades mercantis:
Cada autor se sente livre para criar suas categorias próprias – ainda mais, para a sobrevivência na “nova configuração do mercado de ideias” (sic), passa a ser imprescindível que cada um crie a sua “marca” particular. Na busca dos quinze minutos de fama, não deixa de ter um quê de cômico como, nos congressos ou encontros de ciências humanas, novas categorias e conceitos são propostos, não raramente acompanhados por expressões como "que eu denomino”, “que determinamos como”, “que preferimos chamar de”, “que já denominamos de” e assim por diante. Os pesquisadores em início da carreira rapidamente aprendem o truque que consiste em esconder sob uma formulação nova a carência de conteúdos que sejam reflexos do mundo real – as ciências humanas e a filosofia incorporaram em larga medida a arte do embuste (idem, ibidem).
Este cenário atual altamente mercantilizado (“mercado de bens simbólicos”), apressado e superficial, que afeta, em algum nível, grande parte do conteúdo teórico produzido, se acopla ao formato, já decadente, da especialização mesquinha das semiciências humanas dos departamentos universitários; em sintonia com a fase de afirmação da classe (e consciência) burguesa como agente de justificação e conservação do mundo estabelecido desde a segunda metade do século XIX.
E, mesmo reconhecendo o fato de que há uma bibliografia vastíssima[15] de estudos do tema “trabalho” e “classes sociais” – tanto de teóricos burgueses quanto de socialistas – feita no transcorrer do século XX até os dias de hoje, ainda sim, não desconsiderando as particularidades de cada tese, todas que propõe negar ou revisar os fundamentos das categorias marxianas aderem, de alguma forma, à recusa de uma ou mais destas categorizações distintivas essenciais (no sentido ontológico mesmo): a diferenciação entre trabalho (work) e trabalho abstrato (labour), entre trabalho manual (manual labour) e trabalho intelectual (intellectual labour) e entre trabalho produtivo (productive labour) e trabalho improdutivo (unproductive labour). E, em certos casos, além de cancelar essas diferenças decisivas, alguns propõem novas divisões extremamente nebulosas, como a categoria metafísica de “trabalho imaterial”, puro dualismo que se desvia da rota monista da ontologia dialético-materialista[16].
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Notas:
[1] Do período gradual e plurissecular de transição do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista, a burguesia – e todos os valores e concepções ligados a sua afirmação histórica, sendo o liberalismo, em sentido amplo e heterogêneo, a sua própria cosmovisão de classe – foi revolucionária e trazia consigo, nessa marcha, os elementos da emancipação política e, consequentemente, o caminho progressivo da generidade humana para-si. A virada de 1848 afirma a posição contrarrevolucionária e de entrave dessa classe e sua ideologia ao desenvolvimento das forças produtivas (sobre a Primavera dos Povos, cf. Marx 2011a e 2012). Lukács, com base nas críticas de Marx e Engels aos decadentes e apologetas teóricos e artistas da segunda metade do século XIX, desenvolve os estudos marxistas da decadência burguesa na arte e na teoria.= = =
[2] Para se introduzir na crítica marxista da sociologia cf. Lukács (1959, 1979 e 1981), Netto (1976), Botelho (2008) e Carli (2013). Uma observação importante: há vários marxistas que caracterizam os seus estudos como sociológicos e se autodenominam sociólogos, no entanto, como observa J. P. Netto em relação ao seu professor, o cientista social marxista Florestan Fernandes, que, segundo Netto, transcende os estreitos e unilaterais limites da sociologia na década de 1960, entrando na marxista “ciência da história” (ciência social unitária): “Quanto ao fato de o próprio Florestan continuar caracterizando a natureza do seu trabalho como ‘interpretação sociológica’, isto em nada afeta essa notação – afinal, como dizia Marx, ‘não o sabem, porém o fazem’” (NETTO, 2004b, p. 208, nota 11).
[3] Marx nunca foi sociólogo. Os manuais didáticos que nos ensinam sobre os “três clássicos da sociologia” são mistificadores nesse ponto (e em outros, dependendo da linha ideológica do livro). Contudo, como a sociologia está estabelecida como disciplina em muitas grades escolares e universitárias, quando há um determinado espaço para falar de Marx, autor vinculado essencialmente à perspectiva operária e popular de emancipação, é algo importante, independente dos desacordos quanto à nomenclatura científica.
[4] Durkheim apud Carli, 2013.
[5] Cf. Coutinho, 2010.
[6] Cf. Mészáros (1981, p. 41).
[7] Cf. Lessa, 2011.
[8] Sobre a lei geral da acumulação capitalista – que inclui as tendências de centralização de capitais e concentração de capitais –, a base dos estudos está em Marx (1984, Cap. XXIII).
[9] Para uma crítica de mais fôlego da sociologia weberiana, cf. Carli (2013). Aliás, György Lukács e as raízes históricas da sociologia de Max Weber é um exemplo de uma ampla crítica a um autor burguês contemporâneo à luz dos estudos históricos do fenômeno da decadência ideológica burguesa.
[10] Desacordos entre instituições burguesas – como entre as pesquisas de renda familiar do Critério por Faixas de Salário-Mínimo (do IBGE) e a ABEP (Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa), que desenvolveu o Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB) focando no “poder de compra” do consumidor – e mesmo as propostas de uma revisão avaliativa, continuam estacionadas na superfície das relações sociais. Por causa, obviamente, de um princípio ideológico não revogável.
[11] Sobre as mistificações da “nova classe média brasileira” e a superexploração dos trabalhadores (labourers) durante os governos lulistas, cf. a crítica com estatísticas de Luce (2013).
[12] Cf. o belo tópico Dinheiro em Marx (1999).
[13] Capitalismo monopolista é o terceiro estágio do capitalismo (após o mercantilismo e o capitalismo concorrencial), iniciado no último quarto do século XIX. Vinculado a uma segunda revolução técnico-científica na indústria, esse estágio desenvolve os modernos monopólios que controlam o mercado mundial. As tendências do capital em se concentrar e se centralizar chegou ao ponto em que, na virada do século retrasado, grupos capitalistas já dominavam ramos econômicos inteiros de uma nação; e romperiam as fronteiras “colonizando” as diferentes áreas do planeta. O grande capital assume o caráter monopolista, subordina o pequeno capital e controla a economia através de cartel, pool, truste, fusão, sindicato industrial etc. Além da indústria, houve uma monopolização no setor bancário: os bancos passaram de intermediários para associados dos monopólios. Capital industrial e capital bancário se fundem e nasce o capital financeiro, a forma central do capital monopolista, e um número reduzido de capitalistas controla a vida econômica dos países: a oligarquia financeira. Sendo chamado também de imperialismo, o capitalismo monopolista é objeto de inúmeros estudos, mas a obra que se tornou uma referência básica do fenômeno nascente (período clássico do imperialismo), compreendendo o significado amplo destas profundas transformações já estudadas por R. Hilferding, R. Luxemburgo, N. Bukharin, é a de Lenin (2012). O estudo básico de outro período dentro do capitalismo monopolista, o capitalismo tardio do pós-Guerra, está em E. Mandel (1985) e, por fim, com o esgotamento do padrão taylorista-fordista-keynesiano e a afirmação do capitalismo tardio como produção destrutiva, há o período da crise estrutural, cujo estudo referencial está em Mészáros (2002). Para uma introdução mais didática ao assunto, cf. Netto e Braz (2006).
[14] Para um panorama deste período e como um pensador como Lukács, destoante do cenário dominante, é importantíssimo na contribuição de manter os pés no chão e não ser levado ao sabor dos ventos filosóficos arbitrários (“crise de paradigmas”), agnósticos (antiontológicos) e antidialéticos (mecânicos ou relativistas), cf. o ensaio de J. P. Netto (2004c): G. Lukács: um exílio na pós-modernidade. Uma pequena observação: discordamos do professor na terminologia de “pós-modernidade”. O sufixo “ismo” é melhor para descrever uma corrente de pensamento (e suas expressões culturais) que, apesar de tudo, é tão moderna quanto outras.
[15] Deste modo, um indivíduo não dá conta de esgotá-la, porém, se pode ter contato com uma amostragem de destacadas teses apresentadas e, assim, podemos delinear certos pontos que estão sendo recusados em propostas de revisão de elementos fundamentais. É isso que Lessa (2011) faz ao analisar criticamente uma gama de autores que não se contentam em pesquisar as configurações fenomênicas das mudanças na ordem do capital, mas vão lá mexer nas determinações essenciais, resultando em antinomias e falta de nitidez. Entre as teses criticadas nessa amostragem, estão as de: R. Dahrendorf, N. Bukharin, J. Nagel, M. Dijas, S. Mallet, P. Belleville, R. Blauner, J. Woodward, P. Naville, G. Gurvitch, H. Braverman, A. Gorz, C. Offe, M. Piore e C. Sabel, G. Cohen, A. Schaff, T. Bottomore, J. Lojkine, A. Negri, M. Lazzarato, M. Hardt, H. Habermas, R. Kurz, R. Antunes, M. Iamamoto, D. Saviani, N. Poulantzas, J. Nagel, J. Bernardo, D. Gallie, M. Burawoy, M. P. Leite e L. Vasapollo.
[16] Para uma crítica ao conceito de “trabalho imaterial”, cf. Lessa, 2005 e 2011.
AYRES, P. Classes fundamentais e classes de transição: Lukács e os fundamentos histórico-ontológicos das classes sociais. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – CCH-DFL/PGF, Universidade Estadual de Maringá (UEM). Maringá, pp. 126-135, 2018.
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