sexta-feira, 12 de abril de 2019

Notas sobre o keynesianismo


A tributação e a redistribuição
 
A análise, em termos globais, dos efeitos da política fiscal, parece produzir certa ilusão quanto aos efeitos efetivos do processo de redistribuição de rendas. Na verdade, parece haver aqui uma ilusão semelhante à ilusão monetária decorrente da elevação de preços. Fomos levados a suspeitar da existência de tal fato pela coincidência entre o processo indireto de baixa de salário sugerido e justificado por Keynes, mediante elevação do nível de preços, e o processo indireto de redistribuição das rendas, mediante o imposto. Porque, ao invés de uma redistribuição direta, realizada, por exemplo, por meio da participação do empregado no lucro da empresa, teria Keynes preferido o processo indireto por meio do fisco? Em nosso modo de ver, há aqui uma ilusão em muitos aspectos semelhante ao espelhismo monetário que se verifica na relação entre salário real e salário nominal, conforme vimos. Vejamos até que ponto o imposto realiza uma verdadeira redistribuição de rendas. A receita fiscal resultante da arrecadação dos impostos, principalmente de renda e de transmissão (Keynes dá destaque aos impostos de renda e de transmissão causa mortis); não é, evidentemente, redistribuída em espécie. Ela será convertida em investimentos públicos novos ou aplicada para fazer face às despesas públicas, podendo quase não figurar em capítulos propriamente redistributivos. Os investimentos públicos desta forma realizados terão como resultado uma elevação dos preços de bens de consumo e dos bens de capital que dependerá, em parte, da relativa aplicação do aumento das rendas nominais em consumo e em investimento. De qualquer forma, a elevação do nível de preços corresponderá a uma baixa de salários reais e de rendas fixas. O imposto de renda progressivo ou proporcional diminui as diferenças entre as rendas líquidas percebidas pelos componentes da classe cujas rendas não são fixas. A diferença, embora não persista tão acentuada entre os componentes da classe capitalista, pode, contudo, ser mantida e aumentada entre a classe capitalista e a assalariada, ou melhor, entre os que percebem ou não rendas fixas, principalmente pelo efeito provocado pela própria aplicação de impostos.

Em parte, pelo menos, a redistribuição de rendas realizada pelo imposto é apenas ilusória. O processo de redistribuição direta, que não ocorreu seriamente a Keynes, parece-nos menos sujeito a provocar tais ilusões.
 
Lauro Campos, A crise da ideologia keynesiana. 
Rio de Janeiro: Campus, 1980, p. 287-288.
 
O fetiche da moeda estatal

Os ideólogos da economia [economics] partem do desequilíbrio para demonstrar que o equilíbrio é o resultado final e eterno do devenir capitalista. Marx parte do equilíbrio para demonstrar que a transformação e a crise são o produto, o resultado imanente do devenir capitalista. A teoria da crise ortodoxa, mesmo em Keynes, é a tentativa de conciliar uma teoria do equilíbrio (parcial ou geral) com seu oposto, a teoria do desequilíbrio, da crise. Por isto, em cada crise do capitalismo, renasce e readquire momento a teoria do valor-trabalho, dialética, que contém em todas as suas linhas o caráter crítico da notável expansão capitalista na esfera privada. A moeda-estatal é o principal veículo de reativação do real e, ao mesmo tempo, de introdução do conteúdo fictício, ilusório no processo da vida dos homens. Do ponto de vista do valor-trabalho, a moeda-estatal e a dívida pública constituem capital imaginário, dinheiro irreal, desvinculado do trabalho humano. Mas, como Osíris, Ísis e Órus, aquela criação imaginária atua, dentro de certos limites, na atividade real: agências se criam, empregos se oferecem, exércitos se mobilizam etc., em nome e sob e égide daqueles poderes irreais. Assim como as esfinges e pirâmides sobreviveram aos ingredientes imaginários que as fizeram erguer por meio do trabalho real dos homens, assim, também, milhões de empregados e funcionários improdutivos são alimentados e agem sob o comando da ideologia fictícia de Keynes e do dinheiro-estatal irreal. Como se descobriu que o Nilo não nasce no céu e se desacreditou um dia dos poderes sobrenaturais de Osíris, Ísis e Órus, assim também as obras faraônicas, as economias externas doadas pelo governo à classe capitalista por meio das obras públicas e o poder ilimitado do dinheiro-cartal do Governo, serão desmascarados, juntamente com os suportes pseudológico-científicos que sustentam a ideologia keynesiana, na crise que só se deterá no chão seco do real.

Lauro Campos, A crise da ideologia keynesiana.
Rio de Janeiro: Campus, 1980, p. 302-303.

A política e a teoria

“Os homens agem antes de argumentar. No princípio era a ação. E a ação humana resolveu a dificuldade, muito antes de a sutileza dos homens a ter descoberto”, diz Goethe no Fausto. Keynes agiu antes de argumentar e procurou solucionar o problema do desemprego involuntário antes de sua sutileza ter construído a Teoria geral. A política keynesiana precedeu, no tempo, à teoria keynesiana, isto é, a teoria keynesiana, como salienta Klein, foi uma elaboração teórica justificativa de uma série de medidas que o Lord Keynes pregava anteriormente. Sob este aspecto, ela é um modelo de coerência — encerra um conteúdo tão inflacionário (no sentido de uma ação dirigida para provocar uma elevação no nível de preços) quanto as medidas anteriormente aconselhadas, por exemplo, em conferências pelo rádio etc. nos Estados Unidos. A aplicação generalizada no mundo ocidental das políticas sugeridas pela Teoria geral conseguiram, por si e por outros fatores da conjuntura social e política (a Segunda Grande Guerra, por exemplo), absorver parte do desemprego involuntário, provocando um volume elevado de ocupação, com subsalário. As políticas financeiras e fiscais não conseguiram, por encerrarem os mesmos vícios ideológicos da política de salários nominais, realizar uma redistribuição de rendas direta e razoavelmente favorável ao assalariado.
 
Lauro Campos, A crise da ideologia keynesiana. 
Rio de Janeiro: Campus, 1980, p. 313-314.
 
Da prepotência ao funeral

No mesmo espírito, [Walt] Rostow e todo o exército da economia burguesa previram confiantemente que não somente os “bolsões de desemprego” das democracias ocidentais se transformariam rápida e permanentemente em oásis de “riqueza” e prosperidade, mas que graças às suas receitas e truques de mestres de “modernização”, que são universalmente aplicáveis, o Terceiro Mundo também chegaria ao mesmo nível de “desenvolvimento” e da feliz realização das “nossas democracias ocidentais”. Pois acreditava-se que era parte da natureza predeterminada do universo atemporal que o “subdesenvolvimento” seria seguido pela “decolagem” capitalista, que, por sua vez, traz inexoravelmente consigo um “impulso para a maturidade”, desde que as forças políticas das “democracias ocidentais” evitem as más ações de revolucionários criadores de problemas que têm a tendência a se opor àquela ordem.

A euforia produziu uma indústria generosamente financiada de “estudos de desenvolvimento”, que se expandem em círculos cada vez maiores e que finalmente caem nas areias do completo esquecimento, como as gotas de chuva na praia, à medida que, com o surgimento da crise estrutural do capital, o monetarismo neoliberal assumia a posição de orientador ideológico até então ocupado pelos sumos sacerdotes da salvação keynesiana. Isso excluiu a premissa básica que justificava a expansão da disciplina. E quando finalmente se tornou claro que os truques keynesianos não seriam capazes de recriar os “milagres” anteriores (ou seja, as condições descritas como “milagres” por aqueles que à época ilogicamente acreditavam neles, não por seus adversários críticos), os antigos propagandistas da solução final keynesiana das imperfeições do capital simplesmente viraram a casaca e, sem o menos sinal de autocrítica, convidaram todos os que ainda não haviam atingido seu próprio grau de esclarecimento transcendental a acordar de seu sono para dar ao velho herói um enterro decente.

István Mészaros. O século XXI: socialismo ou barbárie?
Trad. Paulo Cezar Castanheira.
São Paulo, Boitempo, 2003, p. 23-24.

O canto da sereia

Não é surpreendente que sob as atuais condições de crise se ouça o canto da sereia do keynesianismo, visto como o sonhado remédio, apelando para o espírito do velho “consenso expansionista” a serviço do “desenvolvimento”. Mas hoje aquele canto soa fraco, vindo através de um longo tubo lá do fundo do túmulo de Keynes. Pois o tipo de consenso cultivado pelas variedades existentes de trabalhismo assimilado tem, na realidade, de tornar palatável a incapacidade estrutural de acumulação e expansão dos capitais, em nítido contraste com as condições que tornaram possíveis as políticas keynesianas durante um curto período. Luigi Vinci, figura proeminente do movimento italiano da Rifondazione, enfatizou corretamente que hoje a autodefinição adequada a viabilidade organizacional autônoma das forças radicais socialistas estão “fortemente tolhidas por um keynesianismo de esquerda vago e otimista em que a magia da palavra ‘desenvolvimento’ ocupa a posição central”. Uma noção de “desenvolvimento” que nem mesmo no auge da expansão keynesiana foi capaz de tornar mais próxima a alternativa socialista, porque sempre aceitou sem contestação as premissas práticas necessárias do capital como estrutura orientadora de sua própria estratégia, sob firmes restrições internalizadas de “linha de menor resistência”.

É preciso também destacar que o keynesianismo é por sua própria natureza conjuntural. Como opera no âmbito dos parâmetros estruturais do capital, ele é forçosamente conjuntural, independentemente de as circunstâncias favorecerem um conjuntura mais longa ou mais curta. O keynesianismo, mesmo a variedade chamada “keynesianismo de esquerda”, está necessariamente contido na “lógica stop-go” do capital, e por ela é restringido. Mesmo no seu apogeu, o keynesianismo nada representou além da fase “go” de um ciclo de expansão, que mais cedo ou mais tarde chega ao fim, substituído pela fase “stop”. Nas suas origens o keynesianismo tentou oferecer uma alternativa à logica “stop-go”, por meio da administração “equilibrada” das duas fases. Mas não foi capaz de contemplá-la, continuando preso à fase “go”, devido à própria natureza de sua estrutura capitalista reguladora orientada pelo Estado. A longa duração da expansão keynesiana — anormal, mas significativamente confinada a um punhado de países capitalistas avançados — se deveu em grande parte às condições favoráveis da reconstrução do pós-guerra a à oposição dominante nela assumida pelo complexo industrial-militar maciçamente financiado pelo Estado. Em compensação, o fato de que a fase “stop” de correção e contra-ação à fase “go” ter de assumir a forma dura e dolorosa do “neoliberalismo” (e “monetarismo”, conforme sua racionalização ideológica pseudo-objetiva) — já no governo trabalhista de Harold Wilson, presidido monetária e financeiramente por Denis Healey na qualidade de Chancele do Tesouro — deveu-se ao início da crise estrutural (não mais a crise cíclica tradicional) do capital, englobando toda uma época histórica. É o que explica a duração excepcional da fase “stop” neoliberal, agora já muito mais longa que a fase “go” do keynesianismo do pós-guerra. Fase que, ainda sem fim à vista, se vê perpetuada pela atenção igualmente cuidadosa de governos conservadores e trabalhistas. Ou seja, tanto a dureza antissindical quanto a duração assustadora da fase “stop” neoliberal, mais o fato de o neoliberalismo ser praticado por governos que deveriam estar situados de lados opostos do divisor político parlamentar, só podem ser entendidos como manifestações da crise estrutural do capital. A circunstância de a brutal longevidade da fase neoliberal ser racionalizada ideologicamente por alguns teóricos trabalhistas como o “longo ciclo recessivo” do desenvolvimento normal do capitalismo, a ser seguido por um outro “longo ciclo de expansão”, acentua apenas a incapacidade do “pensamento estratégico” reformista de entender a natureza das atuais tendências de desenvolvimento. Tanto mais que a selvageria do neoliberalismo continua a avançar sem as contestações de uma esquerda acomodada, e já começam a nos faltar os anos necessários até mesmo para a realização da caprichosa noção do próximo “longo ciclo de expansão”, como teorizam os apologistas do capital na esquerda.

Assim, dada a crise estrutural do sistema do capital, mesmo que uma alteração conjuntural fosse capaz de criar durante algum tempo uma tentativa de instituir alguma forma de administração financeira keynesiana do Estado, ela teria forçosamente uma duração muito limitada, devido à ausência das condições materiais que poderiam favorecer sua extensão por um período maior, mesmo nos países capitalistas avançados. Ainda mais importante, esse renascimento conjuntural limitado nada poderia oferecer para a realização da alternativa socialista radical. Pois seria impossível construir uma alternativa estratégica viável ao modo de controle do metabolismo social do capital sobre uma modalidade conjuntural interna de administração do sistema; uma forma que depende da expansão e da acumulação saudáveis do capital como pré-condição necessária de seu próprio modo de operação.

István Mészaros. O século XXI: socialismo ou barbárie?
 Trad. Paulo Cezar Castanheira.
São Paulo, Boitempo, 2003, p. 95-98.
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