quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Liberais conservadores evolucionistas: Bagehot, Stephen e Spencer



por José Guilherme Merquior

Nem todas as desconfianças sobre a democracia eram burkianas. As décadas de 1860 e 1870 testemunharam também outra espécie de liberalismo conservador: a espécie utilitária. Tal era posição de Walter Bagehot (1826-1877), um banqueiro, economista, jornalista e teórico político que editou The Economist desde 1861 até morrer. Bagehot vinha de uma família bancária provincial não-conformista, e foi educado no University College benthamita de Londres. Em seu livro The English Constitution (1867), exprimiu receios de que, com a próxima extensão da franquia (que efetivamente se materializou em 1867 e 1884), ambos os partidos, conservador e liberal, lutariam pelo apoio dos trabalhadores — algo que Bagehot encarava como um “perigo” para a liberdade.
 
Com Maine, Bagehot colocou a evolução social contra o progresso democrático. Ele dividiu sua lealdade entre inovação e estabilidade, recorrendo ao darwinismo social para frear a democracia. A estabilidade, disse ele sem rodeios, apoiava-se numa imensurável estupidez; num conjunto de hábitos formado por práticas sociais sedimentadas por força do estranho prestígio de instituições, para outros efeitos inúteis, como a monarquia ou os Lordes (as partes “dignificadas” em contraposição às partes “eficientes” da constituição). Por que motivo, na verdade, perguntou ele, deviam “uma viúva isolada e um jovem desempregado” (a saber, a rainha Vitória e o príncipe de Gales) atrair tanta atenção? Se o faziam era porque a Inglaterra “não podia ser governada” sem o efeito estupidificante da coroa. Igualmente, as classes governantes podiam permanecer no topo mediante astuciosas práticas eleitorais, manipulando os aspectos dignificados da ordem política para conseguir respeito aos poderes em vigor. Em Physics and Politics (1872) Bagehot conferiu a esse maquiavelismo cético uma torção darwinista: ele representou o êxito social e nacional como exemplos da “sobrevivência do mais capaz” e apoiou a função social da força junto à fraude institucional.

Essa espécie de liberalismo utilitário conservador de fala franca tornou-se um tanto maligna na obra do juiz James Fitzjames Stephen (1829-1894), irmão mais velho de Leslie Stephen e tio de Virginia Woolf. Grande codificador da lei penal, Stephen recebeu uma educação igual à de Mill em Cambridge, embebendo a Logic e os Princípios de economia política de Mill. Mas impacientou-se com o tardio moralismo de Mill e não gostava da sentimentalidade vitoriana, deplorando que o homem estava-se tornando cada vez “mais sensível e menos ambicioso”. Alguns de seus obiter dicta são boas máximas de áspero individualismo, como “Não é o amor que desejamos da grande massa da humanidade, mas respeito e justiça”. Mas ai de nós!, ele pendeu demasiado para o outro lado. Seu ensaio contra Mill, Liberty, Equality, Fraternity (1873), zombou de todas as três coisas, afirmando que a força, e não a liberdade, governa a vida social: os homens devem ser coagidos a serem honestos por castigos legais da espécie mais dura. Stephen criticou Mill por ter uma visão demasiado favorável da natureza humana. Mas a representação alternativa bestial de Stephen foi menos um aprofundamento do que uma patologia do liberalismo. Depois de algumas campanhas apaixonadas em favor de açoites nas escolas e, é claro, a pena de morte, o juiz Stephen (que paradoxalmente era um tanto inteligente no tribunal) terminou seus dias num hospital de doentes mentais — uma glosa apropriada do desequilíbrio que estava transformando o utilitarismo de um estado de espírito libertador em estado de espírito punitivo.

A posição conservadora liberal de longe mais influente no fim do século foi articulada pelo pai do evolucionismo como uma ideologia geral, Herbert Spencer (1820-1903). Spencer nasceu no Derby industrial, num lar wesleyano, e seguiu então a engenharia. Torno-se um colaborador do The Economist. Toda a sua vida, apegou-se tenazmente a uma ideia minimalista de Estado e uma forma maximalista de liberismo. Também era um individualista extremo e um verdadeiro herdeiro do desprezo benthamita pelo privilégio aristocrático e pela hierarquia espiritual. Contudo, houve pelo menos duas fases no caminho que Spencer seguiu para justificar seu individualismo, seu antiestatismo, e seu liberismo.

O livro do jovem Spencer Social Statistics (1850) revela uma teoria de direitos naturais extraída de William Godwin (1756-1836), autor de Political Justice (1793). Godwin é geralmente tido na conta do pai do anarquismo inglês e, como pai de Mary Shelley, avô de Frankenstein; seu ponto de partida foi o proto-anarquismo de Thomas Paine, para quem a sociedade era um bem, mas o governo um mal. A doutrina dos direitos naturais foi posta de lado por Bentham (“tolices com base em nada”), mas Spencer formulou três objeções contra o utilitarismo.

Em primeiro lugar, Spencer acreditava que o “cálculo da proporção da felicidade”, a aferição da felicidade geral do maior número, era uma tarefa impossível. Em segundo lugar, rejeitou firmemente o reformismo benthamita, já que significava um conjunto de mudanças estatais (legais e governamentais). Em terceiro lugar, afirmou a preexistência de direitos, em vez de insistir, como fizera Bentham, em que os direitos são criados pela lei. Usando estas pressuposições, o jovem Spencer extraiu de uma “lei de liberdade igual” a propriedade privada e o laissez-faire, o sufrágio universal, e um “direito de ignorar o Estado” — no fundo, um direito individualista de retirar-se, tanto mais razoável porque, como disse ele, “na medida em que progride a civilização, os governos decaem”.

Aos olhos de Spencer, a única função dos governos é a defesa dos cidadãos contra agressores, tanto estrangeiros como domésticos. Mas quando examinou a legislação liberal depois de 1860, Spencer achou que o governo, de qualquer forma, não se tinha confinado a essa função legítima. Patrocinando a promoção do bem-estar por meio da legislação industrial e muitas outras medidas filantrópicas, os liberais haviam perdido de vista a posição tradicional do liberalismo contra a coação. A revelação dessa traição liberal forma o cerne do livro The Man Versus The State, o best-seller de Spencer de 1884.

Na opinião de Spencer, a ampliação da legislação de bem-estar — “um excesso de legislação”, como afirmou num ensaio no final da década de 1860 — só podia levar ao despotismo. “Embora já não tenhamos ideia de coagir os homens para o seu bem espiritual”, escreveu ele, “ainda nos julgamos chamados a coagi-los para o seu bem material”. Aborrecido pela aquisição de casas para a municipalidade e pela propriedade estatal de ferrovias, Spencer deplorou em voz alta a perspectiva de “usurpação pelo Estado” de todas as indústrias, que, em sua opinião, ameaçava “suspender o processo de adaptação” e seu resultado, a seleção natural. Além disso, o crescimento do Estado acarretava burocracia, e a burocracia era para ele algo de intrinsecamente corrupto. Por outro lado, o estatismo de bem-estar também era imoral. A fé moderna no governo não passava de “uma forma sutil de fetichismo”.

Do lado da razão, por contraste, encontrava-se a evolução, “a disciplina beneficente embora severa” a que estava sujeita toda a vida, e que funcionava mediante o duro método da sobrevivência dos mais aptos. Como muitas vezes foi observado, a teoria social de Spencer torceu o darwinismo porque afirmou menos que o conflito evolucionário ocorreu na sociedade como ocorre na natureza do que devia funcionar para que a civilização progredisse. Numa história de ideias liberais, no entanto, o importante é que, na medida em que ele aderiu inteiramente ao evolucionismo, abandonou a primeira preocupação igualitária com a liberdade geral e o sufrágio universal. Passou a ser um crítico severo do governo majoritário; chamou a crença em maiorias parlamentares de a maior superstição política da época; e declarou que, no futuro, a função do verdadeiro liberalismo seria “impor um limite ao poder do Parlamento”.

Assim, quando o darwinismo social prevaleceu completamente sobre sua primitiva teoria de direitos, Spencer alcançou uma espécie de utilitarismo social. Mas esse utilitarismo social resultou, no seu caso, precisamente no oposto da variedade benthamita: uma desconfiança de democracia representativa. No final do século, em toda parte em que se sentiu a extensa influência de Spencer, o liberismo e o liberalismo foram vistos como coisas contrárias à democracia. Dos grande magnatas como John D. Rockefeller e Andrew Carnegie aos intelectuais liberais na Europa e nas Américas, o conceito de evolução, com a sobrevivência dos mais aptos, foi citado infinitamente. Muitos outros, de poetas vitorianos a populistas russos, não obstante, puseram a ideia em dúvida. Um dos pais da sociologia americana, William Graham Summer (1840-1910), da Universidade de Yale, declarou celebremente que, a despeito de toda a sua dureza, a lei da sobrevivência do mais apto não era obra do homem e, portanto, não podia ser ab-rogada pelo homem.

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MERQUIOR, J. G. O liberalismo: antigo e moderno. Trad. Henrique de Araújo Mesquita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p. 115-119.
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