quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Kalecki: entre Marx e Keynes


por Eleutério Prado
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Introdução

Há mais de trinta anos tem subsistido no Brasil um esforço continuado – e à contracorrente – para fazer uma boa divulgação, uma justa apreciação e mesmo uma apologia da obra econômica de Michal Kalecki. Esse empenho se mostra, por exemplo, nas introduções feitas por Jorge Miglioli em marcantes coletâneas de artigos desse economista polonês (Kalecki, 1977; Kalecki, 1980), assim como em artigos teóricos que procuram apresentar a originalidade e a fertilidade das ideias desse autor (Possas & Baltar, 1981; Possas, 1999). Fica claro quando se compulsa esse material – os artigos originais, assim como os textos explicativos que procuram captar os conteúdos teóricos aí contidos – que o propósito é encontrar e apresentar as bases de uma macroeconomia diferenciada, classista e dinâmica, em relação às macroeconomias que se sobressaem no campo definido pela teoria neoclássica. Os arautos desse saber alternativo que procura renegar o consenso vigente não deixam de associar o parentesco de sua obra originalíssima com a de Keynes, em particular com a Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro (1983). No conjunto das construções que buscam se contrapor ao chamado mainstream, encontra-se a questão de saber quais são os fundamentos teóricos da macroeconomia kaleckiana.

Como se sabe, foi Joan Robinson quem sustentou com grande empenho a tese avançada sinteticamente no título do presente artigo (Sardoni, 2011, p. 118-120). Kalecki, segundo ela, foi um autor muito importante na história do pensamento econômico, pois, tendo vindo de Marx, juntou-se com originalidade a Keynes, na construção de um paradigma teórico capaz de se contrapor, com notória efetividade, ao domínio do pensamento “clássico” (no sentido de Keynes) na compreensão do capitalismo como um todo. “Kalecki” – segundo ela – “teve uma grande vantagem em relação a Keynes – pois, nunca teve de aprender economia ortodoxa”. Segundo ela ainda, “a única teoria econômica (economics) que estudou foi a de Marx”. Mesmo assim, por seus próprios meios e mesmo antes daquele que se tornou a referência principal do novo paradigma, ele “explicou a teoria de Keynes em palavras simples”. Keynes, numa carta a Bernard Shaw, “sustentou que a sua teoria iria retirar o solo sob os pés dos marxistas”; porém, “se ele tivesse começado de Marx, isto lhe teria posto a salvo de um bocado de dificuldades” (Robinson, 1978, p. 56).

Robinson anota que Kalecki formulara o princípio da demanda efetiva antes do que Keynes. Eis que já em 1933, no livro Esboço de uma teoria do ciclo econômico, por meio de um modelo simples, ele mostrara, antecedendo a Teoria Geral do emprego, do juro e do dinheiro, publicada em 1936, que a demanda concretizada comanda a geração da renda na economia capitalista e que, portanto, não é a oferta que cria a sua própria procura tal como reza a Lei de Say. Ao fazê-lo, assentara também as bases de uma teoria do emprego que prevê que este flutue e assim permaneça, por certos períodos, fora do ponto em que haveria plena ocupação da força de trabalho disponível. Se Keynes não fora capaz de se libertar dos esquemas que permitem pensar a economia capitalista em equilíbrio, Kalecki fora mais longe, pois formulara uma teoria dinâmica em que o nível de atividade oscila com o ciclo econômico. Ao fazê-lo, por isso, não raciocinara com base na noção de multiplicador de emprego, mas considerara – o que é crucial – “o mecanismo dos ajustamentos dos estoques de capital, tomado agora como base de todas as modernas teorias dos ciclos econômicos” (ibidem, p. 55).

Também na teoria do investimento, segundo Robinson, Kalecki chegara a um patamar teórico superior àquele alcançado por Keynes. Este último mostrara que o investimento tende a prosseguir na economia capitalista desde que existam projetos viáveis cuja “eficiência marginal” se mostre superior às taxas de juros que devem ser pagas às finanças. Ora, com base nessa teorização, se a taxa de lucro esperada mostra-se superior ao retorno do capital tomado emprestado, nada parece limitar o ímpeto dos capitalistas para continuar investindo com vista à ampliação da capacidade de produção. Isto, porém, não parece nada realista. Keynes, segundo Robinson, não fora capaz de perceber que “nenhuma empresa individual pode comandar uma quantidade indefinidamente ampla de finança a uma dada taxa de juros”. Kalecki, ao contrário, tendo estudado Marx, foi capaz de “postular que a quantia de recursos financeiros que uma empresa individual pode obter para fazer investimento […] depende da razão entre a sua dívida e o seu capital próprio” (ibidem, p. 57). Sendo assim, o seu grau de endividamento – e, assim, a sua capacidade de crescimento – está condicionado tanto pela taxa de lucro prospectiva quanto pela própria capacidade de reembolso do capital emprestado, a qual diminui mais e mais com o endividamento crescente.

Keynes não chegou a esse ponto – e isto Robinson não diz – porque tomou a finança, em tese, como mera servidora funcional da produção, a qual, para ele, consiste inerentemente na geração de valores de uso, isto é, de bens e serviços na linguagem típica da teoria neoclássica, aliás, por ele sempre preferida. Ora, para os seus leitores atentos, essa perspectiva é bem patente já que chamou a economia capitalista de economia monetária de produção, supondo que a finança deve atuar como auxiliar da produção de coisas úteis para o conforto dos seres humanos. Notava, entretanto, que ela podia se tornar autocentrada e mesmo extravagante, prejudicando, assim, a produção. De qualquer modo, deixou de considerar que a finança também atua como exigente supervisora dos processos particulares de acumulação de capital que ocorrem na esfera do capital industrial (em sentido amplo). Como se sabe, ele tomou o fornecimento de capital a juros como se fosse meramente fornecimento de dinheiro ao setor produtivo para o seu bom funcionamento; nesse sentido, pensou uma demanda por dinheiro, por parte das pessoas e das empresas, como mera soma que advém dos motivos transação, precaução, especulação e finanças. (Carvalho, 1996) Nessa condição, o dinheiro é simplesmente emprestado como dinheiro e ganha juro apenas devido à sua escassez – e não por ser capital financeiro propriamente dito, que compartilha com o capital funcionante o poder socialmente constituído da relação de capital.

A teoria de Keynes é algo patético quando trata da finança – a irmã siamesa da indústria capitalista. E não só porque propôs a impossível “eutanásia do rentier”, isto é, a supressão do “poder cumulativo de opressão do capitalista em explorar o valor de escassez do capital”, algo possível, segundo ele, porque esse poder pode em princípio ser eliminado já que “a taxa de juros atual não compensa nenhum verdadeiro sacrifício” (Keynes, 1983, p. 255). Mas também porque não foi capaz de compreender que a relação de capital, em sua articulação de capital funcionante e capital financeiro, não permite normalmente que a economia capitalista chegue ao pleno emprego. Tudo isso vem do fato de que a sua teoria acolhe a tese de que a indústria e a finança podem não só ser analiticamente se- paradas, mas também avaliadas diferentemente enquanto participantes no processo do crescimento econômico.

Já Robinson, mesmo se considerando uma keynesiana, não deixa de pensar a finança como uma relação de poder que requer regulação não apenas em função do pleno emprego. Por isso, não deixou de mencionar que Kalecki foi agudo nessa questão, já que tinha uma visão mais clara sobre a natureza do capitalismo. Em seu artigo de 1943, Os aspectos políticos do pleno emprego (Kalecki, 1977, p. 54-60), mostrara ele com clareza que, nessa situação limite, é bem provável que o ânimo investidor dos capitalistas venha a se abater em geral. E que venha a se formar, então, uma coalizão entre “os grandes negócios e os interesses rentistas” e, em consequência, também uma grande onda conservadora, com a finalidade de exigir a eliminação da “finança doente” (unsound finance). Assim, ao promover “um retorno à finança saudável” (sound finance) – convém Robinson na esteira do ceticismo de Kalecki –, a atuação prática dessa coalizão política “recriará o desemprego outra vez” (Robinson, 1978, p. 59).

Segundo Robinson, Kalecki teria, assim, predito a existência necessária de um “ciclo político econômico” no evolver da governança democrática (limitada) no mundo ocidental, no pós-guerra: o Estado mostrar-se-ia ativo na formulação de políticas econômicas visando o crescimento, mas o keynesianismo seria oscilante. Por exemplo, os governantes de plantão esmerar-se-iam pela manutenção e pelo crescimento do emprego antes das eleições, mas teriam de optar pela austeridade depois que estas tivessem ocorrido, pois, após o pleito, eles teriam como objetivo principal, justamente, restaurar a saúde financeira do sistema econômico e do próprio Estado. Ter apontado, no entanto, que fora capaz de apreender corretamente, não sem uma certa ironia, algo bem central no modo de funcionar da política econômica contemporânea, é insuficiente como apreciação final das teses de Kalecki.

Antes de discutir mais detidamente as suas teses sobre a demanda efetiva e o pleno emprego, não se pode deixar de mencionar aqui as suas opiniões sobre a perspectiva metodológica que deve ser adotada na interpretação de Marx. Num discurso de 1964, ele procurou responder à seguinte pergunta: Por que a economia ainda não é uma ciência exata? De um modo surpreendente, conveio então que essa ciência tem algumas semelhanças com a física teórica. Eis que “ambas são disciplinas que, com base em premissas gerais derivadas do conhecimento dos fenômenos reais, desenvolvem um sistema dedutivo” (Kalecki, 1980, p. 39-40). Mas que, entretanto, difere daquela invejada porque abriga motivações ideológicas que não descuidam de elogiar o mecanismo de mercado (por meio da Lei de Say, por exemplo) e porque as suas proposições não são testáveis por meio de experiências.

Dito de outro modo, ele não só compreende a economia como ciência positiva, mas também propõe que a sua positividade está bem funda- da numa ontologia determinista. É por isso que ele, durante a sua brilhante carreira de economista, apesar de contínuas frustrações na tarefa de resolvê-lo satisfatoriamente, não abandonou nunca “o problema de encontrar os reais determinantes do investimento”, apresentando-os numa função matemática supostamente exata. (ibidem, p. 41)

Em outro ensaio do mesmo ano de 1964, Modelo econométrico e materialismo histórico, ele se aventurou na discussão de uma questão mais difícil, que diz respeito diretamente ao método de Marx. De modo também surpreendente, aí ele arriscou que esses dois modos de apreender a natureza do capitalismo não são divergentes: “as duas abordagens não parecem irreconciliáveis. No final das contas, os esquemas de reprodução de Marx não mais são do que modelos econométricos simples” (ibidem, p. 43). Assim, o mais famoso dos economistas poloneses ignorou solenemente que Marx não fez ciência dedutiva em O capital, mas ciência no suporte da dialética. Por isso, nessa obra, ele procurou apresentar o capital como conceito. (Müller, 1982) Buscou, dizendo de outro modo, fazer a exposição dialética do “sujeito automático” capital como conceito e, portanto, como totalidade (ainda que falsa). E que, por isso mesmo, os esquemas de reprodução são meios para expor, num grau elevado de abstração, certos aspectos importantes da circulação do capital – e não meros instrumentos de análise empírica. Ora, Kalecki deveria saber que a sua interpretação era arbitrária, já que os esquemas de reprodução são apresentados em valor e em valor monetário, simultaneamente, mas ele, Kalecki, por meio dela, suprimia a primeira dimensão porque rejeitava explicitamente a noção de valor trabalho de Marx. Eis que a considerava metafísica e, portanto, supérflua.

Se tivesse levado a sério a obra, ele saberia que, para a dialética, a essência se manifesta nos fenômenos e que, na hipótese de desprezá-la, não se consegue chegar senão a uma compreensão incoerente desses mesmos fenômenos. Saberia, também, que a necessidade e a contingência são determinações do real que não se excluem e que, portanto, da perspectiva de Marx, é vulgar – e mesmo enganoso – fazer ciência positiva, aparentemente exata, de um objeto tão complexo quanto o sistema econômico. Eis que o saber da aparência é em si mesmo insatisfatório e, por isso, vale apenas como um primeiro momento superável da investigação científica. Se a Física teórica por ele referida desenvolve-se sob o pressuposto de que vem a ser possível chegar aí a uma cientificidade exata, é porque as contingências que afetam as conexões aparentes entre fenômenos do mundo físico são desprezíveis, tanto na teoria como na experiência e na prática. E que, assim sendo, a essência dos fenômenos pode permanecer implícita.

Demanda efetiva

O miolo da teoria da demanda efetiva foi apresentado por Kalecki no artigo Os determinantes do lucro, publicado em 1965 (Kalecki, 1980, p. 51- 59). Aí ele parte de um esquema de reprodução específico, construído por ele mesmo segundo as necessidades de sua elaboração teórica dedutiva, ainda que formalmente inspirado nos esquemas de reprodução de Marx. Note-se, entretanto, que os de Marx referem-se à reprodução do capital, mas os de Kalecki tratam, pressupondo a produção, da geração de rendimentos. Nesse artigo, ele opera com uma economia fechada, sem governo e com apenas duas classes de recebedores de renda. Admite que a capacidade de produção do sistema econômico é fixa em geral e que não existem estoques finais de bens não vendidos. Supõe, portanto, que o sistema está em equilíbrio. Os valores estão expressos numa determinada unidade monetária que não precisa ser especificada.

Para ele, a economia capitalista não produz propriamente mercadorias, mas bens em geral; estes são usados por capitalistas e por trabalha- dores para satisfazer as suas necessidades. Divide, então, o sistema econômico em três partes: o departamento I, que produz bens de investimento; o departamento II, que produz bens de consumo dos capitalistas; e o departamento III, que produz bens de consumo dos trabalhadores. Os três setores são plenamente integrados de tal modo que a existência de bens intermediários fica embutida em cada um deles. Se P é lucro, W é salário, I, Cc e Cw representam, respectivamente, os montantes produzidos de bens de investimento, de consumo dos capitalistas e de consumo dos trabalhadores, tem-se:
P¹ + W¹ = I
P² + W² = CcP³ + W³ = Cw
Kalecki supõe, para simplificar, que os trabalhadores gastam tudo o que ganham no consumo de bens do setor III. Chama o lucro total de P. Então, mediante uma simples manipulação algébrica, obtém uma identidade bem óbvia, segundo a qual o lucro bruto total é igual ao investimento bruto mais o montante do consumo dos capitalistas. Em si mesma, essa expressão contábil diz pouco sobre o funcionamento do sistema econômico.
P = I + Cc
Em sequência, Kalecki passa a interpretar essa relação teoricamente com base em determinados supostos de causação: esta – pergunta – vai da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda? Pode-se pensar que os lucros – indaga – determinam num dado período o investimento e o consumo dos capitalistas? Ou, ao contrário, que são estes dispêndios é que determinam o lucro? Segundo ele, a resposta é encontrada tão logo se pergunte quais dessas variáveis estão sujeitas às decisões dos capitalistas. Como considera a variável “lucro” como passiva – eis que os capitalistas não podem decidir quanto ganham –, chega à conclusão de que “são suas decisões de investimento e consumo que determinam os lucros e não vice-versa” (ibidem, p. 52). Segue-se, portanto, a famosa demonstração de Kalecki: na economia assim construída e assim pensada, os trabalhadores gastam o que ganham e os capitalistas ganham o que gastam. Em seu esquema teórico, a renda dos trabalhadores é determinada pelo que denomina de “fatores de distribuição” (grau de monopólio, poder de barganha etc.). É por meio deles que explica a repartição do valor adicionado em salários e lucros. Posto isto, ele conclui que “o investimento e o consumo dos capitalistas juntamente com os ‘fatores de distribuição’ determinam o consumo dos trabalhadores e, em consequência, o emprego e a produção nacional” (ibidem, p. 53-54).

Por meio dessa formulação, ao atribuir autonomia ao gasto, ao tomar o gasto em geral como variável de decisão, chega de um modo muito simples àquilo que foi denominado por Keynes de princípio da demanda efetiva. Pois, ao afirmar teoricamente a autonomia dos dispêndios, contradita já a Lei de Say. Kalecki toma, implicitamente, a economia capitalista como economia monetária, pressupondo em seu raciocínio que o dinheiro não só intermedeia as trocas em geral, mas que ele é, também, um ponto de parada possível na cadeia das transações mercantis: aquele que vende e recebe dinheiro por uma venda, tem de decidir se vai comprar ou se vai reter o próprio dinheiro. Ora, ao admitir que a oferta não cria a procura numa economia mercantil generalizada, teria ele admitido, então, necessariamente, que é a procura que cria a sua oferta? A resposta a essa questão tem de enfrentar uma certa ambiguidade e ela se encontra nas próprias teorias aqui sob escrutínio.

Por meio do suposto de que esse tipo de economia tende ao equilíbrio e de que nela estão sempre em operação multiplicadores (eles não aparecem – advirta-se – na formulação aqui mencionada de Kalecki), os quais transformam os gastos em aumentos mais do que proporcionais da renda e do “produto”, pode-se dizer que Keynes admite que a Lei de Say não apenas deve ser negada, mas deve sim ser revertida. Esse autor supõe, sim, que a procura solvente por bens e serviços é a causa primeira da produção e isto se explicita pelo fato de que cunhou o termo princípio da demanda efetiva para indicar essa relação de causação. E essa opção teórica foi notada já por Mattick: “Keynes” – registrou em seu livro clássico sobre Marx e Keynes – “derrotara a Lei de Say do mercado no seu próprio terreno, ou seja, com base no pressuposto de que a produção é efetuada em prol do consumo. E como poderia ele ter mais êxito nesta tarefa do que mostrando que a oferta não cria a sua própria procura, justamente pelo ‘fato’ de a produção estar subordinada ao consumo? ” (Mattick, 2010, p. 22).

Kalecki, porém, parece admitir que há apenas um problema de demanda efetiva na economia capitalista, sem se comprometer com a tese de que o seu funcionamento está regulado pela demanda efetiva na condição de “princípio”. Contudo, como mostrou Shaikh (1989), ele se manteve prisioneiro do paradigma da economia de equilíbrio em que está já inscrita a ilusória autonomia da demanda dita agregada. Elaborou, é certo, uma teoria dinâmica do movimento do sistema como um todo, mas os modelos que construiu estão baseados na tendência ao rápido ajustamento (ainda que cíclico) da oferta e da demanda agregadas, sob a condição de que não há acumulação de capital na forma de capital fixo. Assim, fica formalmente escondido o protagonismo da oferta na economia capitalista, reflexo do fato que a sua meta sistêmica é a acumulação insaciável de valor e não, portanto, primariamente, a produção de bens e serviços. O modelo estático acima apresentado é, desde o início, encarado como uma base para a construção de uma teoria dinâmica porque, desde o início, o equilíbrio é tomado como um ponto de repouso dessa dinâmica.

De qualquer modo, para compreender melhor essa questão, é preciso romper com o suposto de que a economia de referência está em equilíbrio e de que não existem aí estoques de bens finais não vendidos (ou que eles existem, mas são planejados). Na economia capitalista, justamente porque é descentralizada e anárquica, como condição necessária de seu funcionamento regular, existem normalmente estoques finais de mercadorias (e não de bens) prontas para a venda, os quais, devido às contingências dos mercados, não são necessariamente vendidas. Dito de outro modo – e enfaticamente –, é preciso admitir que há constante excesso de oferta de mercadorias na economia capitalista. E que, ademais, há acumulação na forma de capital fixo. Admitida essa situação de não equilíbrio, pode-se voltar à interpretação da equação fundamental de Kalecki. O que ela diz, agora? É preciso ver, então, de modo preliminar, que se é certo que a produção não cria a sua pro- cura, é também bem certo que não pode haver qualquer dispêndio sem que antes tenha havido produção.

Posto isto, é preciso admitir em sequência que as decisões sobre quanto gastar podem ser, em última análise, decisões sobre quanto produzir. Quando os capitalistas decidem o montante a ser investido, eles decidem, por um lado, quanto vão produzir no período subsequente e, por outro, quanto vão poder produzir num futuro mais distante. No primeiro caso, eles deliberam quanto empregar no período presente de meios de produção correntes e força de trabalho; e, no segundo, eles resolvem quanto aplicam em capital fixo, tendo em vista elevar a capacidade de produção para os próximos períodos. Neste segundo caso, eles escolhem, no presente, quanto acumular tendo em vista a capacidade de produção futura. Em ambos os casos, eles decidem prospectivamente, num ambiente permeado de incerteza (a qual, é claro, decorre da própria anarquia da produção capitalista), quanto esperam ganhar por meio da esperada realização do valor das mercadorias. É verdade, porém, que não podem decidir previamente, tal como Kalecki menciona, de um modo bem preciso, quanto vão ganhar efetivamente…

É preciso renovar agora a pergunta: o que diz, afinal, a equação fundamental de Kalecki? Eis que, agora, não se pode dizer mais que o gasto capitalista determina exatamente, em última análise, junto com os fatores distributivos, o montante do “produto nacional”. Pois, agora, mesmo ficando no curto prazo, é preciso considerar a variação dos estoques de mercado- rias finalizadas. A equação completa (antes do cancelamento dos ganhos e dos gastos dos trabalhadores) mostra, por um lado, que no valor realizado por meio das vendas de mercadorias está reproduzindo o valor gasto no curso do processo de produção na compra de força de trabalho; mostra, por outro, que além do retorno do capital gasto em folha de salário, os capita- listas obtêm um lucro (um mais-valor), o qual surge “milagrosamente” em seus caixas após a efetiva venda nos mercados de um determinado volume de mercadorias. Como o resultado final contém um tanto de “surpresa”, é bem certo que aquilo que os capitalistas esperavam ganhar ex-ante nunca coincide exatamente com o que de fato obtêm, ex-post.

Tal “milagre” só pode ser bem explicado – é evidente – retomando a teoria valor de Marx e, assim, a sua crítica do fetichismo da produção capitalista. De qualquer modo, a diferença de perspectiva assim introduzida revela-se como bem notável: ao invés de analisar a economia capitalista por meio da esfera da circulação do capital e, assim, da repartição, passou-se a examiná-la a partir da esfera da produção, não meramente como local da produção de bens e serviços, mas como domínio da produção de valor sob a capa da produção de valores de uso, isto é, de mercadorias. O esquema de geração das rendas de Kalecki passou a ser reinterpreta- do como mero reflexo superficial da reprodução do capital.

A decisão dupla do capitalista sobre quanto produzir no período corrente e quanto se capa- citar para produzir no futuro apresenta como dilema subjetivo uma contradição inerente à relação de capital: eis que o capital é, ao mesmo tempo, impulso de conservação do que se encontra acumulado – e que, por isso, está limitado – e impulso de acumulação sem limite. E, no curso do processo social, qualquer um deles pode alimentar ou contrariar o outro, sem dó nem piedade, como sói acontecer num mundo anárquico em que imperam as contradições agônicas e antagônicas.

É preferível entesourar o mais-valor recém obtido como lucro, tentando preservá-lo da fúria da concorrência, ou é melhor lançá-lo de novo no processo social da acumulação para, eventualmente, obter mais-valor? É conveniente tomar capital emprestado em adição ao capital próprio para investir na produção presente ou futura ou, alternativamente, parece melhor passar a em- prestar o capital já acumulado? O capitalista é ganancioso, mas sempre sabe que pode quebrar. Do ponto de vista do capitalista individual, as decisões acima referidas parecem isoladas e independentes entre si mesmas, mas, como se sabe, elas se encontram intrinsecamente imbricadas sistemicamente.

Kalecki não deixa de mostrar que os dispêndios acumulativos de cada capitalista atuam como demandas para os outros capitalistas, numa cadeia de alimentação e retroalimentação que define não apenas o nível de atividade no presente, mas também no futuro. De igual modo, ele mostra também que esse mecanismo funciona em sentido contrário e o faz quando analisa os ciclos econômicos. Nesse sentido, porém, “uma carência de procura efetiva” – como observa Mattick – “é apenas outra expressão para fazer referência a uma insuficiência de acumulação de capital” (Mattick, 2010, p. 23). E, em consequência, a falta de demanda, de incentivo ao investimento, de disposição psicológica à acumulação, não pode ser uma explicação para a falta de acumulação. Por que, então, surge em dados momentos e por certos períodos uma carência de demanda efetiva? Como indica Mattick, “Marx identificara já a raiz última do dilema: o caráter da produção enquanto produção de capital” (ibidem, p. 34). Eis que num processo dinâmico complexo não resolve indicar um ou outro mecanismo aí presente, mas é preciso apontar o motor do processo como um todo, assim como explicar a sua lógica de funcionamento no tempo e no espaço.

Eis que a produção capitalista é produção de valor e de mais-valor, que precisa ser vendida na forma antitética de valores de uso. A lógica da produção de mercadorias tem de obedecer, pois, à lógica da acumulação de capital, que consiste em obter lucros em quantidade suficiente para remunerar o capital já acumulado. Ora, o ímpeto de acumulação de capital não apenas incentiva em certos momentos, mas também tem a capacidade de minar em outros momentos, a própria produção de capital. Pois se a produção corrente de mercadorias deixar de propiciar os lucros esperados pela relação de capital, ela será inapelavelmente sacrificada.

Pleno emprego


Como se sabe, Marx considerou a existência constante de um exército industrial de reserva como uma condição necessária do funcionamento da economia capitalista, pois a sua existência e permanência é que controla a manutenção oscilante dos salários na esfera do custo da reprodução da força de trabalho. Como Shaikh explicou recentemente, para esse autor – assim como para a economia política clássica – o sistema capitalista é internamente regulado de modo turbulento; por isso, apresenta certos padrões recorrentes de comportamento que se revelam apenas como “médias” (Shaikh, 2016, p. 4-7). Nesse sistema anárquico, a ordem surge da desordem constrangida por certos limites também internos; os padrões de regularidade emergem apenas por gravitação em torno de certos “pontos de não repouso”, os quais foram denominados por Adam Smith de “centros de gravidade”. Em consequência, o desemprego maior ou menor da força de trabalho nas variações da conjuntura e na irregularidade dos ciclos econômicos aparece nessa compreensão do capitalismo simplesmente como uma deformidade estrutural, como uma monstruosidade insuperável que lhe é intrínseca.

De modo distinto, na perspectiva das teorias de Keynes e Kalecki, centradas na esfera da circulação e orientadas pela noção de equilíbrio, o pleno emprego aparece normalmente como algo possível em princípio. Essa possibilidade, no entanto, é uma decorrência ilusória que surge simplesmente porque o sistema é pensado no paradigma do equilíbrio como ponto de repouso. Se os neoclássicos, de quem são tributários dissidentes, supõem concorrência perfeita, eles, os heterodoxos dessa tradição, admitem duplamente que ela é sempre imperfeita, mas que pode ser devidamente aperfeiçoada e mesmo corrigida. Para tanto, eles apelam inevitavelmente para uma adequada regulação do Estado, suposta sempre como possível. A existência de desemprego tende a surgir nessas teorias como um problema que pode ser atacado por meio da gestão eficiente da demanda efetiva. E isto também se explica – é claro – por uma diferença de momento histórico; no correr do século XX, o desemprego – e mais ainda o desemprego alto e crônico que aparece na década dos anos 30 – deixa de aparecer como algo “natural” para se manifestar como uma questão de política econômica.

Em 1944, Kalecki publicou um artigo que inequivocamente contempla o pleno emprego como algo viável numa economia capitalista; denominou-o, por isso, de Três caminhos para o pleno emprego (1980, p. 75-97). A primeira frase desse estudo diz: “o propósito deste artigo é discutir os métodos para atingir e manter o pleno emprego numa sociedade capitalista”. A primeira frase do segundo parágrafo acrescenta enfaticamente: “vamos tratar neste artigo da geração de adequada demanda efetiva para assegurar e manter o pleno emprego” (ibidem, p. 75). Em sequência, discrimina os três caminhos: a) por meio do dispêndio do governo em gastos públicos (investimentos ou consumo) financiados por empréstimos; b) pelo estímulo ao investimento privado por meio da redução da taxa de juros e dos impostos; c) por meio de uma política de redistribuição de renda dos ricos para os pobres. Não é possível entrar aqui no conteúdo do artigo que discute em detalhes esses três caminhos, pois, para os propósitos do presente texto, basta registrar somente uma sua conclusão: “o segundo método, isto é, o estímulo ao investimento privado, não é satisfatório, mas tanto o primeiro método quanto o terceiro são meios adequados de se manter o pleno emprego” (ibidem, p. 76).

Kalecki rejeita o estímulo ao investimento privado como meio eficiente para alcançar o objetivo colimado justamente porque parte de uma situação em que falta demanda efetiva. E lhe parece que incrementar a acumulação de capital – isto é, sendo mais preciso, dos estoques de meios de produção – no setor privado terá como efeito aumentar aí a capacidade de produção quando ela já existe de sobra no sistema econômico. “O papel do investimento privado” – segundo ele – “consiste em fornecer instrumentos para a produção de bens de consumo, e não o de propiciar trabalho suficiente para empregar a mão-de-obra disponível” (ibidem, p. 91). Eis que – e isto é bem evidente – paira como uma sombra não eliminável sobre as suas análises a conhecida tese vulgar segundo a qual as crises capitalistas provêm do subconsumo. Além dessa razão que chama de econômica e fundamental, aponta também para uma razão de ordem política: o estímulo ao investimento privado depende da reação dos empresários e estes, num quadro de recessão generalizada, tendem a manter expectativas pessimistas. Os capitalistas – resume – não costumam investir pesadamente mesmo se a taxa de lucro esperada é razoável e tende mesmo a aumentar um pouco “quando não sentem confiança na situação política” (ibidem, p. 92).

O tema que aparece nessa última frase foi retomado por ele, de modo extenso, num artigo famoso que foi chamado de Os aspectos políticos do pleno emprego (1977, p. 54-60). Nesse texto, também da década dos anos 40 – de fato, ele foi publicado pela primeira vez em 1943 –, Kalecki desenvolve a tese de que o pleno emprego é viável economicamente, mas difícil de ser alcançado politicamente: “é falsa a suposição” – sustenta – “de que um governo manterá o pleno emprego numa economia capitalista se ele sabe como fazê-lo” (Kalecki, 1977, p. 54). Antes de apresentar o cerne de seus argumentos, é bom mencionar já aqui que essa tese, por trazer à tona a luta de classes, mesmo se parece acompanhar uma suposta economia política marxiana, corre na verdade em sentido contrário à crítica da economia política de Marx.

Na leitura desse texto, fica evidente que Kalecki, para chegar ao seu ceticismo quanto à possibilidade de contrariar o desemprego maciço nas economias capitalistas avançadas, partiu de uma observação sistemática da conjuntura política nos países que enfrentaram as severas crises dos anos 30 – e não de uma consideração teórica bem fundamentada sobre a própria natureza da acumulação de capital. Como foi visto, a sua teoria da demanda efetiva autoriza e mesmo clama por políticas que levem ao pleno emprego. Entretanto, esse estado da economia, paradoxalmente, tem adversários. Os capitalistas – segundo ele – sonham com uma expansão econômica que seja capaz de reverter a depressão, mas tão logo os governantes lhes ofereçam essa alternativa, por exemplo, por meio da implementação de políticas de gastos públicos financiados pelo endividamento, eles ficam amuados e as recusam. A pergunta que faz na abertura de seu artigo volta-se, assim, para saber por que surge tal aversão?

Tal como Keynes, que também veda uma compreensão mais profunda da opacidade e do automatismo constitutivos do sistema econômico, ele parte do comportamento dos agentes econômicos. Considera que eles, baseados em seus próprios interesses, conduzem de modo autônomo, ainda que em estado de incerteza, o processo econômico. Se Keynes trata os atores movidos por suas motivações como indivíduos, Kalecki pensa que eles formam classes sociais. A oposição dos “líderes industriais” ao pleno emprego – diz – tem motivos subjacentes e estes podem ser agrupados em três categorias: a) desaprovação da interferência do Governo em si mesma; b) oposição à natureza dos gastos que privilegiam diretamente os trabalhadores; c) “reprovação às mudanças sociais e políticas resultantes da manutenção do pleno emprego” (ibidem, p. 55). E ele parece estar bem apoiado na observação empírica, pelo menos no que se refere aos itens “a” e “b” acima arrolados; entre- tanto, no que se refere ao item “c”, a sua leitura dos fatos está amparada numa consideração teórica que precisar ser aqui bem examinada.

Eis que nesse item “c”, Kalecki aponta para uma motivação de ordem política estrita que, supostamente, contraria a lógica econômica. Mesmo se essa conjuntura econômica lhes é favorável do ponto de vista dos lucros, os “líderes empresariais”, segundo ele, tendem a fazer enorme oposição à política de pleno emprego, pois ficam muito “aborrecidos” diante das dificuldades crescentes que encontram no controle dos trabalhadores que empregam em suas empresas. Conforme o sistema econômico atinge essa situação de auge e uma onda de relativa satisfação passa a percorrer a sociedade, torna-se enfraquecida a dominação política da burguesia sobre os assalariados. Eis que “os trabalhadores se soltam das mãos dos capitalistas e os ‘capitães da indústria’ ficam ansiosos por ‘ensinar-lhes uma lição’” (ibidem, p. 59). Nessa situação – convém ele – “é provável que se forme um poderoso bloco de grandes empresários e de rentistas, o qual encontrará mais de um economista disposto a declarar que a finança, nessa situação, está doente […], fazendo com que o Governo retorne à política ortodoxa de corte do déficit público” (ibidem, p. 60)

Mesmo se essa tese de Kalecki levanta corretamente a questão da dominação de classe na esfera da economia política, ao se pensar a questão a partir de Marx e de sua crítica, há pontos na elaboração teórica desse autor que devem ser criticados. Primeiro, porque é bem duvidoso que os capitalistas se oponham à política de pleno emprego quando, de fato, as margens de lucro se encontram – se, de fato, estiverem – majoradas. Se o fazem, é bem provável que essas margens, ao contrário, foram apertadas em consequência da luta crescente, individual e coletiva, dos membros da classe assalariada por aumentos do salário real. A elevação do poder de barganha dos trabalhadores em tal conjuntura de auge produz, em geral, uma elevação dos seus ganhos e, assim, um decréscimo das margens de lucro e, portanto, também, uma queda das taxas de lucro, à qual os capitalistas reagem mediante a suspensão dos planos de investimento. Na busca de recuperação das margens, eles também procuram elevar os preços das mercadorias, mas a inflação decorrente vem criar, também, um ambiente desfavorável às novas inversões. A política de demanda por austeridade não vem antes, mas depois que o quadro econômico se deteriora. Pois, os capitalistas em geral não são agentes autônomos no sentido pleno da palavra, mas, ao contrário, são suportes da relação de capital. São, na verdade, atores que emprestam a sua vontade e consciên- cia às demandas das mercadorias, do dinheiro e do capital, e que atuam econômica e politicamente em função dos imperativos objetivos da acumulação de capital.

Ademais, como apreende o modo de produção capitalista a partir da circulação do capital – e não a partir de sua produção –, Kalecki caracteriza as classes pela forma de apropriação dos rendimentos e, assim, acaba caindo numa distinção de longa tradição, mas também keynesiana, entre empresários e rentistas. Os primeiros aparecem como capitalistas “bons”, pois, junto com os trabalhadores, atuam na produção de bens e serviços; já os segundos, proprietários ausentes que se apropriam de uma parte da renda gerada sem atuar na sua produção, figuram como capitalistas “maus”. E esses adjetivos constrangedores se justificam, pois é bem usual considerar, nessa tradição, os rentistas como parasitas eventualmente anuláveis ou mesmo descartáveis no processo de acumulação. De qualquer modo, ao manter essa distinção, ele se afasta da compreensão de Marx quanto à natureza do capitalismo. Para esse autor, como bem sabe, este modo de produção orienta-se centralmente pela acumulação de capital, seja lá quais forem as formas por meio das quais este existe – e não pela produção de bens e serviços: “o valor de uso nunca deve ser tratado” – escreveu – “como meta imediata do capitalismo; tam- pouco o lucro isolado, mas apenas o incessante movimento do ganho” (Marx, 1983, p. 129).

A consequência principal dessa posição teórica é que ela obstrui e elude a compreensão do capital como sujeito automático, fetichista e totalizante e, assim, por extensão, a união siamesa entre o capital funcionante e o capital financeiro. A relação de capital encontra-se reificada não apenas como capital monetário, capital produtivo e capital mercadoria no circuito D – M … P … M – D’, mas também, necessariamente, como capital portador de juros, que subsome em si o capital funcionante no circuito D – (D – M – D’) – D’’. Assim, pois, o capital funcionante e o capital financeiro existem necessariamente numa relação de completa simbiose, já que ambos constituem o sistema de dominação do capital. Às vezes, há mesmo certa correspondência entre o capital aderido aos suportes materiais e o capital fictício que circula na esfera financeira, na forma de títulos de renda fixa e variável. Outras vezes, essa relação é indireta e manifesta-se, também na forma de títulos de propriedade, somente como direito a certos ganhos futuros gerados no funcionamento do sistema econômico. Mediante uma forma fictícia, que surge necessariamente da trans- formação do capital em mercadoria, o capital, como diz Marx, parece se duplicar em capital extrator de mais-valor (capital propriamente dito) e capital meramente apropriador de renda (capital fictício). Porém, esse desdobramento não é uma anomalia, mas o modo próprio de auto-organização do monstro sistêmico para melhor sugar a energia da classe trabalhadora na forma do mais-valor.

Pode-se mesmo dizer que a subordinação do trabalho ao capital no modo de produção capitalista se dá em dois níveis e que estes se encontram inerentemente acoplados (Sotiropoulos, 2011). No primeiro deles, que se dá no nível da empresa capitalista, concretiza-se aquilo que foi denominado por subsunção formal e real do trabalho ao capital pelo próprio Marx. Como se sabe, a subordinação do trabalho ao capital não nasceu pronta de uma vez por todas; ao contrário, desenvolveu-se por meio um processo secular, que partiu da cooperação simples, passou pela manufatura, galgou a grande indústria e chegou à pós-grande indústria. (Prado, 2005) No segundo nível, a dominação que ocorre no interior da empresa recebe um reforço do exterior e este se dá por meio da subordinação do capital funcionante ao capital financeiro. Ora, este reforço também passou por um processo secular de desenvolvimento, em que se pode distinguir diversas fases. Marx indicou apenas que nessas etapas ocorre uma progressiva socialização do capital, isto é, que este deixa de aparecer como capital privado para passar a existir cada vez mais como propriedade de indivíduos direta- mente associados, como propriedade social. E que esse processo ocorre junto com o desenvolvimento da centralização e da concentração do capital. Sob essa luz que faz ver longe, o que é atualmente denominado de financeirização, o reinado dos fundos de investimento em geral e dos bancos que os administram, é apenas um estágio avançado desse processo que, agora, engloba o mundo como um todo.

É por isso que atualmente, após o amplo desenvolvimento da transformação do capital em propriedade coletiva de grandes associações de capitalistas, mesmo se o capital como tal é ainda, sobretudo, a relação que explora o trabalho, o capital financeiro tende a aparecer na esfera da circulação como capital por excelência. Marx observou, como bem se sabe, que na forma de capital a juros “o capital recebe sua forma pura de fetiche, D – D’, como sujeito” em si e para si (Marx, 1984, p. 294). Primeiro porque está e fica na forma dinheiro de modo perene e, segundo, porque o juro que recebe parece algo que lhe cabe enquanto tal. No capitalismo contemporâneo, a múltiplas formas do capital fictício, as quais se derivam por duplicação do capital a juros, constituem um sistema fantástico que parece se mover por energia própria rumo ao desconhecido. Porém, esse sistema enquanto tal é, em última análise, uma alavanca da exploração e, assim, da acumulação e, assim também, da superacumulação, já que a acumulação de capital (roubando aqui uma frase lapidar) é “forçada aqui até seus limites extremos”. E assim (roubando outra), “acelera as erupções violentas dessa contradição (entre as forças produtivas e as relações de produção), as crises e, com isso, os elementos da dissolução do antigo modo de produção” (ibidem, p. 335).

Conclusão

Este artigo buscou mostrar a insuficiência da teoria econômica de Michal Kalecki como compreensão do modo de produção capitalista, mesmo se representa um avanço significativo na compreensão do sistema como um todo em relação às teorias concorrentes, mais conservadoras, no campo da macroeconomia. E que é – e isto pode ser apresentado como conclusão – apenas uma teoria econômica, uma construção intelectual que deseja apenas explicar o funcionamento do sistema econômico que aí está, que pode ajudar a reformá-lo, mas não se move pelo desejo de superá-lo. Ademais, também se pode dizer dela o que Paul Mattick disse da teoria consagrada e muito mais difundida de John M. Keynes, ou seja, que também ela é “um regresso parcial à teoria clássica” (Mattick, 2010, p. 33).

Mesmo se não vem da teoria neoclássica, Kalecki não acompanha Marx na crítica da economia política. Eis que se preocupa com o movimento do sistema econômico como um todo, com as suas flutuações, com os seus déficits de desempenho e mesmo com as suas crises inexoráveis, mantendo o foco analítico na repartição da renda e nas lutas pelos ganhos das classes sociais. Porém, falta-lhe a perspectiva da crítica da compulsão acumulativa, da reificação e do fetichismo, características estas que marcam esse sistema de reprodução social como uma religião do dinheiro que engendra mais dinheiro – religião cujo caráter repressivo não se apreende de imediato, mas que requer o longo e árduo esforço da crítica dialética.

Joan Robinson, portanto, está certa quando diz que Kalecki se encontra entre Marx e Keynes; porém, ela não foi capaz de indicar que ele se encontra muito, muito, muitíssimo mesmo, mais perto de Keynes do que de Marx. É justo, pois, considerá-lo apenas como um economista keynesiano.

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Resumo: Michal Kalecki, mesmo tendo partido da obra de Marx, nunca adotou de fato as suas diretrizes metodológicas. Desenvolveu apenas, isto sim, uma longa e profícua carreira de economista. De fato, ele nunca pretendeu mais do que desenvolver uma teoria positiva do funcionamento do capitalismo. Apesar de algumas divergências, construiu uma teoria muito similar à de Keynes — um economista liberal por formação e por opção política. Mesmo sendo um socialista, Kalecki não produziu uma teoria crítica do capitalismo. Tal como Keynes, analisou o sistema capitalista pela ótica da circulação do capital, dando sustentação à tese de que a meta desse sistema é a produção de valores de uso. Não escapou também, verdadeiramente, do paradigma da economia do equilíbrio.

Palavras-chave: Kalecki; marxismo; keynesianismo: demanda efetiva; pleno emprego.

Abstract: Michal Kalecki, even taking advantage of Marx’s work, never actually adopted its methodological guidelines. He developed only, rather, a long and fruitful economist career. In fact, he intended only to develop a positive theory of how capitalism works. Despite some differences, he built a theory very similar to the theory of Keynes
— a liberal economist by training and by political option. Even though socialist, Kalecki did not produce a critical theory of capitalism. As Keynes, he analyzed the capitalist system from the perspective of capital circulation, supporting the thesis that the goal of this system is the production of use values. In addition, he does not truly escaped from the equilibrium economics paradigm.

Keywords: Kalecki; Marxism; Keynesianism: effective demand; full employment.
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PRADO, E. F. S. “Kalecki: entre Marx e Keynes”. In: Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. 44 / junho/2016 - setembro/2016, p. 66-83.
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