Introdução
De acordo com a postura marxiana clássica, o trabalho, como práxis humana, consubstancia-se enquanto categoria central tanto numa perspectiva antropológica, no contexto da humanização evolutiva do homem, quanto numa perspectiva ontológica, no horizonte da autocriação (Selstformation) do ser social, como também numa perspectiva epistemológica, no limiar das pesquisas sociais em diversos ramos.[1]
Entrementes, há na atualidade uma corrente de pesquisadores e pensadores, emergida na interioridade do próprio marxismo, que se caracteriza pela negação dessa postura marxiana clássica exatamente por não conceber a centralidade, mas a descentralidade da categoria trabalho em todos os ramos do saber. E nos parece que foi Habermas um dos primeiros a agir, programaticamente, no sentido de descentralizar a categoria trabalho no interior do cognominado marxismo revisado — inaugurado no Ocidente pela Teoria Crítica.[2]
Seguindo sendas abertas pela Teoria Crítica, Habermas dá seguimento à revisão do marxismo embasado numa epistemologia de matriz kantiana, ou seja, numa epistemologia centrada na razão (Vernunft); só que, agora, num novo contexto; de uma razão comunicativa pura, despida de qualquer elementos referentes ao conflito e às distorções à razão instrumental — esfera onde está situada a categoria trabalho (1990b). Nesse sentido, Habermas preliminarmente irá se pôr contra o domínio epistemológico da categoria trabalho persistente nas pesquisas e nas teorizações sociológicas. Oposição essa que toma corpo em uma corrente crítica antiprodutivista, ou seja, anti-categoria trabalho. De acordo com Claus Offe:
De acordo com a postura marxiana clássica, o trabalho, como práxis humana, consubstancia-se enquanto categoria central tanto numa perspectiva antropológica, no contexto da humanização evolutiva do homem, quanto numa perspectiva ontológica, no horizonte da autocriação (Selstformation) do ser social, como também numa perspectiva epistemológica, no limiar das pesquisas sociais em diversos ramos.[1]
Entrementes, há na atualidade uma corrente de pesquisadores e pensadores, emergida na interioridade do próprio marxismo, que se caracteriza pela negação dessa postura marxiana clássica exatamente por não conceber a centralidade, mas a descentralidade da categoria trabalho em todos os ramos do saber. E nos parece que foi Habermas um dos primeiros a agir, programaticamente, no sentido de descentralizar a categoria trabalho no interior do cognominado marxismo revisado — inaugurado no Ocidente pela Teoria Crítica.[2]
Seguindo sendas abertas pela Teoria Crítica, Habermas dá seguimento à revisão do marxismo embasado numa epistemologia de matriz kantiana, ou seja, numa epistemologia centrada na razão (Vernunft); só que, agora, num novo contexto; de uma razão comunicativa pura, despida de qualquer elementos referentes ao conflito e às distorções à razão instrumental — esfera onde está situada a categoria trabalho (1990b). Nesse sentido, Habermas preliminarmente irá se pôr contra o domínio epistemológico da categoria trabalho persistente nas pesquisas e nas teorizações sociológicas. Oposição essa que toma corpo em uma corrente crítica antiprodutivista, ou seja, anti-categoria trabalho. De acordo com Claus Offe:
a
crítica consequentemente elaborada por Habermas desde há [várias
décadas], contra o domínio epistemológico do trabalho no marxismo,
corresponde a uma ampla corrente 'antiprodutivista' [anti-categoria
trabalho] no bojo da pesquisa e da teoria sociológica inspirada
exatamente em Marx.[3]
E essa corrente compõe-se de grandes nomes influentes no interior do marxismo revisado, como o polonês Adam Schaff; o francês André Gorz; o alemão Claus Offe e outros. Mas, entre esses nomes, o do alemão Jürgen Habemas impõe-se.[4]
É premente, na perspectiva da economia política, a negação de Habermas da centralidade do trabalho em seu ensaio de 1968, Técnica e ciência enquanto ideologia. No entanto, é na perspectiva filosófica que Habermas irá realizar a mais séria tentativa de substituir de vez o trabalho pela linguagem, em usa obra Teoria do agir comunicativo, de 1981. Entretanto, em sua obra de 1977, Para a reconstrução do materialismo histórico, é que contemplamos a descentralidade do trabalho numa perspectiva antropológica: obra essa que tem por objetivo reconstruir, em nova moldura, a Teoria da História de Marx, pois, segundo Habermas: vê-se nessa versão a tentativa de descentralizar a categoria trabalho pela centralidade da categoria linguagem, no que se refere à caracterização antropológica da forma de vida especificamente humana em relação à forma de vida especificamente da espécie pré-humana, típicas do grupo Hominídae-australopitecíneo.
Mas, antes de apresentarmos essa versão de Habermas, faz-se necessário esclarecermos os conceitos básicos que lhe dão corpo, que são quatro, quais sejam: linguagem, tipologia geral da racionalidade, estrutura do sistema social e trabalho. Esses quatro conceitos vão formar o modelo apriorístico, ou seja, um modelo de caráter ideal. Entretanto, é digno de menção que essa versão não se calca num estudo (logos) do ser (onto), mas, sobretudo, calca-se num estudo (logos) com base na teoria do conhecimento (episteme). Este estudo é que vai embasar, in limine, sua antropologia — chamada por Mészáros de apriorística antropologia de gabinete[5].
Os conceitos que fundamentam a antropologia habermasiana
Primeiramente, Habermas irá se embasar na filosofia linguística analítica[6] de Frege, Russell, Moore, Wittgenstein e Rorty e irá concluir que a linguagem é intrinsecamente racional.[7] Portanto, atribuirá o primatus, a predominância da linguagem sobre o trabalho na definição da humanidade e de sua teoria da evolução-social, nos termos de três pressupostos:
1) o que nos destaca da natureza é a única coisa cuja natureza podemos de fato conhecer: a linguagem;[8]
2) a única categoria cuja natureza permite substituir, na contextura de um novo paradigma, a velha relação objetivista de sujeito-objeto por uma nova relação iminentemente comunicativa de sujeito-sujeito não é outra senão a linguagem;[9]
3) o paradigma da comunicação, em substituição ao da produção, caracteriza um desdobramento da intuição segundo a qual o telos — o fim último — do entendimento habita na linguagem.[10]
2) a única categoria cuja natureza permite substituir, na contextura de um novo paradigma, a velha relação objetivista de sujeito-objeto por uma nova relação iminentemente comunicativa de sujeito-sujeito não é outra senão a linguagem;[9]
3) o paradigma da comunicação, em substituição ao da produção, caracteriza um desdobramento da intuição segundo a qual o telos — o fim último — do entendimento habita na linguagem.[10]
Em segundo lugar, Habermas irá se embasar na tipologia geral da racionalidade social de Max Weber, delineada, por este, na sua obra A ética protestante e o espírito do capitalismo, de 1904. Nessa obra, Weber distingue quatro categorias ideais de racionalidade, utilizadas por ele como parte do corpo formal metodológico de investigação dos fatos sociais, que são: 1) a ação racional com relação a fins; 2) a ação racional com relação a valores; 3) a ação afetiva e 4) a ação tradicional.[11]
Habermas, a seu modo, dará uma nova formulação a esse quadro formal de racionalidade social weberiano, quando, com base nele, vai elaborar dois distintos tipo de ação racional: a ação racional-com-relação-a-fins e ação comunicativa. Examinemos, sumariamente, como Habermas conceitua esses dois tipos de ação ou de razão.[12]
A ação racional-com-relação-a-fins configura-se pela combinação de agir instrumental e de agir estratégico. O agir instrumental caracteriza-se pela relação sujeito-objeto enquanto manipulação, domínio e controle eficaz da realidade ou do mundo objetivo; rege-se tão só por regras técnicas baseadas no saber empírico.[13] O agir estratégico caracteriza-se pela avaliação correta das alterantivas e das escolhas dos meios de manipulação, domínio e controle organizados pelo agir instrumental[14]; ou ainda, por influir os atores sociais uns sobre os outros conforme fins de domínio[15]. Habermas relaciona a ação racional-com-relação-a-fins à categoria trabalho[16]: ou seja, concebe trabalho enquanto ação ou razão instrumental.
A razão comunicativa, por outro lado, configura-se por um quadrante caracterizado pela relação intersubjetiva — sujeito-sujeito — mediatizada linguisticamente. Ela rege-se por normas[17], ou seja, por maneiras coletivas de agir, pensar e sentir, de acordo com um variado tipo de regras sociais, a saber; imperativos morais, leis, regulamentos, costumes culturais, etiquetas afins e tantas outras. Ora, toda norma é uma regra geral de ação obrigatoriamente válida, compreendida e reconhecida assim pelas subjetividades em comunicação.[18]. As normas se efetivam na comunicação mediatizadas pela linguagem. E nesta, é onde habita o telos do entendimento[19]: ou seja, na égide da linguagem é que se dá o processo de obtenção do entendimento, do consenso entre as subjetividades linguística e interativamente competentes.[20] Portanto, para Habermas, a razão comunicativa é a categoria que estrutura o sistema social humano, possibilitando, de um lado, a integração social e, de outro lado, a implementação do trabalho social ou das forças produtivas.[21]
É digno de menção o fato de que, para Habermas, não há uma relação dialética entre esses dois tipos de ação racional. A ação racional com relação-a-fins e ação racional racional comunicativa, possuem per se uma história interna própria[22], trilhada autonomamente por meio de um desenvolvimento diferenciado. Essa separação entre esses dois tipos de ação racional, feita por Habermas, nos parece estar bem próxima do divórcio kantiano entre razão pura e razão prática.[23]
Em terceiro lugar, Habermas se embasará no modelo estrutural-funcionalista de explicação da sociedade, de Talcott Parsons, sociólogo que representa uma ponte entre Max Weber e Émile Durkheim[24]. Parsons irá afirmar que a estrutura do sistema social é composta por quatro elementos básicos, a saber: 1) os papéis; 2) as coletividades; 3) as normas; e 4) os valores. Esses são os elementos que solidificam a forma de vida social especificamente humana. Mas há uma hierarquização entre eles: a família e os papéis são tidos como os básicos, pois deles é que, numa primeira instância, erguem-se as normas e os valores.[25]
Por último e em quarto lugar, Habermas se embasará em uma hermenêutica (interpretação) da categoria trabalho em Marx.
Ora, Marx pressupõe o trabalho numa forma que pertence exclusivamente ao homem, ou seja, em forma de práxis humana: atividade-criadora-do-novo. Em última análise, pressupõe o trabalho (práxis) enquanto síntese entre teleologia e causalidade ou, ainda, enquanto processo de trabalho: processo este composto por trabalho, matéria-prima e meios de trabalho.[26] Com esse preciso sentido é que o trabalho (práxis), em Marx, repousa ontologicamente como unidade que dá condição metabólica ao processo interativo entre homem (sociedade) e natureza — na forma de práxis produtiva — e dá possibilidade concreta, enquanto pressuposto social, do processo interativo entre homem e homem — na forma de práxis social: com esse sentido é que Lukács diz que, em Marx, o trabalho é a categoria central, na qual todas as outras determinações já se apresentam in nuce — em germe.[27]
Mas Habermas não vê por esse viés ontológico essa concepção do trabalho em Marx[28]. Habermas vê essa concepção por um viés epistemológico, ou seja, vê o trabalho de acordo com a tipologia weberiana da ação racional-com-relação-a-fins. Desse modo, Habermas opera uma redução da categoria trabalho a uma concepção meramente tecnicista.[29] E por intermédio dessa ótica tecnicista do trabalho, Habermas deduz que Marx concebe o trabalho não só como razão instrumental ou tecnicista de um indivíduo singular, mas como cooperação social dos indivíduos, ou seja, trabalho social, e reduzindo aí, os critérios do agir comunicativo aos critérios do agir-racional-com-relação-a-fins.[30] Com base nessa interpretação, Habermas assevera que Marx, nesse proceder, generalizou o que é coordenado de conformidade com a razão instrumental para o que é coordenado de conformidade com a razão comunicativa, como se esta estivesse orientada também para a finalidade exclusiva da produção ou das forças produtivas.[31]
Com base nessa interpretação do trabalho em Marx, conforme uma ótica meramente tecnicista, Habermas postula que Marx reduz a racionalidade complexa da estrutura social à lógica da razão instrumental: ou seja, a lógica do trabalho social. Partindo exatamente dessa hermenêutica[32] é que ele assim vai dizer:
O que interessa, em nosso contexto, porém, é a questão de saber se o conceito do trabalho social é suficientemente caracterizado no que se refere à forma de reprodução da vida humana. Por isso, devemos definir com maior precisão o que entendemos por forma de vida humana.[33]
Habermas se convenceu de que por meio da categoria trabalho social — categoria criada por ele — não é possível se especificar a forma de vida humana. Diante disso, se propôs a formular uma versão apriorístico-antropológica para, de fato, contemplar, segundo ele, a forma de vida especificamente humana — essa versão está intimamente imbricada com aqueles conceitos delineados anteriormente por nós: linguagem, tipologia geral da racionalidade social, estrutura do sistema social e trabalho social. Passemos, então, a apresentar essa versão habermasiana da autoformação da espécie humana.
A descentralidade da categoria trabalho na autoformação do homem
Para Habermas, o processo evolutivo que levou o desenvolvimento do macaco antropóide ao homem “se deu a partir de um suposto antepassado comum ao chimpanzé e ao homem, através do homo erectus até o homo sapiens”.[34] Os antepassados comuns ao chimpanzé e ao homem são denominados por ele pelo nome de Homínidas. Estes, em síntese, são supostos seres pré-humanos cuja evolução de sua espécie é determinada por meio de uma articulação de “mecanismos de desenvolvimento orgânico” — a exemplo do desenvolvimento de partes funcionais do corpo, especialmente do cérebro — e por meio de “mecanismos de desenvolvimento cultural” — a exemplo da confecção de instrumentos num contexto de vida calcada na caça.
Por
um lado, nesse longo período da antropogênese, alteram-se — com base
numa longa série de mutações — o tamanho do cérebro e importantes
características morfológicas; por outro lado, os ambientes de onde parte
o impulso seletivo trazem a marca não mais apenas da ecologia natural,
mas já de adaptação das hordas de homínidas dedicadas à caça.[35]
Assim, conforme a antropologia habermasiana, o gênero humano surge com o Homo sapiens e não com o primitivo Homo habilis[36], porque com o Homo sapiens é que ele de fato cessa aquela evolução típica da espécie pré-humana, os homínidas, cuja evolução era determinada por articulações de mecanismos de desenvolvimento orgânico com mecanismos de desenvolvimento cultural. Com a introdução do Homo sapiens a evolução deixa de ser determinada orgânico-culturalmente, passando a ser determinada tão-somente por mecanismos estritamente sociais.
Tão-somente no limiar que introduz ao homo sapiens
é que essa forma mista orgânico-cultural da evolução cede lugar a uma
evolução exclusivamente social. Cessa o mecanismo natural de evolução.
Não nascem mais novas espécies.[37]
Percebemos, desse modo, dois tipos distintos de evolução preconizada pela antropologia habermasiana: uma evolução natural — específica ao mundo dos macacos antropóides e ao mundo dos homínidas — e uma evolução social — iniciada com o surgimento do Homo sapiens. Esta última caracteriza-se por uma evolução fixista, ou seja, por uma imutabilidade da espécie humana. Numa palavra: para Habermas, o Homo sapiens, em relação à evolução natural não vai mais para lugar algum — é uma espécie acabada, em definitivo — ideia inconcebível para a paleoantropologia contemporânea.
Bom, a novidade que marca a evolução social humana não é o trabalho enquanto práxis humana, mas sim a linguagem em sua constituição integral, isto é, em sua forma pertencente exclusivamente ao Homo sapiens, já que por meio da linguagem humana é que se efetivou uma forma de ação racional anteriormente inexistente: a ação racional comunicativa. Exatamente na contextura dessa nova ação é que se deu a real possibilidade de uma interação não mais instrumental, mas intersubjetiva — mediatizada linguisticamente — daí dando condições para a constituição da estrutura familiar, dos papéis e das normas sociais.
Nesse sentido, para Habermas, a teoria da história de Marx não serve para delimitar ou captar de fato a forma de vida humana. Porque ela está fundada na ação racional-com-relação-a-fins, isto é, está fundada sobre o trabalho social. E o trabalho social não caracteriza a forma de vida humana, porque já estava presente na espécie dos homínidas, na espécie pré-humana. Sendo assim, essa categoria presta-se tão-só pra distinguir os homínidas dos macacos antropóides, mas não dos homens:
não
só os homens, mas já os homínidas se distinguem dos macacos antropóides
pelo fato de se orientarem para a reprodução através do trabalho social
e de construírem uma economia. /.../ A fabricação de meios de produção e
a organização social — tanto do trabalho quanto da distribuição dos
produtos do trabalho — satisfazem as condições de uma forma econômica de
reprodução da vida [mas só que não caracterizada como vida humana].[38]
Portanto, nessa perspectiva antropológica habermasiana, o trabalho enquanto práxis humana, no seu sentido teleológico mediante o momento de síntese entre teleologia e causalidade que forma um complexo processo de trabalho, tal como concebido por Marx, Engels e Lukács, não serve para especificar a reprodução especificamente humana: ela é anterior ao homem.
O
conceito marxiano de trabalho social, portanto, é adequado à tarefa de
delimitar a forma de vida dos homínidas com relação à dos macacos, mas
não capta a reprodução especificamente humana da vida.[39]
E a linguagem? Para Habermas, havia uma linguagem tipicamente homínida, em forma de uma protolinguagem. Mas, no que diz respeito à sociabilidade homínida, diz Habermas, não é claro qual tenha sido o progresso dessa protolinguagem:
em
relação às interações mediatizadas de modo gestual, já difundidas entre
os primatas, dos sistema de comunicação: pode-se conjecturar sobre a
existência de uma linguagem gestual e de um sistema de sinais de
advertência.[40]
Sendo assim, trabalho e linguagem são anteriores ao homem e à sociedade[41] — ou seja, ontologicamente são anteriores ao ser social. Ora, à luz da ontologia luckácsiana, aqui reside uma antinomia insolúvel. Justamente porque são trabalho e linguagem que, no plano ontológico, caracterizam e diferenciam o ser social do ser natural. Trabalho e linguagem não podem anteceder o ser social, pois, qualquer manifestação destas duas categorias, ainda que numa forma muito primitiva, pressupõe já um ser social constituído, já pressupõe uma ideia de ruptura, de um salto ontológico, do ser social em relação ao ser natural.[42] Exatamente trabalho e linguagem assinalam a passagem do ser meramente biológico ao ser social: por conseguinte, são critérios que assinalam o ato-momento de ruptura entre espécie humana e espécie pré-humana.
Mas a versão habermasiana da autoformação da espécie humana não é ontológica, que fique bem claro isso, mas uma versão aprioristicamente antropológica[43], ou seja, formulada não de conformidade com as determinações do ser assim-precisamente existente, mas de conformidade com um modelo formal determinado pelo pensamento, independente de tal modelo corresponder ou não corresponder à estrutura imanente da realidade tal qual ela é no seu ser-em-si; já que o modelo é que determina a forma de como a realidade deve se configurar.[44] E o modelo apriorístico antropológico, de Habermas, vai determinar que o critério que assinala a passagem da forma de vida natural para a social é constituído por quatro elementos: 1) a linguagem integralmente constituída; 2) a existência de uma estrutura familiar; 3) os papéis sociais; e 4) as normas sociais.
De acordo com Habermas, a sociedade dos homínidas, apesar de estar agrupada socialmente por um trabalho social na contextura de um primeiro modo de produção definido pela caça feita em cooperação[45], e de se comunicar mediante uma protolinguagem, mesmo assim tal sociedade ainda não representava, em sentido parsoniano, uma estrutura de sistema social. A sociabilidade homínida baseava-se em relação de status, ou seja, em relações com base na pose do poder enquanto característica da coesão grupal.[46] Nesse sentido, estavam regidos sob a égide do agir estratégico no crivo de uma razão instrumental ausente de uma contextura configurada intersubjetivamente pela ação ação comunicativa — linguisticamente mediatizada.
A vida social propriamente humana surge, sempre segundo Habermas, quando o sistema social de status — que caracterizava a economia de caça homínida — é substituído por um sistema social novo, baseado agora em normas sociais cujos pressupostos estão enraizados, de um lado, numa estrutura familiar e, de outro lado, numa linguagem integralmente constituída.
Podemos falar de reprodução da vida humana, a que se chegou o homo sapiens,
somente quando a economia de caça é completada por uma estrutura social
familiar. Esse processo durou muitos milhões de anos; ele equivale a
uma substituição, de nenhum modo insignificante, do sistema animal de
status por um sistema de normas sociais que pressupõe a linguagem
[integralmente constituída].[47]
A estrutura familiar, rege-se, stricto sensu, de acordo com Parsons, por papéis sociais conforme normas. E Habermas segue esse princípio parsoniano quando diz que “os papéis fundam-se sobre o reconhecimento intersubjetivo de expectativas de comportamento sujeito à estruturação em normas”.[48] Já as normas, por seu lado, são convenções criadas e veiculadas tão-só por meio de um mundo simbólico, linguístico, de interação; ou seja, por intermédio de uma interação social baseada na razão comunicativa, cujo telos (fim) resume-se no estabelecimento de um consenso universal entre as subjetividades linguística e interativamente competentes.
A forma de reprodução de vida especificamente humana, portanto, não se representa pela ingerência do trabalho social, ou de uma razão instrumental, mas precisamente pela ingerência primordial da constituição integral da linguagem, ou da razão comunicativa. Assevera Habermas que só diante da constituição integral da linguagem, ocorrida no limiar da introdução do homo sapiens, é que se pode concluir que:
somente
nas estruturas de trabalho e linguagem completaram-se os
desenvolvimentos que levaram à forma de reprodução da vida
especificamente humana e, com isso, à condição que serve como ponto de
partida da evolução social.[49]
Ou seja, o processo de autoformação da espécie humana dá-se no horizonte de uma vida humana que produz e se reproduz no duplo contexto da razão instrumental e da razão comunicativa, a partir do momento em que há a constituição integral da linguagem numa forma em que pertence exclusivamente ao Homo sapiens — ao homem propriamente dito.
Essa, portanto, é a versão apriorístico-antropológica da autoformação da espécie humana em Habermas. Versão que substitui pela categoria linguagem a centralidade do trabalho típica da tradição marxista, engelsiana e luckácsiana. É com base nela que Habermas fundamenta todo seu pensamento filosófico desde os meados dos anos 70 até hoje.
= = =
Notas:
[1] Esta postura marxiana clássica apoia-se em três pressupostos: 1) o trabalho é uma eterna necessidade natural da vida social humana; 2) o trabalho é a categoria central, na qual todas as outras determinações que compõem a estrutura necessária da realidade social humana já se apresentam in nuance (em germe); 3) mediante o trabalho, tem lugar uma dupla transformação: ao passo que por meio dele o homem transforma a natureza, ao mesmo tempo transforma a própria natureza. O trabalho, portanto, é o sustentáculo da vida social especificamente humana (Cf. Karl Marx, Manuscritos econômicos-filosóficos, tradução: Artur Morão, Lisboa: Edições 70, LDA, 1975).
[2] A Teoria Crítica, mormente a de Horkheimer, Adorno e Marcuse, abandona os princípios fundamentais da teoria marxiana como: a categoria da exploração do trabalho, a teoria do proletariado, as categorias forças e relações de produção e a luta de classes — e outras. Aquela crítica negativa (denunciatória) inaugurada por Marx, centrada na dimensão da base material da sociedade, é deslocada pelos frankfurtianos — ou pelos teóricos críticos — para a esfera da Bildung (formação cultural). O teor dessa crítica orienta-se por uma postura neorracionalista de caráter a-histórico, na qual o objetivo da crítica é uma categoria abstrato-formal cognominada de “razão instrumental”. Numa palavra: a crítica dirige-se para a categoria formal “razão instrumental”; razão constituída per se para a manipulação, o controle e o domínio da natureza e do homem. Seguindo os passos dessa crítica, Habermas irá associar o paradigma marxiano da produção em termos de trabalho enquanto “razão instrumental”. Diante disso, Habermas lança-se numa empreitada revisionista do marxismo para reabilitá-lo no sentido de uma nova razão não mais instrumental, mas no sentido de uma “razão comunicativa”.
[3] Cf. Claus Offe, Trabalho e sociedade: problemas estruturais e perspectivas para o futuro da 'sociedade do trabalho', tradução: Gustavo Bayer, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 34.
[4] Habermas se impõe porque ele é, em primeiro lugar, bastante produtivo; e seguindo, porque há várias décadas vem desenvolvendo a construção de um sistema filosófico — de caráter enciclopedista — ou de um novo paradigma da comunicação. A consequência disso é que Habermas, para se impor, entendeu que teria que destruir em todos os seus fundamentos aquela filosofia pós-hegeliana que teve e tem a maior influência histórica no século XX: a filosofia marxiana. Por conta disso, desde os anos 60 do século XX, Habermas vem batendo forte na filosofia marxiana. E nos parece que seu grande sucesso, mormente entre o público simpatizante das ideias liberais, decorre do fato de ter ele feito uma redução tecnicista da teoria de Marx enquanto “razão instrumental”. Por conta disso, o público da intelectualidade liberal já fala em um “pós-marxismo”. Bronner diz, em tom irônico, que por justificar “as ideias liberais faz de Habermas o pensador de nossa era”.(Cf. Da teoria crítica e seus teóricos, tradução: Tomás P. Bueno e Cristina Meneguelo, Campinas: Papirus, 1997, p. 376)
[5] Cf. István Mészáros, O poder da ideologia, tradução: Magda Lopes, São Paulo: Ensaio, 1996, p. 176. Apriorística antropologia de gabinete porque Habermas não se fundamenta numa empiria paleoantropológica, mas tão somente num modelo formal a priori.
[6] Idem, ibidem, p. 176.
[7] Cf. Stephen Eric Bronner, Da teoria crítica e seus teóricos, op. cit., p. 335.[8] Cf. Jürgen Habermas, “Conhecimento e interesse”, in: Benjamin, Horkheimer, Adorno, Habermas (textos escolhidos), tradução: José Lino Grünnewald [et. al.], 2ª edição, São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 310.
[9] Cf. Jürgen Habermas, Pensamento pós-metafísico: estudos metafísicos, tradução: Flávio Beno Sjebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990b, p. 15.
[10] Idem, ibidem, p. 77.
[11] Para um estudo de maior compreensão confira Alfredo Guilherme Galliano, Introdução à sociologia, São Paulo: Harper e Row do Brasil, 1996, pp.78-79.
[12] É clássica a formulação de Habermas destes dois tipos de ação racional em seu ensaio de 1968, “Técnica e ciência enquanto ideologia”, in: Benjamin, Horkheimer, Adorno, Habermas (textos escolhidos), tradução: José Lino Grünnewald [et. al.], 2ª edição, São Paulo: Abril Cultural, 1983. Nosso exame está, em especial, referenciado nesse ensaio.
[13] Idem, ibidem, p. 321.
[14] Idem.
[15] Jürgen Habermas, Pensamento pós-metafísico: estudos metafísicos, op. cit., pp.70-76.
[16] Jürgen Habermas, “Técnica e ciência enquanto ideologia”, op. cit., p. 320.
[17] Idem, ibidem, p. 321.
[18] Idem.
[19] Jürgen Habermas, Pensamento pós-metafísico: estudos metafísicos, op. cit., p.77.
[20] Jürgen Habermas, “Discurso filosófico da modernidade”, p. 110. Apud. Marilu Fontourade Medeiro. “Eixos emergentes na proposta habermasiana”, in: Educação e Filosofia, Uberlândia/UFU, vol. 8, n° 15, jan./jun., 1994, pp. 49-65.
[21] Jürgen Habermas, Para a reconstrução do materialismo histórico, tradução: Carlos Nelson Coutinho, 2 ªed., São Paulo, 1990a, p. 35.
[22] Idem, ibidem, p. 128.
[23] Bronner não crê comparação com Kant, ao dizer que Habermas faz essa separação, mas seu problema resume-se tão-só ao fato de “não ter certeza sobre como reuni-las” (op. cit., p. 350).
[24] Cf. Galliano, op. cit., p. 173.
[25] Para um estudo de maior compreensão sobre Parsons, confira Galliano, op. cit., pp. 172-194.
[26] Cf. Karl Marx, O capital, Livro I, Tomo I, tradução: Regis Barbosa e Flávio R. Kothe, São Paulo: Nova Cultural, 1996, cap. V, pp. 297-304.
[27] Cf. György Lukács, Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx, tradução Carlos Nelson Coutinho, São Paulo: Ciências Humanas, 1979b, p. 16.
[28] Habermas condena toda e qualquer forma de expressão ontológica, por entender negativamente que a ontologia está recheada de um objetivismo autocompreensivo próprio do paradigma do ser relegado a uma primeira etapa da filosofia (etapa piagetiana das operações concretas) em sua evolução histórica. Ainda, a ontologia oblitera a intuição epistemológica fundamental de Kant, “a de que a objetividade do conhecimento é constituída e condicionada por princípios e categorias a priori” (Freitag, “Introdução a Habermas”, p. 14, in: Jürgen Habermas, Sociologia, tradução e organização: Freitag e Rauanet, São Paulo, Ática, 1993).
[29] Cf. György Markus apud C. E. Jordão Machado, “O conceito de racionalidade em Habermas: a guinada linguística da teoria crítica”, p. 39, in: Trans/Form/Ação, São Paulo: Unesp, n. 11, pp. 31-44, 1988. Cf. também Leandro Konder, O futuro da filosofia da praxis: o pensamento de Marx no século XXI, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 125.
[30] Jürgen Habermas, Para a reconstrução do materialismo histórico, op. cit., pp. 112-115.
[31] Confira a Introdução de Habermas à obra acima citada, pp. 11-43.
[32] Parece-nos que essa hermenêutica habermasiana configura-se como sendo um ignoratio elenchi, ou seja: designa um sofisma que ignorando intencionalmente o que deve ser interpretado em seu sentido originário, tenta dizer outra coisa totalmente oposta.
[33] Idem, ibidem, p. 114 (grifos nossos).[34] Idem.
[35] Idem.
[36] Para a paleoantropologia contemporânea, o Homo habilis é a espécie que define a ruptura evolutiva entre gênero humano e gênero pré-humano.
[37] Idem.
[38] Idem, ibidem, p. 115.
[39] Idem.
[40] Idem.
[41] Idem, ibidem, p. 118.
[42] Cf. György Lukács, “Il lavoro como posizione teleológica”, in: Per una ontologia dell'essere sociale, V. II, traduzione di Alberto Scarponi, Roma: Editori Riuniti, 1976-81, p. 2.
[43] Sobre essa questão da diferença entre ontologia e antropologia queira ver Karel Kosik, Dialética do concreto, tradução: Célia Neve e Alderico Toríbio, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 198; pp. 217-248.
[44]Cf. Cf. György Lukács, Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx, op. cit., p. 27. Cf. Karel Kosik, Dialética do concreto, op. cit., p. 47.
[45] Jürgen Habermas, Para a reconstrução do materialismo histórico, op. cit., p. 115.
[46] Idem, ibidem, p. 116.
[47] Idem (grifos nossos).
[48] Idem, ibidem, p. 117. [49]
[49] Idem, ibidem, p. 118.
= = =
Resumo: Este artigo objetiva mostrar a descentralidade do trabalho em Habermas, mormente em sua versão antropológica da autoformação do Homem. Habermas, nessa sua versão, vai defender a linguagem, enquanto “razão comunicativa”, é que especifica a forma de vida humana, e não o trabalho, “razão instrumental”, como defende, diz ele, o materialismo de Marx.
Palavras-chave: trabalho, linguagem, vida humana.
Abstract: This article to show the descentralization that pervades Habermas' theory, mainly in relation to his anthropologic version of man's self-formation. In his version, Habermas states that language, while "communicative reason", is what specifies the human way of life, rather than work, the "instrumental reason", as is supported by Marx's materialism.
Keywords: work, language, human life.
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BONFIM, A. C. F. “A descentralidade do trabalho na versão antropológica habermasiana de autoformação do homem”. In: Trabalho & Educação, Belo Horizonte, n.7. jul/dez, 2000, p. 63-75.
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