por Domenico Losurdo
Enquanto, no plano político, o anti-humanismo compromete a compreensão das grandes lutas político-sociais da história contemporânea, no plano teórico ele provoca duas consequências muito relevantes e igualmente negativas. Marx insistiu várias vezes no fato de que sua teoria é a expressão teórica de processos e movimentos reais, de uma real luta de classes. Com Althusser, ao contrário, o materialismo histórico e o movimento real que este ajuda a promover são o resultado de uma “ruptura epistemológica” (assim como para Della Volpe são o resultado de um método científico que lança mão da lição de Galileu e, antes ainda, do Aristóteles crítico de Platão). Assistimos assim a uma deformação idealista do materialismo histórico, à qual se chega graças à genialidade de um único indivíduo, que aporta num novo continente: na esteira da descoberta do “continente matemático por obra dos gregos” e do “continente físico por obra de Galileu e de seus sucessores”, Marx se lança à descoberta do “continente História”[1]. Tendo repetidas vezes criticado o humanismo por ocultar a luta de classes, agora é justamente Althusser (junto com Della Volpe) quem deixa a luta de classes se dissipar por trás da elaboração do materialismo histórico.
A regressão idealista é ao mesmo tempo uma regressão eurocêntrica. Em Marx e Engels, o surgimento do materialismo histórico pressupõe, de um lado, a Revolução Industrial, e de outro, a revolução política, a começar pela Revolução Francesa. As duas revoluções não têm uma dimensão exclusivamente europeia. A primeira remete ao processo de formação do mercado mundial, ao expansionismo colonial, à acumulação capitalista originária; a segunda tem um de seus momentos mais altos na rebelião dos escravos negros de São Domingos e na abolição da escravidão colonial decretada em Paris pela Convenção Jacobina. Com Althusser (assim como com Della Volpe), ao contrário, a elaboração do materialismo histórico apresenta-se como o capítulo de uma história intelectual que se desenrola exclusivamente na Europa.
Não é difícil compreender as razões da atitude do filósofo francês: aqueles são os anos em que se agita a bandeira do “humanismo” para atenuar a luta contra o imperialismo; iniciou-se o processo que mais tarde levará à capitulação de Gorbatchov. Em última análise, a crítica filosófica do “humanismo”, considerado propenso a ocultar o conflito social, é ao mesmo tempo o distanciamento das “concepções tingidas de reformismo e de oportunismo ou, mais simplesmente, revisionistas”, que se difundem naqueles anos[2].
Infelizmente, tal polêmica é conduzida com base em posições equivocadas. Em primeiro lugar, deve-se ter presente que não apenas o apelo à humanidade (e à moral) comum, mas também o apelo à ciência podem levar a esquecer a luta de classes. E, no entanto, o filósofo francês posiciona-se justamente contra a frase que, condenando a visão interclassista da ciência, contrapunha a “ciência proletária” à “ciência burguesa”; ele reconhece a Stálin o mérito de ter contraposto à “loucura” que pretendia “a todo custo fazer da língua uma superestrutura” ideológica. Graças a essas “simples paginazinhas” — conclui Althusser —, “percebemos que o uso do critério de classe não era irrestrito e que nos levavam a tratar como uma ideologia qualquer a ciência, cujo título incluía as próprias obras de Marx”[3]. E no que diz respeito à moral? Colocar no mesmo plano posições que reivindicam a unidade do gênero humano e posições que a negam e a depreciam, argumentar dessa forma em nome de uma pretensa luta de classes puramente proletária, significa perder de vista a real luta de classes como fundamento da desumanização de grandes massas de seres humanos, degradados a under men, ou ainda Untermenschen, e destinados apenas a ser oprimidos, escravizados ou aniquilados.
Polemizando com a leitura do marxismo em perspectiva humanista, Althusser não se cansa de repetir que Marx não parte do “homem” ou do “indivíduo”, mas da estrutura histórica das relações sociais. Entretanto, é curioso que o conceito de “homem” ou de “indivíduo” seja dado como óbvio. Na realidade, o conceito de indivíduo e de homem enquanto tal, independente do sexo, do patrimônio ou da cor da pele, é o resultado de multisseculares lutas pelo reconhecimento, conduzidas agitando exatamente a bandeira do humanismo tão desprezado por Althusser. Isso vale para mulheres (consideradas por natureza incapazes de entender e de querer no plano político e de desenvolver trabalhos intelectualmente qualificados), para os trabalhadores assalariados da metrópole (equiparados a instrumentos de trabalho, a máquinas bípedes, a animais de carga) e, de maneira especial, para os povos coloniais (desumanizados em todos os níveis). De fato, o filósofo francês reconhece que também pode existir um “humanismo revolucionário” que surge com a Revolução de Outubro[4], mas é muito hesitante em relação a esse ponto; e assim impossibilita a si mesmo a compreensão das gigantescas lutas conduzidas pelos “escravos das colônias” (para usar a linguagem cara a Lênin) e dispostas a arrancar o reconhecimento da sua dignidade humana.
Althusser afirma que o interclassismo compromete a categoria de homem, considerada por si só incapaz de chamar a atenção para a realidade da exploração e da opressão. Contudo, aqui intervém um segundo erro teórico. Não existem termos que por si sós sejam capazes de exprimir o antagonismo político e social em estado puro, não existem termos ideológica e politicamente “puros” que tenham sido sempre, e apenas, utilizados por revolucionários e em perspectiva revolucionária. Nos Estados Unidos do século XIX, definia-se como “democrático” o partido empenhado em defender, em primeiro lugar, a escravidão negra e depois o regime de white supremacy. É uma consideração que vale também para as categorias que pareceriam indissoluvelmente ligadas à história do movimento operário. Na França, após as revoluções de 1848, a bandeira do “trabalho” e do respeito pela “dignidade do trabalho” começa a ser empunhada também pelos conservadores ocupados em denunciar como “ociosos” e vagabundos os agitadores revolucionários ou os operários em greve por melhores condições de vida e de trabalho. Mais à frente de todos nesse quadro apresenta-se Hitler, que, já no nome do partido por ele fundado e dirigido, se levanta como defensor do “socialismo” e dos “operários alemães”.
Em suma, apesar do ponto de partida distinto, Althusser chega às mesmas conclusões que Tronti. O autor italiano não se cansa de argumentar que “o universalismo é a visão burguesa clássica do mundo e do homem”. Felizmente existem os operários: “com eles, apenas com eles, podemos finalmente deixar de ostentar valores universais, porque, do ponto de vista deles, tais valores são sempre ideologicamente burgueses”[5]. Mais do que o universalismo, o alvo de Althusser é o humanismo. Mas estamos sempre na presença do mesmo comportamento: sem se aperceber, ele acaba por embelezar o alvo de uma crítica que também pretende ser intransigente e avessa a qualquer tipo de compromisso.
Na realidade, qualificar o universalismo ou o humanismo por si sós como “burgueses” ou propensos ao compromisso com a burguesia significa deixar pela metade a crítica da sociedade capitalista: a ela se reprova o caráter meramente formal dos direitos civis e políticos, cujo titular deveria ser o homem enquanto tal e na sua universalidade, mas não se mencionam as terríveis cláusulas de exclusão que privam os povos coloniais ou de origem colonial também dos direitos civis e políticos (além daqueles econômicos e sociais). Ou seja, escamoteia-se a condição colonial, que, também aos olhos de Marx, é aquela que por excelência revela a barbárie da sociedade capitalista. Nesse caso, a carga de desumanização da ordem existente se revela em toda a sua brutalidade e acaba por se explicitar, como é confirmado de modo particularmente ostensivo pela teorização do under man, que, nos Estados Unidos, precede a teorização do Untermensch. Em outras palavras, era muito mais consequente e radical Togliatti, que, antes ainda da negação dos direitos econômicos e sociais, denunciava a “bárbara discriminação entre as criaturas humanas” em que se fundamenta a sociedade capitalista.
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Notas:
Notas:
[1] Louis Althusser, Lénine et la philosophie (Paris, Maspero, 1969), p. 24-5.= = =
[2] Louis Althusser e Étienne Balibar, Leggere “Il capitale” (trad. Raffaele Rinaldi e Vanghelis Oskian, Milão, Feltrinelli, 1965), p. 149.
[3] Louis Althusser, Per Marx (trad. F. Madonia, Roma, Editori Riuniti, 1967 [1965]), p. 6.
[4] Louis Althusser e Étienne Balibar, Leggere “Il capitale”, cit. p. 150.
[5] Mario Tronti, Noi operaisti (Roma, DeriveApprodi, 2009), p. 62 e 17.
LOSURDO, D. O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer. Tradução de Ana Maria Chiarini e Diego Silveira Coelho Ferreira. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 82-5.
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