por Gabriel Lazzari e Jones Manoel
Blog da Boitempo
A
situação mundial na última década foi marcada pela crise global do
capitalismo que se iniciou nos EUA com a explosão da bolha imobiliária
financeirizada. Desde então, abriram-se diversas perguntas e respostas
dentro do movimento operário em geral, da esquerda em particular e, mais
particularmente ainda, da esquerda marxista revolucionária, sobre os
rumos societários e políticos existentes e quais deveríamos seguir a fim
de reorganizar a classe trabalhadora em nível global em luta pelo
socialismo.
O programa e a tática da burguesia, em nível
internacional, eram bastante claros desde o começo da crise. Do ponto de
vista econômico, para recuperar as taxas de lucro, o programa era a
transferência de fundo público direto para o capital privado, em
especial para o setor financeiro; ataque sobre os direitos sociais e
trabalhistas; privatizações massivas etc. Do ponto de vista político, a
tática era de giros para a extrema-direita no âmbito dos partidos e
figuras à frente dos governos capitalistas, tanto centrais (por meio de
eleições e campanhas midiáticas de divisão dos trabalhadores, reforçando
a oposição entre as camadas médias proletárias mais qualificadas e
entre os trabalhadores nacionais e os imigrantes etc.) quanto
periféricos (por meio de eleições, golpes, desestabilizações e invasões
militares, luta “anticorrupção”, aparelhos de hegemonia da sociedade
civil etc.).
Esse programa e essa tática serviram bem ao seu
propósito. No entanto, a instabilidade própria das formas políticas de
extrema-direita começou a colocar em xeque a manutenção do programa
econômico (em especial nos países centrais, mas também nos países
periféricos do capitalismo), tanto por causa da crise, mas
principalmente por conta do aprofundamento da crise pela pandemia global
do coronavírus. É a partir de 2020 que começamos a ver a retomada,
assim, da opção política pela direita neoliberal mais clássica e com
matizes progressistas, capitaneando inclusive movimentos sociais ao se
colocar como oposição à extrema-direita. O caso de Joe Biden, nos EUA, é
emblemático neste sentido: aponta um programa de estímulo econômico
voltado para alguns setores do proletariado nacional e oferece apoio aos
monopólios internacionais para aprofundar a ingerência imperialista
política, diplomática e militar na exploração da periferia do sistema
capitalista.
A classe trabalhadora, por outro lado, com uma
situação amplamente desfavorável e um massacre em andamento, ainda não
tem se unificado sob um programa econômico e uma tática política comuns
para a luta contra ambas facetas do capitalismo: a
extrema-direita, com seu pé fincado na coerção, e a direita clássica,
com seu pé fincado no consenso. É claro que esse programa e essa tática
advém da clareza de uma estratégia política correta, ou seja, da
possibilidade de estabelecer qual é o objetivo de longo prazo para o
movimento dos trabalhadores no rumo de sua emancipação. No início do
século XX, amplas e longas batalhas teóricas marcaram o desenvolvimento e
a diferenciação das principais visões sobre a estratégia política a ser
adotada pelo movimento dos trabalhadores. Assim, ficou famosa a
diferenciação (que levou mais de 20 anos para se concretizar como uma ruptura organizativa)
entre uma ala oportunista e uma ala revolucionária do movimento de
trabalhadores na Europa e nos Estados Unidos, polos irradiadores do
desenvolvimento capitalista global.
Análise marxista e estratégia revolucionária
No
começo do século XX, a situação era bastante diversa da que temos hoje:
mesmo entre as potências em desenvolvimento, como era o caso da Rússia
imperial, havia formações sociais que ainda contavam com resquícios da
transição do feudalismo para o capitalismo – ou seja, países em que a
revolução democrático-burguesa não havia se completado. Além disso,
havia também países em situação colonial ou semicolonial, ligados
umbilicalmente a essas potências colonialistas e imperialistas. Assim,
apesar de, nominalmente, todo o movimento internacional de
trabalhadores, à época agrupado sob a Segunda Internacional, ter como
horizonte o socialismo, havia variações nacionais importantes,
que faziam com que as estratégias de cada realidade nacional em
particular pudessem aparecer de formas distintas.
No entanto, já
naquele momento, com a diferenciação entre as alas oportunista e
revolucionária dentro do movimento de trabalhadores, observavam-se duas
“linhas mestras” de pensamento: uma que pensava mecanicamente a relação
entre a classe dirigente do processo de transformação social,
identificando a revolução burguesa com a direção política da burguesia; e
outra, que pensava dialeticamente essa relação, compreendendo que havia
um processo de transição do poder das classes dominantes advindas do
feudalismo para a classe dominante do capitalismo, a burguesia. O melhor
exemplo histórico era o berço do capitalismo industrial, em que a
solução de conciliação parlamentar-constitucional entre nobreza e
burguesia ascendente, ainda no século XVII, abriu as portas para a
burguesia, ao mesmo tempo em que fechou para as classes dominadas.
Na época atual, que se desenvolve com novas transformações a etapa imperialista
do desenvolvimento capitalista global, temos uma quase totalidade de
países independentes e de formações sociais predominantemente
capitalistas – uma situação bastante diferente daquela do começo do
século XX. Como Marx e Engels colocavam já no Manifesto comunista,
a transformação burguesa da sociedade tende a uma simplificação das
contradições fundamentais entre classes por meio da universalização
(nunca completa) do assalariamento e das relações de produção
capitalistas. Assim, mais de 100 anos depois do início dessa discussão,
podemos afirmar com clareza que a estratégia política para a emancipação
dos trabalhadores (e da humanidade) só pode ser a estratégia socialista
– e as diversas mediações táticas em cada país, necessárias dadas as
particularidades nacionais, não negam o caráter socialista da estratégia
política.
Mas essa, infelizmente, não é a única visão
estratégica predominante no movimento de trabalhadores. Temos, na
verdade, três complexos teóricos que apontam para as soluções dos
problemas da classe trabalhadora: o da estratégia socialista, o da
estratégia reformista e o da estratégia etapista. Podemos fazer essa
divisão, um pouco esquemática, agrupando uma diversidade de teorias,
pensadores e organizações com base nas suas conclusões
teórico-analíticas a partir de um critério: a relação entre a base
material de uma determinada formação social (e, portanto, suas
potencialidade imanentes) e a classe social que pode exercer que tipo de
poder político, isso é, que pode universalizar na forma de um Estado os
seus interesses particulares. Assim, podemos compreender essas relações
da seguinte forma:
1. A estratégia socialista, que compreende
que na maioria dos países há uma predominância das relações de produção
capitalistas, opondo fundamentalmente uma classe burguesa dominante a
uma classe proletária. Nessa visão, a necessária transformação que
permita um desenvolvimento das forças produtivas de modo a garantir os
interesses objetivos da maior parte da população do país é uma revolução
socialista, ou seja, a configuração de um Poder Popular, constituído a
partir da mobilização contínua dos trabalhadores, que ameace e derrube o
atual poder de Estado da burguesia e constitua o embrião da nova
organização, do Estado-Comuna.
2. A estratégia reformista, que
compreende ecleticamente as bases materiais das formações sociais e,
portanto, não opõe fundamentalmente os interesses objetivos de uma
classe burguesa dominante e um proletariado dominado. Como não
compreende essa oposição fundamental, analisa o poder de Estado como
neutro, desprovido de um conteúdo de classe, e concentra suas ações na
conquista de espaços dentro do governo instituído, para conduzir uma
política de conciliação dos interesses e objetivos da sociedade. Essa
estratégia, portanto, mesmo quando pensa o caminho para o socialismo, pensa que ele (ou outra forma qualquer) pode ser atingido por meio das estruturas do Estado capitalista.
3.
A estratégia etapista, que compreende mecanicamente as bases materiais
das formações sociais por uma ótica transposta a partir de tipos
societários ideais, vendo o capitalismo periférico como um capitalismo
incompleto ou ainda “pouco maduro”, tendo como principal entrave para
seu desenvolvimento – ou formação de uma verdadeira nação -, o
imperialismo e as camadas sociais, fracções de classe e classes que são
suas aliadas. Essa estratégia coloca no centro da sua linguagem política
a oposição da Nação versus Imperialismo, e o povo contra as elites
antinacionais. O socialismo figura como objetivo final, assim como o
poder popular, mas no agora, coloca em evidência uma política
policlassista de todos os brasileiros em defesa da nação e soberania
nacional (pensada nos marcos do capitalismo, e não de forma socialista,
como na Revolução Cubana), contra o atraso e pelos direitos e democracia
para o povo. A consequência é uma abstrata e geral revolução nacional –
ou democrática – para em outro momento, colocar o socialismo na ordem
do dia.
Cabe, por fim, compreendermos as bases materiais de
classe dessas diferentes perspectivas. Enquanto a estratégia socialista
coloca-se claramente ao lado da independência política do proletariado,
isso é, compreende a necessidade de o proletariado exercer o poder de
Estado como classe independente, através de seu Estado, de sua ditadura,
as outras duas correspondem à política de outras classes para o proletariado.
Enquanto a estratégia reformista, presa ao fundamento propriamente
burguês da manutenção do Estado, reafirma a república e a democracia
burguesas; a estratégia etapista, consternada pela miséria construída
pelo capitalismo periférico e, ao mesmo tempo, incapaz de compreender o
potencial do proletariado em dirigir a sociedade, encontra bases de
sustentação na pequena-burguesia radical, “a imagem e semelhança” da
qual tenta construir uma forma intermediária de república, uma república
democrático-nacional, democrático-popular… – uma república
pequeno-burguesa!
É certo que, se a formulação reformista
“clássica” (porque converteu-se em teoria oficial da Segunda
Internacional) é amplamente rechaçada pelos setores que se afirmam
“socialistas”, a formulação etapista tem uma história muito mais
tortuosa. Durante a maior parte do século XX, essa estratégia encontrou
respaldo na maior parte das formulações políticas de Partidos Comunistas
na periferia do sistema capitalista-imperialista. Se podemos questionar
legitimamente sua validade na primeira metade do século XX ou nos
processos de luta anticolonial nos continentes africano e asiático, a
sua disseminação encontra na luta contra o nazifascismo na Segunda
Guerra um ponto de viragem. A ameaça da extrema-direita provocou
reformulações que, em certa medida, abriram mão de uma análise
científica dos conflitos de classe e reordenou os blocos fundamentais em
nível global entre “autoritários” ou “ditatoriais” (o Eixo) e
democráticos (os Aliados), alçando a posição estratégica em nível
global, no movimento operário, a necessidade de uma etapa democrática,
antifascista etc. da construção da revolução socialista nos diversos
países, inclusive no centro do capitalismo. A culminância desse processo
foi a corrente conhecida como “eurocomunista” e sua defesa da
“democracia como valor universal” – uma oposição aberta à estratégia da
revolução socialista e à ditadura do proletariado como nortes para o
movimento de trabalhadores em nível global.
Hoje, as
organizações políticas marxistas-leninistas, depois de um longo processo
de reconstrução, já consideram corretamente a necessidade de
estabelecer com clareza a contradição fundamental existente na sociedade
capitalista como sendo entre a classe dominante burguesa (facilitada em
sua unidade internacional, mesmo com divergências, pela hegemonia do
capital financeiro), de um lado, e o proletariado, por outro. Assim,
todo tipo de estratégia reformista e etapista perde base material para
desenvolver suas táticas com sucesso nas diversas conjunturas – ainda
que não perca a sua base material de classe para existir como fenômeno
ideológico e formulação teórica. Mas o ascensão atual da extrema-direita
e a ofensiva burguesa, em determinados casos, provocam, em outros
setores que se reivindicam “socialistas”, confusões de análise e,
consequentemente, confusões políticas. Esse é o caso do companheiro
Plínio de Arruda Sampaio Jr., do PSOL.[1]
A “reversão neocolonial”: mistificação na análise
O
ponto fulcral da análise do companheiro Plínio é a categoria de
“reversão neocolonial” que ele utiliza. Em suas palavras, “[n]a
periferia latino-americana, a crise estrutural do capital manifesta-se
sob a forma de um processo de reversão neocolonial, cuja essência
reside na progressiva incapacidade do Estado de estabelecer limites
mínimos às taras do capital” [B, grifos nossos]. Ele também
caracteriza a “reversão neocolonial” como “o rebaixamento sistemático
das parcas conquistas democráticas e nacionais do povo brasileiro” [B],
identificando particularmente o “padrão de acumulação de uma economia em
reversão neocolonial” como sendo “baseado no rebaixamento sistemático
do nível tradicional de vida dos trabalhadores, na destruição das
políticas públicas e na depredação acelerada do meio ambiente” [L,
grifos nossos]. Ainda, em outro artigo de mais fôlego, afirma que os
“processos de reversão neocolonial […] interrompem o movimento de construção da nação” [G, grifos nossos].
Como
podemos ver por esses trechos, há uma síntese de diversas determinações
do processo que o companheiro Plínio chama de “reversão neocolonial” –
determinações econômicas, políticas e culturais. No entanto, precisamos
nos aprofundar um pouco no que seria essa forma “neocolonial”.
Falar
em forma “neocolonial” certamente não pode se referir à dominação
política total da estrutura institucional brasileira por uma potência
estrangeira, como o colonialismo clássico produziu no continente
africano, para citar um exemplo, em que efetivamente os territórios e a
máquina institucional-administrativa eram parte do Estado da metrópole colonialista. O que conhecemos hoje como Angola era efetivamente
a “Província Ultramarina de Angola”, administrada por Portugal. Esse
não é o caso do nosso país – apesar de toda a ingerência externa,
diferentemente de um caso de intervenção direta, não há indícios de que o controle político-administrativo
do Brasil será feito por outro Estado. Aí vemos, talvez, o fundamento
da primeira mistificação do companheiro Plínio: ele entende que “a
premissa elementar de um Estado nacional [é] sua existência como
entidade dotada de ‘vontade política’ própria” [G].
Ora, que
distância há entre a visão marxista e a visão do companheiro Plínio!
Talvez baseado em uma teoria republicana ou liberal, o companheiro
Plínio tenha se confundido, porque a premissa elementar do Estado
burguês, para os marxistas, é a manutenção da propriedade privada dos
meios de produção. Parece até curioso ele identificar sua “reversão
neocolonial” com o Estado tendo uma “progressiva incapacidade” para
“estabelecer limites” ao capital – talvez teria que chamar os Estados
Unidos de maior colônia do mundo com esse critério, uma vez que lá,
certamente, o Estado estabelece limites bastante frágeis ao capital. Da
mesma forma, a precariedade das condições de vida dos trabalhadores
faria com que, talvez, a Inglaterra do século XIX fosse a maior colônia
do mundo, uma vez que havia jornadas de 12 a 16 horas de trabalho,
estendidas às crianças, inclusive.
O que parece escapar ao
companheiro Plínio é justamente o que ele não diz – ora, que tipo de
Estado seria esse que imporia limites ao capital? Que melhoraria as
condições de vida de trabalhadores e trabalhadoras? Que impulsionaria o
“movimento de construção da nação” (seja lá o que isso quiser dizer)? O
que parece ser o centro da mistificação operada pelo companheiro Plínio é
um tipo ideal de Estado capitalista, derivado de uma análise pouco
profunda da dinâmica do centro do sistema, com amplos direitos
democráticos, com melhorias substanciais para os trabalhadores, com uma
indústria pujante e desenvolvida, com um mercado interno dinâmico e
outras características mais. É verdade, esse tipo ideal é o sonho da
socialdemocracia clássica na periferia do capitalismo: “a erradicação do
apartheid social” e “a desarticulação da dependência econômica e
cultural” [G].
O “nosso processo histórico de formação de um
Estado-nação” [G] do companheiro Plínio é uma mistificação das condições
efetivas do capitalismo ao mesmo tempo desenvolvido e dependente
que temos no Brasil. Podemos verificar, sem dúvida, que no nosso país
predominam largamente as relações de produção capitalistas, bem como o
assalariamento. É desnecessário apontar que não estamos falando aqui,
novamente, de empregos formais, com registro em carteira, direitos
trabalhistas ou coisa do tipo – isso são formas jurídicas que regulam, hoje menos do que há dez anos atrás, a forma econômica
da relação da venda da força de trabalho. Da mesma maneira, tampouco
podemos dizer que predomina alguma forma “semifeudal”, “de servidão” ou
“escravista” de propriedade – ainda que esses termos sejam usados por
uma parte da sociologia liberal ou marxista vulgar, o que temos no
Brasil é o predomínio absoluta da propriedade privada dos meios de
produção, com grandes monopólios da burguesia nacional e grandes
conglomerados internacionais com participação, inclusive, de capital
nacional que se desprendeu da indústria e buscou “voos mais altos” na
Bovespa.
Assim, por pior que seja admitir, o Brasil completou
seu processo de formação como Estado-nação – e é um processo miserável,
porque nossa formação histórica levou às formas do
capitalismo dependente, intrinsecamente desigual, intrinsecamente
subordinado, intrinsecamente antidemocrático, se colocado em relação ao
capitalismo central. Com um predomínio das relações de produção
capitalistas, não é possível pensarmos em um desenvolvimento capitalista alternativo, com projeto de Estado-nação à europeia, que divirja dessa posição subordinada e dependente do Brasil na cadeia do sistema capitalista-imperialista.
Talvez
o companheiro Plínio tenha tentado captar as formas sociais de domínio
colonial e neocolonial que sobrevivem e se reatualizam na dominação
imperialista, contudo, essas formas, como a ideologia colonial do “fardo
civilizatório do homem branco”, hoje se apresentam na forma de
“imperialismo dos direitos humanos” ou “defesa da democracia”,
utilizando de meios ultra tecnológicos para, por exemplo, concretizar
golpes de Estado. Plínio, ao invés de perceber a dialética entre o
“atrasado” e “moderno” no capitalismo a nível global e em cada formação
social em particular, olha o “atraso” e vê como regressão de tipos
ideias, como a nação, ou como uma espécie de capitalismo deformado.
Nesse sentido, qualquer anticolonialismo extraído de suas reflexões, ao
contrário da obra de Frantz Fanon, contribui para confundir, ao invés de
avançar na crítica radical do capitalismo.
A “revolução democrática”: confusão na estratégia
A
mistificação da análise do companheiro Plínio, como não poderia deixar
de ser, leva a uma confusão na estratégia proposta por ele. Assim,
baseando-se mecanicamente na análise clássica da política para os países
coloniais e semicoloniais, conforme pensada pelos marxistas
revolucionários da Internacional Comunista, em oposição à vulgarização
marxista de viés oportunista e chauvinista que vicejou na Segunda
Internacional, o companheiro Plínio defende que “a única alternativa
capaz de deter a barbárie do capital no Brasil” [L, grifos nossos] na
atual fase do movimento dos trabalhadores por sua emancipação seja a “revolução democrática, baseada na autorganização dos trabalhadores, com um horizonte socialista” [L, grifos nossos] ou mesmo uma combinação da “revolução democrática [e da] revolução nacional”
[G, grifos do autor]. Ora, a compreensão da necessidade de uma etapa
democrática do processo de construção socialista que não seja ainda a
organização do Poder Popular e a construção do Estado Operário – a
Ditadura do Proletariado – é exatamente a concepção etapista da qual os marxistas-leninistas buscaram se afastar em seus processos de autocrítica estratégica.
Mas
o companheiro Plínio não tem uma visão vaga, abstrata, das táticas e do
programa dessa revolução democrática; tem uma visão concreta.
O primeiro desafio para deter a tragédia brasileira é romper a blindagem mental que naturaliza o capitalismo. [B, grifos nossos]
O primeiro passo para uma política preocupada com a geração de emprego e a melhoria do bem estar da população é romper o bloqueio mental que naturaliza o neoliberalismo. O segundo, é quebrar a teia institucional que sustenta o Plano Real [E, grifos nossos]
Uma estratégia alternativa para enfrentar a crise econômica deve organizar um ambicioso programa emergencial de geração de emprego, combate à pobreza e erradicação da desigualdade social, articulado a uma série de medidas que permitam reorganizar a economia nacional,
tais como: a imediata revogação da reforma trabalhista, da Lei de
Responsabilidade Fiscal e do congelamento dos gastos públicos por vinte
anos; a reversão do processo de liberalização comercial e financeira; a
suspensão do pagamento da dívida pública; a centralização do câmbio, a
democratização do Banco Central; a nacionalização efetiva da Petrobrás; a
estatização do sistema financeiro; a expropriação da Vale do Rio Doce e
de todas as empresas envolvidas em crimes ambientais e delitos de
corrupção; bem como o planejamento público dos investimentos.
Evidentemente, uma mudança dessa envergadura supõe uma intervenção
popular que mude radicalmente as bases do Estado brasileiro. [E, grifos nossos]
Ao padrão de acumulação
de uma economia em reversão neocolonial, baseado no rebaixamento
sistemático do nível tradicional de vida dos trabalhadores, na
destruição das políticas públicas e na depredação acelerada do meio
ambiente, corresponde necessariamente um padrão de dominação autoritário. Sem modificar o primeiro, é impossível evitar o segundo. [L, grifos nossos]
Mais do que nunca, a tarefa prioritária da esquerda socialista é construir um programa político,
colado nas lutas concretas dos trabalhadores, que coloque na ordem do
dia a urgência de “direitos já” e sua necessária consequência: “fim dos
privilégios já”. [L]
Buscando
sintetizar seu pensamento, conseguimos perceber quais são os pontos
fundamentais da “revolução democrática” do companheiro Plínio.
O primeiro desafio é de ordem ideológica,
não político ou econômico – acabar com as salvaguardas ideológicas que o
capitalismo encontra para se naturalizar na mente de algum setor da
população (não especificado). O segundo desafio é de ordem político-legislativa, isso é, de reforma institucional, acabando com as salvaguardas legais ao Plano Real.
Em
seguida, temos a questão do programa econômico, novamente em que algum
setor da população ou do Estado (não especificados) deva “reorganizar a
economia nacional” a partir da geração de empregos (públicos? privados?
cooperativados?). As políticas econômicas específicas, talvez dessa
reorganização da economia nacional, concentram-se na reversão de
privatizações, estatizações e mais controle sobre o capital financeiro
na forma dos juros, do câmbio e da nacionalização bancária – chegando ao
ponto de defender um “planejamento público dos investimentos” (de novo,
sem especificar de quem seria esse capital investido). É evidente para o
companheiro Plínio: as demais mudanças econômicas devem “mud[ar]
radicalmente as bases do Estado brasileiro”, mas mantê-lo.
Temos ainda outra confusão. O companheiro Plínio deseja primeiro alterar o padrão de acumulação em nosso país, porque é com essa mudança que se poderia “evitar”, depois, o padrão autoritário de dominação política. Agora, novamente, a pergunta que fica é: qual setor da sociedade poderia modificar o padrão de acumulação antes de
alterar o padrão de dominação política? Até hoje, nem a burguesia
industrial, nem o setor do agronegócio, nem o setor financeiro, nem o
setor de varejo, nem setor algum da burguesia (a classe que domina a
sociedade capitalista brasileira) possui a disposição de alterar seus próprios padrões de acumulação
– ao contrário, o interesse de todas, para evitarem na medida do
possível sua absorção completa pelos monopólios internacionais é de manter o padrão autoritário de dominação para
manter (ou aumentar ainda mais) seu nível de acumulação. E, para isso,
conta com a máquina do Estado burguês. Por outro lado, o proletariado
tampouco tem condições objetivas de alterar o padrão de acumulação sem antes alterar o padrão de dominação política – ou seja, sem antes fazer de si próprio classe dominante e impor um padrão proletário de dominação política por meio da ação organizada das massas. Já diria Engels no texto “Sobre a autoridade” (1873):
Já
alguma vez viram uma revolução, estes senhores? Uma revolução é
certamente a coisa mais autoritária que se possa imaginar; é o ato pelo
qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra por meio das
espingardas, das baionetas e dos canhões, meios autoritários como
poucos; e o partido vitorioso, se não quer ser combatido em vão, deve
manter o seu poder pelo medo que as suas armas inspiram aos
reacionários.
E,
finalmente, temos os indicativos programáticos do companheiro Plínio. É
de se admirar que, mesmo elencando diversas medidas econômicas (pouco
factíveis sem a tomada do Poder de Estado pelos trabalhadores), ele não
completa ainda seu programa: diz que é preciso “construir” um. No
entanto, tem clareza: as bandeiras a serem levantadas com urgência são
“direitos já” e “fim dos privilégios já”. Novamente vago, o companheiro
Plínio não especifica quais direitos quer conquistar, nem quais
privilégios quer derrotar. Inclusive, e talvez ainda mais perigoso, é
que são palavras de ordem tão pouco sugestivas que inclusive estão sendo
utilizadas pela extrema direita, a seu modo, em sua agitação. O
direito ao porte de arma irrestrito, que habita os sonhos de milicianos e
bolsonaristas, é um direito, afinal. Ele faz parte dos “direitos já”? O
“privilégio” da estabilidade do funcionário público, em relação ao
trabalhador do setor privado, é um “privilégio”, afinal. Ele faz parte
do “fim dos privilégios já”?
O problema, no fundo, é que o companheiro Plínio não consegue se comprometer até as últimas consequências com a estratégia socialista.
Não que não possa entrar no rol daqueles que, costumeiramente, servem
de grande base de estudos, sobretudo econômicos, para a compreensão do
país em que vivemos – ao contrário, ao que tudo indica, é um acadêmico
que, apesar de acadêmico, estaria disposto a se engajar ativamente em
uma ruptura revolucionária em nosso país. Porém, enquanto ela não ocorre, ele aponta para a direção errada. Em vez de apontar para um sólido programa anticapitalista, ele defende uma retomada da capacidade do Estado de planejar e organizar a economia; em vez de apontar para uma revolução socialista e para estruturas de Poder Popular organizadas pelos trabalhadores com independência política, ele defende uma revolução democrática e uma revolução nacional
– ainda que não aponte seguramente quem são os sujeitos revolucionários
delas, nem o porquê da necessidade de uma revolução democrática em
plena democracia burguesa (com todas as ferramentas de coerção que lhe
são próprias) e de uma revolução nacional em pleno Brasil politicamente
independente (com todas as ferramentas de dependência econômica que lhe
são próprias).
O capitalismo brasileiro e a estratégia socialista
Ora,
uma vez que esboçamos, a partir da crítica às posições teóricas e
estratégicas do companheiro Plínio, alguns elementos da compreensão do
capitalismo brasileiro e, por consequência, da necessária estratégia da
revolução socialista em nosso país, cabe pontuar os fundamentos de nossa
posição.
Uma das melhores sínteses da compreensão do caráter
plenamente capitalista do modo de produção que predomina no Brasil é a
do camarada Edmilson Costa, Secretário-Geral do PCB, em seu artigo “O Brasil está maduro para o socialismo”.
Caracterizando corretamente o capitalismo brasileiro como de tipo
monopolista, a partir de uma análise da composição de classe da
burguesia brasileira, plenamente dominante na política nacional a partir
de sua força econômica e de seus aparelhos estatais, paraestatais e da
sociedade civil, e do proletariado brasileiro que, ainda que não esteja
no setor classicamente industrial, está disseminado amplamente em
diversos setores da produção de mais-valor, o camarada Edmilson
sintetiza sua visão ao dizer que
a
transição do sistema capitalista para o socialismo encontrará um País
em plenas condições para construir a sociedade socialista desenvolvida a
partir de bases que nenhuma outra nação que fez a revolução
anteriormente possuía. Além de possuir meios de produção em condições de
abastecer a sociedade de bens e serviços, o Brasil tem terra em
abundância ainda inexplorada; sol o ano inteiro, que permite a produção
de duas ou três safras anuais; água também em abundância; todas as
matérias-primas necessária ao processo de produção, inclusive os metais
raros utilizados nas tecnologias da informação e outros ramos produtivos
sofisticados, e uma mão-de-obra jovem e disposta ao trabalho. É bem
verdade que em todos os processos revolucionários há um período de
transição entre a desagregação da velha ordem e construção da nova
sociedade, onde ocorre certa desorganização da produção, reduzindo-se as
possibilidades de utilização de todo o potencial do País. Mas tão logo
os trabalhadores consolidem o poder, já encontram as bases materiais
para a construção da nova sociedade socialista.
A
relação dialética (e não mecânica) entre economia e política operada
pelo camarada Edmilson, como se pode ver, difere da visão do companheiro
Plínio. Se nessa um movimento da conjuntura é captado como universal da
análise, negando o caráter predominante das relações capitalistas de
produção no Brasil, naquela vemos uma compreensão fundada nas relações
de assalariamento e nos seus impactos na estrutura produtiva do país.
Não é à toa, portanto, a conclusão estratégica do camarada Edmilson:
Antes
que alguém atire a primeira pedra, é importante ressaltar que a
existência das condições objetivas, da base material avançada, não
significa que estamos às vésperas da revolução socialista. As condições
materiais significam muito, porque representam o lastro sob o qual vai
se desenvolver a luta de classes no País, as bases materiais nas quais a
classe operária e o proletariado vão construir a nova sociedade, mas
isso é apenas uma parte da questão, porque sem que as condições
subjetivas estejam maduras não haverá revolução.
[…]
Por
isso, é fundamental e imprescindível a ação da vanguarda revolucionária
para organizar os trabalhadores, elevar seu grau de consciência
política, educá-los no sentido classista, organizá-los para a superação
do capitalismo. A organização revolucionária possui um papel estratégico
na construção das condições subjetivas da revolução, pois o partido
condensa todo o aprendizado da luta de classes realizada ao longo de
vários anos. Por sua experiência, tem mais capacidade de transformar as
lutas econômicas em lutas políticas, elaborar uma estratégia e tática
para a revolução e formar no proletariado a consciência da necessidade
de tomada do poder político, como condição imprescindível para a
emancipação do conjunto dos trabalhadores.
Em
outras palavras, o papel do Partido como vanguarda estratégica do
proletariado, como operador político coletivo dos trabalhadores, como
síntese dos objetivos da classe operária continua com uma atualidade
extraordinária, apesar dos modismos teóricos e fetiches ideológicos dos
escribas pós-modernistas. Isso porque as entidades sociais, por mais
combativas que sejam, têm limites políticos, sociais e de
representatividade, não possuem a densidade totalizante dos partidos
políticos.
Essa
posição, com um marxismo ao mesmo tempo ortodoxo e criador, analítico
da situação histórico-concreta de nosso país, novamente apresenta suas
diferenças com a visão do companheiro Plínio. Não apenas é feita a
correta e necessária crítica ao etapismo, como há a visão tática e
organizativa decorrente dessa. Não os apelos vagos à esquerda, mas à
compreensão concreta da construção de um partido de vanguarda; não o
imbricamento mecânico de duas revoluções, democrática e nacional, mas a
relação dialética da realidade nacional com os imperativos objetivos
universais das lutas de classes; não a mistificação na análise, mas a
análise científica da dinâmica do capitalismo brasileiro. É por isso
que, como o camarada Edmilson Costa, negamos a necessidade de uma etapa
“nacional e democrática” da revolução brasileira – porque compreendemos
que essa ofensiva burguesa não é uma reversão colonial, mas um
aprofundamento da dependência e da dominação imperialista.
Além
disso, também podemos fazer três apontamentos sobre a circulação e as
práticas decorrentes dessa estratégia socialista. Primeiro, certa
crítica fácil do reformismo na história do movimento comunista, adora
resumir todos os problemas a um místico “stalinismo”, transformando um
problema real em um mero espantalho. O companheiro Plínio é
historicamente ligado ao trotskismo brasileiro e isso não o impediu de
desenvolver uma leitura etapista da revolução brasileira. Esse exemplo é
um, dentre vários, que mostra a necessidade de não banalizarmos o
debate mas, ao contrário, nos centrarmos em um debate leninista sobre a
estratégia e as táticas para a emancipação dos trabalhadores.
Em
segundo lugar, é preciso não expressar um antirreformismo de ocasião.
Para alguns, falar da relação entre as questões nacionais e a revolução
socialista, isto é, compreender que só com o socialismo revolveremos a
questão nacional e o domínio do imperialismo, seguindo o exemplo de
Cuba, é sintoma de etapismo. Mas uma defesa aberta do etapismo não é
encarada como tal. Nos diversos espaços de debate em que o companheiro
estiver, gostaríamos muito de perguntar em quê, no essencial da
estratégia política, a proposta do companheiro difere da linha do PCB
pré-1964. Para o processo de Reconstrução Revolucionária do PCB,
iniciado em 1992, que afirmou sua autocrítica ao etapismo, essa não é
uma questão secundária, mas primordial: diz respeito a quais
companheiros e organizações poderemos contar para a consolidação de uma
Frente Anticapitalista e Anti-imperialista que possa dirigir a revolução
socialista no Brasil.
Por último, é preciso fugir das
caricaturas. É comum, quando falamos da estratégia socialista, lembrar
casos de esquerdismo isolacionista, como o episódio recente do PSTU no
período 2014-2017. A desidratação do PSTU não é fruto de uma defesa da
estratégia socialista e da independência de classe, mas do esquerdismo e
da incapacidade de realizar corretas mediações táticas nas lutas
conjunturais. Defender uma estratégia socialista não pressupõe nenhum
tipo de esquerdismo, mas sim uma compreensão científica da formação
social brasileira e da dinâmica global do capitalismo, um compromisso
inegociável com a independência de classe e com o socialismo. E os que
baixam essa bandeira, ou a seguram a meio mastro, é que precisam
repensar seus caminhos erros. A revolução brasileira não faz curva. E
precisamos marchar firmes no caminho correto!
= = =
[1] Citamos aqui quatro artigos do companheiro Plínio: “Brasil: uma megafeitoria moderna” [B], publicado no Contrapoder em 26/04/2021; “Estagnação estrutural” [E], também publicado no Contrapoder em 04/09/2019; “Lula Livre” [L], no A Terra É Redonda em 26/03/2021 e “Globalização e reversão neocolonial: o impasse brasileiro” [G], publicado no Contrapoder em abril de 2021.
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