por José Chasin
Ensaio/1982
Haverá, por ventura, nos dias em curso[1], algo mais importante e
decisivo, na dinâmica de qualquer país — e do nosso de modo especial —,
do que as massas trabalhadoras e seus movimentos? E polêmica mais séria
e apaixonante do que a gerada por estas realidades e suas perspectivas,
no esforço de compreensão e opção a que todos somos obrigados?
Na certeza tranquila de que essas preliminares só possam ser respondidas de um único modo, a Nova Escrita/Ensaio,
neste n. 9 [1982], segundo desta sua fase, dá sequencia ao trabalho, na
letra e no espírito de sua definição editorial, trazendo diretamente ao
centro da arena a figura, rica em matizes, de Lula — identidade de consagração sindicalista — enxoval político
de Luís Inácio da Silva, nome do militante partidário. E já nisto fica
reconhecida uma extraordinária força positiva, e vai insinuada uma
imensa controvérsia.
Ao longo de seis horas de gravação, Lula (e) Luís Inácio da Silva refizeram
— pela reflexão — um percurso que teve início em meados da década
passada; mas deixando, com toda propriedade, o empenho mais enérgico
para o tratamento da porção maior e fundamental, que se materializou a
partir dos braços cruzados de 78, avançando espetacularmente pelas jornadas memoráveis de 79.
Andamento que se embaraça e desorienta sofrendo, em meio a uma campanha
que poderia ter sido colossal, as perplexidades de 80; para em seguida
se apagar ao longo de muitos meses, a ponto de chegar inerme à campanha
de 81. Será depois deste momento melancólico que tornarão a despontar as
energias dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo, precisamente com a
reação (num primeiro instante tímida e hesitante) à proposta de redução
da jornada de trabalho, tramada pela Volks, o equacionamento da
composição e nomeação da Junta e o processo, agora finalizado, de
resgate do Sindicato, de fato e de direito, através das eleições
sindicais, que registraram a retumbante vitória de Lula, derrotando
inclusive as provocações e os disparates da violência fanática,
travestida de ideologia e programa político.
Durante seis horas ele narrou, repensou, foi questionado e, por vezes,
contestado; teve de admitir insucessos e perplexidades (que não são
apenas suas), reafirmou opiniões e nem sempre logrou persuadir; em suma,
junto com a solidária e fraterna equipe de entrevistadores da Nova Escrita/Ensaio
ensaiou aprofundar uma análise, que é vital para todos nós. Resultou,
de um lado,um registro de peso para futuras retomadas analíticas;
doutro, um importante esforço que visa empurrar as coisas para frente,
tomando consciência que ainda há muitas respostas a serem dadas, e que
outras tantas, que andam sendo oferecidas, não podem ser tomadas como
válidas.
Lula e Luís Inácio da Silva — a extraordinária luta sindical e as preocupações com a política partidária. O sindicalismo pujante que retomou e conduziu a nível bem mais alto os melhores sentidos e aspectos de toda uma antiga tradição dos embates operários. Pela outra face, a necessidade de equação partidária para efetivar a extensão da luta de uma categoria e de uma classe para toda a sociedade e para os âmbitos do poder. Passo natural, imanente à lógica do movimento operário em busca de representação e ferramenta política para si e para todos os trabalhadores. Sonho que se desenhou no horizonte porque um vácuo absoluto gritava na realidade, com o abortamento final de todos os ramos de herança staliniana, distribuídos num espectro lastimável, que vai do pântano (no sentido de Lenin) ao primarismo ideológico banhado de violência sectária. Sonho que medrou, estirou pernas e braços e se pôs a andar; agora é tempo de precisar no que vem-se convertendo e para onde vai.
Não cabem nesta Nota considerações extensas, mas é imperioso assinalar alguns pontos para futuras discussões, engravidando a polêmica necessária.
Não é a primeira vez que falo de Lula. Desde 78 já o fiz em outras oportunidades; e extensamente em maio de 79, no calor mesmo da campanha salarial daquele ano (Escrita/Ensaio nº. 7). E sempre de modo francamente solidário e favorável ao líder metalúrgico.
Quero repetir a dose e acrescentar reparos.
Não podem mais restar dúvidas de que Lula é o melhor produto do ressurgimento do movimento operário ocorrido a partir de 78. É, precisamente, a expressão espontânea do historicamente novo. Tome-se a narrativa que faz dos primeiros anos de sua atividade em São Bernardo e ter-se-á comprovação disso. E nada de significativo contrasta essa espontaneidade até 79. Depois, não que ela desapareça,mas é tisnada por influencias políticas que, em parte, a desestruturam, confundindo e embaraçando. Do caráter intrinsecamente espontâneo da consciência de Lula temos uma evidencia, nesta entrevista, quando ele erige, em critério de avaliação de sindicatos e sindicalistas, a coragem e a honestidade; valores que visivelmente o parametram. A estes, de fato, não é possível recusar grande importância, mas que, tomados como medida única e exclusiva, não são suficientes para o aceso às nossas realidades, altamente complexificadas; traduzindo, isto sim, o que há de desamparado ou “inocente” na natureza de um produto social espontâneo, ou seja, não criado, determinado ou transformado por uma orientação política cientificamente constituída. Expressão, pois, do historicamente novo, mas de um novo com traços problemáticos: menos como dirigente sindical e mais como figura partidária. Novo e problemático que expressam, de maneira direta, as próprias virtudes e debilidades dos movimentos dos quais é produto e agente. Produto destes, objetiva o melhor que aqueles geram, incorporando, infelizmente, também, em certa medida, seus lados débeis e equivocados.
A campanha de 80 é por todas as circunstâncias a que melhor se presta para referir as debilidades aludidas: foi de todas a mais longamente preparada e aquela que teve a melhor organização; contudo, foi a menos bem sucedida, mais do que isso, foi derrotada no confronto com o empresariado e o estado. Estes, por seu turno, neste ano,também apuraram sua preparação como em nenhum dos anteriores. Por tudo isto é a que permite ver melhor os problemas.Refiro apenas os que a entrevista reflete com mais intensidade e que são os mais graves.
Antes, avanço um referencial analítico, já mencionado em outras ocasiões: no caso brasileiro, dentro das circunstâncias atuais, a greve operária por razões salariais e condições de trabalho fere diretamente a política econômica vigente, na medida que é, em si, a denúncia e o combate à superexploração do trabalho (arrocho), motivo pelo qual é imediatamente política. Por isso é bastante que a greve, em cada caso, consiga efetivar-se, puramente como greve, para ser vitoriosa enquanto tal, independentemente de mais nada; ou seja, por se objetivar a greve nasce vitoriosa, realiza um tento político. Suas eventuais conquistas naturalmente ampliam esta vitória inicial, materializando-a para seus agentes que, deste modo, são reforçados (estimulando e reforçando as outras categorias) em sua disposição de luta. Decorrentemente, ao ser, desde logo, uma vitória ao nascer, sua condução é delicadíssima, pois trata-se, no mínimo, mas de um mínimo essencial, de que não se desfaça e perca esta vitória política que é conquistada desde o primeiro instante. O que implica em deflagrações e encerramentos de greve, em avanços e recuos ao longo de seus desdobramentos, sempre rigorosamente formulados e controlados, lúcido domínio de todos os acontecimentos e completa ausência de qualquer aventureirismo, bem como no exercício seguro de ampla maleabilidade nos encaminhamentos, combinada com a máxima energia na fixação dos objetivos e nas suas reconfigurações, quando estas se impõem. Para aquém destas exigências é fácil cair em impasses, malograr diante de confrontos desproporcionais, desgastando e abatendo o ânimo decisivo das massas, e desmoralizando e aniquilando setores de lideranças. Lembre-se, de passagem, que é também dos insucessos, na parte ou no todo, de certos processos grevistas, que se alimentam os adeptos das teses desmobilizadoras, que tem por orientação geral “não aguçar as tensões”, na suposição de que da calmaria dos sepulcros nascerá fresca e orvalhada a donzela rósea e doce da democracia. Em suma, é óbvio que à falsidade absoluta do lema abstrato de “não aguçar tensões”, não corresponde como verdade o, igualmente abstrato, “tencionar de qualquer modo”, como numa convulsão permanente, tanto objetivamente impossível, quanto politicamente grosseria. O que vale dizer que não se trata, de nenhum modo, do reducionismo simplista do “grevismo” versus “não-grevismo”. Tanto a realidade, como as intervenções que ela reclama, são muito mais complexas e sutis. E a greve, arma maior dos trabalhadores, exige discernimento e responsabilidade proporcionais à sua elevada importância implicando em amplo descortino político, racionalmente constituído e sustentado.
Posta a preliminar, voltemos a Lula.
Seria tão impossível, quanto desnecessário, arrolar aqui todos os pontos de vista corretos e positivos do líder metalúrgico. Creio que se sumariza o conjunto, dizendo que ele é um franco e consequente defensor da convicção fundamental de que “só acontece alguma coisa neste país com a classe trabalhadora se movimentando”. E sua “garra”, retomando, de fato, a direção do Sindicato, convertendo-o no único dirigente deposto que logrou tal proeza, testemunha seu amparo de massas, sua autenticidade e seu valor. Este aspecto é tranquilo.
Contudo, transpassando a isso, tem de ser apontado que ele paga um ônus, desnecessariamente elevado, a uma certa forma de contar e ver a história do sindicalismo brasileiro, que parece acreditar que o último meio século é uma pura e simples pletora de covardias, traições e infindáveis mesquinharias, derivadas do vínculo de dependência que aferra a estrutura sindical brasileira ao estado. Que esta é uma porção significativa da verdade, é efetivo; que tal dependência é um dos instrumentos mais eficazes e perversos de controle e sufocamento do movimento operário, também o é. Mas, que o combate ao atrelamento e a reivindicação de liberdade e autonomia sindicais sejam uma postulação apenas recentemente configurada, isto é mito. Mito que induz a avaliações errôneas, desencaminhando a condução prática dos movimentos, seja a nível organizacional, seja a nível dos conteúdos e roteiros políticos, em cada caso concreto, e no todo em seu conjunto.
Quando Lula enfatiza a necessária vinculação, permanente consulta e manifestação das bases (aspectos, no passado, vistos com grande imperícia e confusão), nada se tem ou pode objetar, ao contrário. Entretanto, quando afirma que a “vanguarda é a massa” tem-se a dolorosa sensação que ele se espatifa num malabarismo infeliz, que contradiz até mesmo sua própria experiência, abocanhando uma formulação basista que não provém de seus referenciais originários, e cujas implicações estão muito pouco articuladas com seus procedimentos objetivos. Aqui se evidencia uma sintomática dissociação entre prática e postulado.
Sem dúvida, as questões relativas à organização são um calcanhar de Aquiles, no quadro de ideias do autentico e combativo líder metalúrgico. E se tem a nítida percepção de que se trata de uma fraqueza adquirida. Ele a incorpora, muito menos em razão de suas magníficas vivências de dirigente sindical -das melhores e maiores que já foram dadas a viver a um dirigente sindical brasileiro -e muito mais em razão das adjacências políticas que o cercam.
Neste diapasão, é certo, caminha, por exemplo, sua visão do pluralismo sindical, anacrônico e insustentável, tanto prática quanto ideologicamente;com o qual, no entanto, ele estabelece um namoro ambíguo, onde não faz uma responsável declaração de afeto que o legitime, mas a imediata admissão da possibilidade de mancebia.
Por outra parte, sobram razões a Lula, quando critica partidos, correntes ou tendências que alardeiam estar, por princípio, voltadas às causas populares, mas que não respaldam, e concretamente se opõem, à movimentação sindical mais avançada e consequente inibindo, em realidade, o movimento operário, nele mesmo introduzindo desvalores que o desossam e o reduzem à impotência.
Todavia, como verá o leitor, apesar desta propriedade de vistas, Lula não revela a melhor compreensão política quanto a alguns aspectos essenciais da campanha de 80, com repercussões inclusive sobre a análise dos anos anteriores.
Tome-se a afirmação: “podem ter certeza, quando saímos para a greve (80) o objetivo era desbancar a política salarial do governo, e era necessário mostrar que a classe trabalhadora não estava iludida e queria conquistar alguma coisa, porque, na verdade, de 78 a 80 ela não conquistou nada de substancial", combinadamente com uma outra, síntese de várias colocações, aqui estampada de forma sumária: em greve não há como evitar o isolamento político.
O que salta à vista é a fantástica desproporção entre o objetivo, pretendidamente fixado, e a base territorial mobilizada. A suposição de que, circunscritos a São Bernardo ou no máximo ao ABC, seria possível abalar aspecto tão fundamental para o sistema econômico vigente. A terrível incompreensão de que, restritos à própria faixa de categoria dos metalúrgicos em greve, jamais representariam uma força suficiente para um objetivo tão amplo. O que desorienta, é óbvio, toda a tramitação da greve e leva ao desperdício as forças acumuladas, mobilizadas e postas em luta como, de fato, veio a ocorrer.
Quando se adiciona, à desproporção apontada, a afirmação de que o isolamento político é fatal num processo de greve, enormidade esta tão grande quanto a primeira, temos a dolorosa comprovação de que a campanha de 80 estava impedida de possuir uma formação política de condução. Que foi rusticamente concebida como um espécie de bizarro concurso de resistência, que teria a propriedade de quebrar as forças econômicas do capital e as energias políticas do estado que engendra.
E o pior é que Lula, ao longo de toda a entrevista, não se mostrou capaz de compreender tais aspectos, revelando, em síntese, bloqueamento para a questão fundamental das greves em geral: a necessidade, tanto maior quanto mais importante a grave for, de preparar e desenvolver a ampliação de sua base social e política. Sem o que é vitimada pelo isolamento. Tal desconhecimento contudo, não é um "privilégio" de Lula. Pesarosamente esta ignorância foi a coisa mais bem dividida entre os membros do comando em 80, engolfando também aqueles que, meses depois, viriam a emprestar suas assinaturas a documentos que deram eco a certas linhas de interpretação da greve em seu conjunto, quando então pretenderam uma clarividência que, de fato, não era deles. Em verdade, todos sem exceção, lamentavelmente sem nenhuma exceção, eram jejunos quanto a este problema. Vale, à guisa de simples depoimento, referir que tive oportunidade, precisamente a 30 de marco de 80, no Estádio de Vila Euclides, logo após a decretação da greve, de travar contato com quase uma dezena daqueles que mais viriam a sobressair na movimentação daquele ano; a única coisa que indaguei a todos, naquele primeiro contato, foi exatamente quanto às providencias tomadas em busca da ampliação da base social e política de sustentação do movimento que se iniciava.Lamentavelmente, não obtive nenhuma resposta com um mínimo de consistência. Em verdade, nada neste sentido fora ideado e muito menos providenciado, a questão política central simplesmente não era compreendida. Havia apenas uma mera fé tecnicista numa suposta organização esplêndida, que teria sido montada.
Poderíamos, para finalizar, transitando de Lula para Luís Inácio da Silva, deixar assinalado que “ambos” se confundem, na formulação das relações entre sindicato e partido político, em mais uma debilidade adquirida.
Mas, se queremos, ao lado de mais uma vez grifar o valor de nosso personagem -lembrando seu posicionamento favorável, ainda que não nos moldes mais desejáveis e consequentes, em torno da necessidade de uma proposta econômica da perspectiva do trabalho, única a poder ser base e norte para uma efetiva construção democrática no país; mas, repito, se junto a isto se impõe sintetizar suas fraquezas, dir-se-á que ele compreende e desfralda as bandeiras das necessidades operárias de independência sindical e política, mas desconhece por completo a terceira necessidade fundamental: a independência ideológica da classe operária.
Sendo assim, Luís Inácio da Silva vive como que intermitentemente sob ameaça de afogamento, arrastando, muitas vezes, pelo braço ao resistente Lula, tipo mais sólido.
E tudo isso não pode surpreender, pois na eclosão espontânea das forcas das massas, que teve início em 78, elas não encontraram, infelizmente, um movimento de ideias calçadas com rigor, de cuja simbiose pudesse nascer uma movimentação própria e consentânea às circunstâncias e à destinação dos trabalhadores.
Resta dizer que o futuro de Lula não importa apenas a ele, de modo que o dito aqui, suscitador de discussão, é uma parcela de um esforço geral a que todos deveriam responsavelmente se filiar.
Se não bastasse a larga matéria referente à Luís Inácio da Silva, o Lula, neste nº 9 da Nova Escrita/Ensaio, ainda se estampa uma entrevista com três componentes do Comando de Greve da Fiat.[2] Desnecessário ressaltar a enorme atualidade do assunto, basta dizer que se tratou da primeira greve contra o desemprego, da primeira reação que tentou uma parcela da classe operária brasileira posta diante da expressão mais recente da política econômica vigente há década e meia; diga-se do rosto mais monstruoso da política do arrocho salarial.
Verá o leitor que, tanto ou mais que a anterior, a matéria é todo um banquete para quem deseje a discussão. Registro apenas que, também neste caso, a ausência, no país, de uma consciência política alicerçada em sólida teoria conduz a estranhos produtos, fazendo com que ressoem, no aqui e no agora, vozes de outros lugares e tempos, que a história, de fato, já reprovou. O que importa, concretamente,é perceber que as energias dos trabalhadores brasileiros estão à flor da pele, e que, à falta de condução política real e racional, ficam dolorosamente inaproveitadas. O que, em realidade, se assiste é ao triste espetáculo do desencontro entre a pulsação da 11base e os descaminhos das teses e propostas político-partidárias. Estas, de um ou de outro modo, sempre qualitativamente inferiores ao valor e às possibilidades do movimento de massas.
O assunto é extremamente complexo. Quero acenar apenas apara o fato de que os partidos, ou de modo mais genérico os organismos políticos de oposição, em nosso país, tem sido incapazes da captura científica do real e a partir desta de uma válida equação programática. Ou seja, na medida em que não tem havido consistente apreensão e explicação dos fenômenos econômico-político-sociais que nos marcam, os mitos ideológicos tem habitado o pensamento político, funcionando como a sua verdadeira sabedoria. Mitos, só para exemplificar, que vão desde postulações, como a do feudalismo enquanto diagnóstico para a história brasileira, até formulações mais recentes, como as “teorias” do populismo ou do fascismo.Convergindo, hoje, tais colocações, por mais distintas que sejam suas origens, aos mitos maiores do nosso momento: a constituinte e a democracia formal salvacionista, incrivelmente esquecidas, numa paráfrase de Marx, que a democracia real é a verdade da constituinte, e que a constituinte não é a verdade da democracia real.
Lula e Luís Inácio da Silva — a extraordinária luta sindical e as preocupações com a política partidária. O sindicalismo pujante que retomou e conduziu a nível bem mais alto os melhores sentidos e aspectos de toda uma antiga tradição dos embates operários. Pela outra face, a necessidade de equação partidária para efetivar a extensão da luta de uma categoria e de uma classe para toda a sociedade e para os âmbitos do poder. Passo natural, imanente à lógica do movimento operário em busca de representação e ferramenta política para si e para todos os trabalhadores. Sonho que se desenhou no horizonte porque um vácuo absoluto gritava na realidade, com o abortamento final de todos os ramos de herança staliniana, distribuídos num espectro lastimável, que vai do pântano (no sentido de Lenin) ao primarismo ideológico banhado de violência sectária. Sonho que medrou, estirou pernas e braços e se pôs a andar; agora é tempo de precisar no que vem-se convertendo e para onde vai.
Não cabem nesta Nota considerações extensas, mas é imperioso assinalar alguns pontos para futuras discussões, engravidando a polêmica necessária.
Não é a primeira vez que falo de Lula. Desde 78 já o fiz em outras oportunidades; e extensamente em maio de 79, no calor mesmo da campanha salarial daquele ano (Escrita/Ensaio nº. 7). E sempre de modo francamente solidário e favorável ao líder metalúrgico.
Quero repetir a dose e acrescentar reparos.
Não podem mais restar dúvidas de que Lula é o melhor produto do ressurgimento do movimento operário ocorrido a partir de 78. É, precisamente, a expressão espontânea do historicamente novo. Tome-se a narrativa que faz dos primeiros anos de sua atividade em São Bernardo e ter-se-á comprovação disso. E nada de significativo contrasta essa espontaneidade até 79. Depois, não que ela desapareça,mas é tisnada por influencias políticas que, em parte, a desestruturam, confundindo e embaraçando. Do caráter intrinsecamente espontâneo da consciência de Lula temos uma evidencia, nesta entrevista, quando ele erige, em critério de avaliação de sindicatos e sindicalistas, a coragem e a honestidade; valores que visivelmente o parametram. A estes, de fato, não é possível recusar grande importância, mas que, tomados como medida única e exclusiva, não são suficientes para o aceso às nossas realidades, altamente complexificadas; traduzindo, isto sim, o que há de desamparado ou “inocente” na natureza de um produto social espontâneo, ou seja, não criado, determinado ou transformado por uma orientação política cientificamente constituída. Expressão, pois, do historicamente novo, mas de um novo com traços problemáticos: menos como dirigente sindical e mais como figura partidária. Novo e problemático que expressam, de maneira direta, as próprias virtudes e debilidades dos movimentos dos quais é produto e agente. Produto destes, objetiva o melhor que aqueles geram, incorporando, infelizmente, também, em certa medida, seus lados débeis e equivocados.
A campanha de 80 é por todas as circunstâncias a que melhor se presta para referir as debilidades aludidas: foi de todas a mais longamente preparada e aquela que teve a melhor organização; contudo, foi a menos bem sucedida, mais do que isso, foi derrotada no confronto com o empresariado e o estado. Estes, por seu turno, neste ano,também apuraram sua preparação como em nenhum dos anteriores. Por tudo isto é a que permite ver melhor os problemas.Refiro apenas os que a entrevista reflete com mais intensidade e que são os mais graves.
Antes, avanço um referencial analítico, já mencionado em outras ocasiões: no caso brasileiro, dentro das circunstâncias atuais, a greve operária por razões salariais e condições de trabalho fere diretamente a política econômica vigente, na medida que é, em si, a denúncia e o combate à superexploração do trabalho (arrocho), motivo pelo qual é imediatamente política. Por isso é bastante que a greve, em cada caso, consiga efetivar-se, puramente como greve, para ser vitoriosa enquanto tal, independentemente de mais nada; ou seja, por se objetivar a greve nasce vitoriosa, realiza um tento político. Suas eventuais conquistas naturalmente ampliam esta vitória inicial, materializando-a para seus agentes que, deste modo, são reforçados (estimulando e reforçando as outras categorias) em sua disposição de luta. Decorrentemente, ao ser, desde logo, uma vitória ao nascer, sua condução é delicadíssima, pois trata-se, no mínimo, mas de um mínimo essencial, de que não se desfaça e perca esta vitória política que é conquistada desde o primeiro instante. O que implica em deflagrações e encerramentos de greve, em avanços e recuos ao longo de seus desdobramentos, sempre rigorosamente formulados e controlados, lúcido domínio de todos os acontecimentos e completa ausência de qualquer aventureirismo, bem como no exercício seguro de ampla maleabilidade nos encaminhamentos, combinada com a máxima energia na fixação dos objetivos e nas suas reconfigurações, quando estas se impõem. Para aquém destas exigências é fácil cair em impasses, malograr diante de confrontos desproporcionais, desgastando e abatendo o ânimo decisivo das massas, e desmoralizando e aniquilando setores de lideranças. Lembre-se, de passagem, que é também dos insucessos, na parte ou no todo, de certos processos grevistas, que se alimentam os adeptos das teses desmobilizadoras, que tem por orientação geral “não aguçar as tensões”, na suposição de que da calmaria dos sepulcros nascerá fresca e orvalhada a donzela rósea e doce da democracia. Em suma, é óbvio que à falsidade absoluta do lema abstrato de “não aguçar tensões”, não corresponde como verdade o, igualmente abstrato, “tencionar de qualquer modo”, como numa convulsão permanente, tanto objetivamente impossível, quanto politicamente grosseria. O que vale dizer que não se trata, de nenhum modo, do reducionismo simplista do “grevismo” versus “não-grevismo”. Tanto a realidade, como as intervenções que ela reclama, são muito mais complexas e sutis. E a greve, arma maior dos trabalhadores, exige discernimento e responsabilidade proporcionais à sua elevada importância implicando em amplo descortino político, racionalmente constituído e sustentado.
Posta a preliminar, voltemos a Lula.
Seria tão impossível, quanto desnecessário, arrolar aqui todos os pontos de vista corretos e positivos do líder metalúrgico. Creio que se sumariza o conjunto, dizendo que ele é um franco e consequente defensor da convicção fundamental de que “só acontece alguma coisa neste país com a classe trabalhadora se movimentando”. E sua “garra”, retomando, de fato, a direção do Sindicato, convertendo-o no único dirigente deposto que logrou tal proeza, testemunha seu amparo de massas, sua autenticidade e seu valor. Este aspecto é tranquilo.
Contudo, transpassando a isso, tem de ser apontado que ele paga um ônus, desnecessariamente elevado, a uma certa forma de contar e ver a história do sindicalismo brasileiro, que parece acreditar que o último meio século é uma pura e simples pletora de covardias, traições e infindáveis mesquinharias, derivadas do vínculo de dependência que aferra a estrutura sindical brasileira ao estado. Que esta é uma porção significativa da verdade, é efetivo; que tal dependência é um dos instrumentos mais eficazes e perversos de controle e sufocamento do movimento operário, também o é. Mas, que o combate ao atrelamento e a reivindicação de liberdade e autonomia sindicais sejam uma postulação apenas recentemente configurada, isto é mito. Mito que induz a avaliações errôneas, desencaminhando a condução prática dos movimentos, seja a nível organizacional, seja a nível dos conteúdos e roteiros políticos, em cada caso concreto, e no todo em seu conjunto.
Quando Lula enfatiza a necessária vinculação, permanente consulta e manifestação das bases (aspectos, no passado, vistos com grande imperícia e confusão), nada se tem ou pode objetar, ao contrário. Entretanto, quando afirma que a “vanguarda é a massa” tem-se a dolorosa sensação que ele se espatifa num malabarismo infeliz, que contradiz até mesmo sua própria experiência, abocanhando uma formulação basista que não provém de seus referenciais originários, e cujas implicações estão muito pouco articuladas com seus procedimentos objetivos. Aqui se evidencia uma sintomática dissociação entre prática e postulado.
Sem dúvida, as questões relativas à organização são um calcanhar de Aquiles, no quadro de ideias do autentico e combativo líder metalúrgico. E se tem a nítida percepção de que se trata de uma fraqueza adquirida. Ele a incorpora, muito menos em razão de suas magníficas vivências de dirigente sindical -das melhores e maiores que já foram dadas a viver a um dirigente sindical brasileiro -e muito mais em razão das adjacências políticas que o cercam.
Neste diapasão, é certo, caminha, por exemplo, sua visão do pluralismo sindical, anacrônico e insustentável, tanto prática quanto ideologicamente;com o qual, no entanto, ele estabelece um namoro ambíguo, onde não faz uma responsável declaração de afeto que o legitime, mas a imediata admissão da possibilidade de mancebia.
Por outra parte, sobram razões a Lula, quando critica partidos, correntes ou tendências que alardeiam estar, por princípio, voltadas às causas populares, mas que não respaldam, e concretamente se opõem, à movimentação sindical mais avançada e consequente inibindo, em realidade, o movimento operário, nele mesmo introduzindo desvalores que o desossam e o reduzem à impotência.
Todavia, como verá o leitor, apesar desta propriedade de vistas, Lula não revela a melhor compreensão política quanto a alguns aspectos essenciais da campanha de 80, com repercussões inclusive sobre a análise dos anos anteriores.
Tome-se a afirmação: “podem ter certeza, quando saímos para a greve (80) o objetivo era desbancar a política salarial do governo, e era necessário mostrar que a classe trabalhadora não estava iludida e queria conquistar alguma coisa, porque, na verdade, de 78 a 80 ela não conquistou nada de substancial", combinadamente com uma outra, síntese de várias colocações, aqui estampada de forma sumária: em greve não há como evitar o isolamento político.
O que salta à vista é a fantástica desproporção entre o objetivo, pretendidamente fixado, e a base territorial mobilizada. A suposição de que, circunscritos a São Bernardo ou no máximo ao ABC, seria possível abalar aspecto tão fundamental para o sistema econômico vigente. A terrível incompreensão de que, restritos à própria faixa de categoria dos metalúrgicos em greve, jamais representariam uma força suficiente para um objetivo tão amplo. O que desorienta, é óbvio, toda a tramitação da greve e leva ao desperdício as forças acumuladas, mobilizadas e postas em luta como, de fato, veio a ocorrer.
Quando se adiciona, à desproporção apontada, a afirmação de que o isolamento político é fatal num processo de greve, enormidade esta tão grande quanto a primeira, temos a dolorosa comprovação de que a campanha de 80 estava impedida de possuir uma formação política de condução. Que foi rusticamente concebida como um espécie de bizarro concurso de resistência, que teria a propriedade de quebrar as forças econômicas do capital e as energias políticas do estado que engendra.
E o pior é que Lula, ao longo de toda a entrevista, não se mostrou capaz de compreender tais aspectos, revelando, em síntese, bloqueamento para a questão fundamental das greves em geral: a necessidade, tanto maior quanto mais importante a grave for, de preparar e desenvolver a ampliação de sua base social e política. Sem o que é vitimada pelo isolamento. Tal desconhecimento contudo, não é um "privilégio" de Lula. Pesarosamente esta ignorância foi a coisa mais bem dividida entre os membros do comando em 80, engolfando também aqueles que, meses depois, viriam a emprestar suas assinaturas a documentos que deram eco a certas linhas de interpretação da greve em seu conjunto, quando então pretenderam uma clarividência que, de fato, não era deles. Em verdade, todos sem exceção, lamentavelmente sem nenhuma exceção, eram jejunos quanto a este problema. Vale, à guisa de simples depoimento, referir que tive oportunidade, precisamente a 30 de marco de 80, no Estádio de Vila Euclides, logo após a decretação da greve, de travar contato com quase uma dezena daqueles que mais viriam a sobressair na movimentação daquele ano; a única coisa que indaguei a todos, naquele primeiro contato, foi exatamente quanto às providencias tomadas em busca da ampliação da base social e política de sustentação do movimento que se iniciava.Lamentavelmente, não obtive nenhuma resposta com um mínimo de consistência. Em verdade, nada neste sentido fora ideado e muito menos providenciado, a questão política central simplesmente não era compreendida. Havia apenas uma mera fé tecnicista numa suposta organização esplêndida, que teria sido montada.
Poderíamos, para finalizar, transitando de Lula para Luís Inácio da Silva, deixar assinalado que “ambos” se confundem, na formulação das relações entre sindicato e partido político, em mais uma debilidade adquirida.
Mas, se queremos, ao lado de mais uma vez grifar o valor de nosso personagem -lembrando seu posicionamento favorável, ainda que não nos moldes mais desejáveis e consequentes, em torno da necessidade de uma proposta econômica da perspectiva do trabalho, única a poder ser base e norte para uma efetiva construção democrática no país; mas, repito, se junto a isto se impõe sintetizar suas fraquezas, dir-se-á que ele compreende e desfralda as bandeiras das necessidades operárias de independência sindical e política, mas desconhece por completo a terceira necessidade fundamental: a independência ideológica da classe operária.
Sendo assim, Luís Inácio da Silva vive como que intermitentemente sob ameaça de afogamento, arrastando, muitas vezes, pelo braço ao resistente Lula, tipo mais sólido.
E tudo isso não pode surpreender, pois na eclosão espontânea das forcas das massas, que teve início em 78, elas não encontraram, infelizmente, um movimento de ideias calçadas com rigor, de cuja simbiose pudesse nascer uma movimentação própria e consentânea às circunstâncias e à destinação dos trabalhadores.
Resta dizer que o futuro de Lula não importa apenas a ele, de modo que o dito aqui, suscitador de discussão, é uma parcela de um esforço geral a que todos deveriam responsavelmente se filiar.
Se não bastasse a larga matéria referente à Luís Inácio da Silva, o Lula, neste nº 9 da Nova Escrita/Ensaio, ainda se estampa uma entrevista com três componentes do Comando de Greve da Fiat.[2] Desnecessário ressaltar a enorme atualidade do assunto, basta dizer que se tratou da primeira greve contra o desemprego, da primeira reação que tentou uma parcela da classe operária brasileira posta diante da expressão mais recente da política econômica vigente há década e meia; diga-se do rosto mais monstruoso da política do arrocho salarial.
Verá o leitor que, tanto ou mais que a anterior, a matéria é todo um banquete para quem deseje a discussão. Registro apenas que, também neste caso, a ausência, no país, de uma consciência política alicerçada em sólida teoria conduz a estranhos produtos, fazendo com que ressoem, no aqui e no agora, vozes de outros lugares e tempos, que a história, de fato, já reprovou. O que importa, concretamente,é perceber que as energias dos trabalhadores brasileiros estão à flor da pele, e que, à falta de condução política real e racional, ficam dolorosamente inaproveitadas. O que, em realidade, se assiste é ao triste espetáculo do desencontro entre a pulsação da 11base e os descaminhos das teses e propostas político-partidárias. Estas, de um ou de outro modo, sempre qualitativamente inferiores ao valor e às possibilidades do movimento de massas.
O assunto é extremamente complexo. Quero acenar apenas apara o fato de que os partidos, ou de modo mais genérico os organismos políticos de oposição, em nosso país, tem sido incapazes da captura científica do real e a partir desta de uma válida equação programática. Ou seja, na medida em que não tem havido consistente apreensão e explicação dos fenômenos econômico-político-sociais que nos marcam, os mitos ideológicos tem habitado o pensamento político, funcionando como a sua verdadeira sabedoria. Mitos, só para exemplificar, que vão desde postulações, como a do feudalismo enquanto diagnóstico para a história brasileira, até formulações mais recentes, como as “teorias” do populismo ou do fascismo.Convergindo, hoje, tais colocações, por mais distintas que sejam suas origens, aos mitos maiores do nosso momento: a constituinte e a democracia formal salvacionista, incrivelmente esquecidas, numa paráfrase de Marx, que a democracia real é a verdade da constituinte, e que a constituinte não é a verdade da democracia real.
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Notas:
Notas:
[0] Este texto faz parte da melhor fase do José Chasin, quando era adepto do materialismo dialético. Diferente do último Chasin: estatuto metafísico e regressão metodológica (hartmanniana).
[1] Publicado originalmente como “Nota de Coordenação” da Revista Nova Escrita/Ensaio, n. 9. Ensaio, São Paulo, 1982.
[2] Como se trata da “Nota da Coordenação” editorial, Chasin faz menção aos artigos publicados na revista.
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CHASIN, J. “Lula versus Luis Inácio da Silva” [1982]. In: A miséria brasileira: 1964-1994 - do golpe militar à crise social. Santo André - SP: Ad Hominen, 2000, p. 113-119.
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