sábado, 28 de setembro de 2019

A logística: exame crítico



por Henri Lefebvre

A logística ou “álgebra da lógica[1] recebeu recentemente um desenvolvimento considerável e suscitou grandes esperanças.

Leibniz havia sonhado com uma filosofia que se fundisse com as ciências rigorosamente dedutivas, a partir de um conjunto de signos (characteristica universalis) tratados segundo métodos lógicos comparáveis ao cálculo (calculus rationator), e capaz de atingir, através da introdução apenas de axiomas e definições absolutamente claras e simples, todas as verdades (ares combinatoria).

A logística retomou essa ambição. Ela se baseia sobre certas modificações feitas à lógica formal clássica:

a) O predicado em “todo homem é mortal” é considerado classicamente em sua qualidade, sem lhe atribuir uma quantidade determinada.[2] Hamilton (em 1840) propôs quantificar o predicado. A proposição precedente, nesse caso, seria enunciada do seguinte modo: “O homem é alguns dos mortais”; ou, mais exatamente: “Homem = alguns mortais”. A qualidade desaparece. A proposição desse tipo torna-se comparável a esta: todo retângulo é quadrilátero. A quantidade do atributo não é mais considerada, como o era classicamente, como sendo determinada pela qualidade da proposição; nem tomada particularmente pelo único fato de que a proposição é universal afirmativa. Assim, no juízo “todo triângulo é trilateral”, o predicado é tomado universalmente, porque se trata da definição do triângulo e porque toda figura trilateral é um triângulo, o que é contrário à regra clássica.

Se se quantifica o predicado, todo silogismo aproxima-se do tipo A = B, B = C, A = C; e seu princípio torna-se uma “substituição de semelhantes” (Stanley Jevons), bem próxima do raciocínio matemático.

b) As proposições reais não se reduzem à relação de um sujeito com um atributo através do verbo “ser”. O pensamento emprega numerosos tipos de relação, cujo quadro deve ser elaborado. Existem, por exemplo, as relações reversíveis (igual a, equivale a, está situado perto de, está em contato com), as relações contrárias (está acima de, é causa de, é maior que...) etc.

c) Essas relações, e não os conceitos, devem se tornar os pontos de partida da lógica. O conceito está decididamente “subordinado ao juízo” (Couturat), ou seja, à relação e aos tipos de relação ou “funções proposicionais”, que serão caracterizadas por signos comparáveis aos signos da álgebra.

Por exemplo: “se x faz parte do conjunto a, não faz parte do conjunto b”; por conseguinte, x é a ou b (disjunção).

A conjunção “ou” indica uma relação muito simples, comparável à adição, pois indica que se pode fazer a soma dos conjunto a e do conjunto b. Assim, o conjunto dos objetos x  é definido pelo produto do conjunto a e do conjunto b (produto lógico: a. b = x; conjunção).

Esses signos, por outro lado, são arbitrários e diferem conforme o logístico.

Do cálculo das proposições, acima esboçado, eles passam para o cálculo das classes e para o cálculo das relações.

Vejamos, para precisar as ideias, um exemplo tomado de Reichenbach. “Aristóteles era um grego”. No cálculo das proposições, essa frase é representada por “a”, afirmação que pode ser verdadeira ou falsa, negada ou relacionada com outras afirmações. Mas o cálculo deve também considerar a estrutura da frase, o fato de que ela exprime algo sobre o objeto: a propriedade de ser grego. Podemos isolar essa propriedade e representá-la por f(x), onde x corresponde ao objeto a que se aplica essa “forma funcional”. f(x) não é nem verdadeiro nem falso, mas torna-se verdadeiro quando se substitui a variável x pelo valor “Aristóteles”; e falso quando esta é substituída por “Goethe”. Esse símbolo f(x), é um modelo que permite obter proposições em número ilimitado.

Um função φ(x) significa que todo indivíduo x pertence à classe φ. Por exemplo: se x é homem, escrever-se-á h(x). As expressões, desse modo, contêm elementos constantes e elementos variáveis (objetos ou predicados indeterminados). Vejamos, segundo Reichenbach, como se escreve a estrutura da seguinte frase: “Pedro é um homem que sabe o que quer”. Substituamos Pedro pela variável x, que poderá ganhar o valor “Pedro”, “Paulo”, etc.

Temos as seguintes designações funcionais:

          h (x)           x é um homem
s (x,y)         x sabe y
q (x,y)        x quer y

A frase, então, é assim escrita:

h(x) . (y) [q (x,y)] s (x,y).

y é indeterminado; e s e q designam relações determinadas.

Não podemos nem imaginar, aqui, em resumir longos tratados de logística; devemos nos limitar a remeter às obras especializadas.

Os logísticos pretendem não apenas pôr sob forma lógica toda linguagem corrente, mas também analisar rigorosamente a língua científica em sua integridade. Em particular, fizeram eles um esfoço considerável no sentido de expor e deduzir logisticamente a aritmética (Peano), a geometria e toda a matemática (Russell, Escola de Viena, etc).

Voltaremos a falar desse problema quando tratarmos do método matemático.

Uma tentativa tão considerável quanto a logística mereceria uma discussão aprofundada, que, por sua vez, exigiria um tratado especial. Contentar-nos-emos, aqui, com algumas objeções fundamentais.

a) O cálculo proposicional, base da logística, trata de operações que se efetuam com proposições. Entendemos aqui proposição como um enunciado suscetível de verdade ou falsidade... “O ouro é mais leve que a água”. Esse último enunciado é falso, mas isso não lhe retira o caráter de proposição. Ao contrário, quando reunimos signos numa combinação desprovida de sentido, não formamos uma proposição. Por exemplo: “A luz é um número primo”[3]; ou ainda, para tomarmos um exemplo de Gonseth: “Minha coragem pesa cinco quilos”.

Como é possível saber que uma combinação de signos é desprovida de sentido se não abandonarmos o plano formal sobre o qual a logística pretende se estabelecer, e tomarmos em consideração o conteúdo? Formalmente, “minha coragem pesa cinco quilos” é uma proposição; tanto gramatical quanto logicamente, essa proposição é correta.

Por outro lado, Whitehead e Russell[4] concordam com isso. Introduzem o que chamam de proposições “atômicas”, simples, como “isto é vermelho”. Uma proposição ou relação “atômica” é representada por R(x), onde x, por definição, é um indivíduo do conjunto R. Do mesmo modo, R(x,y) significa “x tem uma relação R com y”. É claro que essa relação é uma relação em compreensão; por exemplo, “x é filho de y”. É por isso que os autores confessam: “A verdade ou falsidade dessas relações só pode ser conhecida empiricamente[5]. Desse modo, sai-se constantemente do cálculo para referir-se aos fatos.

Russell, e com ele vários logísticos, introduz o símbolo da incompatibilidade e o símbolo da negação... Donde vem essa “negação”? Formalmente, deve reinar apenas o princípio da identidade, que deveria “excluir” a negação e a contradição, a ponto de nem sequer se falar desse escândalo lógico! Seria porque certos fatos impõem a consideração do negativo? Então, a logística moderna se choca com a objeção que Kant, numa obra juvenil, fazia ao cálculo universal projetado por Leibniz. O negativo real não é o positivo dotado de outro signo. A dor não é “não-prazer”; nem o prazer é a “não-dor”. A fome não é apenas uma “não-saciedade”. Ou ainda, como diz Hegel, ir para o Ocidente não é apenas deixar de ir para o Oriente; é o contrário real, afirma Hegel (embora exista a mesma estrada!).

c) Além disso: “Podemos dizer que a tarefa da logística é estabelecer fórmulas tautológicas” (como: a [b = a] – b; ou seja: a implica b, equivale a não-a ou b). A tautologia é vazia, mas essa “noção vazia" deve ser diferenciada da noção “desprovida de sentido”... Uma reunião de símbolos desprovida de sentido não é nem verdadeira nem falsa, ao passo que a proposição vazia da tautologia é verdadeira”.[6] A logística encontra-se aqui com a questão enfrentada pela lógica formal. Ela postula que o rigor define a verdade;  a verdade, portanto, é vazia? E quem ou o quê virá preencher esse vazio? — A experiência? Mas como é que ela entra nesse vazio? Como recebe sua verdade de um forma vazia? Ou será que é ela que torna “verdadeiramente verdadeira” a forma? Como? E essa experiência, com suas negações e contradições reais, entra facilmente nessa imensa tautologia vazia que seria o pensamento enquanto pensamento? Certamente, o pensamento humano não é uma substância. Mas é um poder: e isso a logística esquece.

d) Não se vê bem qual seja o interesse de traduzir num simbolismo abstrato uma frase tão clara como “Pedro sabe o que quer”. Introduzir funções proporcionais, como q ou s, é introduzir a experiência; mas onde está a dedução? A dedução e o cálculo aparecem com mais interesse nas tentativas da logística, que discutiremos mais adiante.

Indiquemos brevemente o princípio dessa crítica.

Eis uma definição logística:

O número cardinal 2 se define como a classe de todos os pares de objetos diferentes um do outro. É difícil não observar, logo após, que “2” se define pelo par. Ou se admite a “ideia” do número “dois” como uma realidade descrita pela fórmula, caso em que não há mais rigor formal, porém idealismo platônico; ou então temos aí um simples artifício simbólico, caso em que se volta à fórmula 1 + 1 = 2, com seus tradicionais problemas.

e) Admitamos que a “experiência” ou o “conteúdo” venha preencher a gigantesca tautologia que seriam as matemáticas. Essa tautologia conteria, descreveria ou poria em forma a experiência passada. E o futuro?
Que o sol se levante amanhã, eis uma hipótese. Com efeito, não sabemos se se levantará, pois não há necessidade de que um fato exista porque já existiu (Russell).
E Wittgenstein precisa:
Os eventos futuros não podem ser deduzidos dos eventos presentes. O encadeamento causal é uma superstição.[7]
Com efeito, a logística incide apenas sobre conjuntos ou classes (de objetos, de proposições, de conjuntos). E essas classes ou conjuntos podem ser constatados apenas no passado. A indução é rigorosamente impossível. Por esse caminho, é impossível resolver o velho conflito entre a dedução e a indução (que é resolvido apenas por uma lógica da essência e por uma teoria do silogismo indutivo).

f) Finalmente, a logística choca-se com “paradoxos” lógicos que podem parecer sutis aos profanos, mas nem por isso deixaram de fazer correr muita tinta.

“Epimênides, que é cretense, diz que os cretenses são mentirosos”. É o velho sofisma megárico exercido pela engenhosidade dos pensadores gregos: espécie de adivinhação, pela qual o gênio dos sofistas estimulava a reflexão grega.

Se Epimênides mente, mente ao dizer que os cretenses são mentirosos; e os cretenses não são mentirosos. Mas, então, o próprio Epimênides não mente; ora ele diz que os cretenses dão mentirosos!... Logisticamente, como classificaríamos Epimênides? No conjunto de mentirosos ou no conjunto dos que  dizem a verdade? E, além do mais, a verdade das palavras de Epimênides não implica a sua falsidade? Como conciliar o paradoxo com a lógica pura? E esse paradoxo é perpétuo? Não é frequente encontrarmos mentirosos que confessam ter mentido? E jamais se sabe quando dizem a verdade; podem estar mentindo quando confessam ter mentido...

Em matemática, chama-se de “conjunto numerável” todo conjunto em que se pode fazer corresponder, termo a termo, os número que o compõem com o conjunto (infinito) dos números inteiros. Por exemplo: o conjunto dos números pares é evidentemente enumerável. Pode-se Assim comparar, ao conjunto dos números inteiros, o conjunto dos números primos, o conjunto dos números irracionais ou incomensuráveis, etc. É a “teoria dos conjuntos” de Cantor. Ora, a logística só pode operar com conjuntos enumeráveis; e ela se depara — tal como a própria matemática — com o paradoxo de Zermelo: “O conjunto dos conjuntos enumeráveis é um conjunto enumerável?” A maioria dos matemáticos transforma esse paradoxo, pura e simplesmente, numa espécie de axioma.

Voluntariamente, deixaremos de lado, neste local, a difícil discussão desses paradoxos (paradoxo de Burali-Forti, etc.).

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Notas:
[1] Também conhecida como lógica matemática (mathematical logic).
[2] Cf. supra, III, 8.
[3] Hans Reichenbach, "Introduction à la logistique", em Actualités scientifiques et industrielles, nº 794.
[4] Bertrand Russell, Principia mathematica, edição de 1925.
[5] Idem, p. XVII.
[6] Hans Reichenbach, loc. cit.
[7] Cf. Gonseth, in Actualités, p. 524.
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LEFEBVRE, H. Lógica formal. Lógica dialética. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 157-162.
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