por Paulo Ayres
Para uma abordagem naturalista acerca do trabalho (work), o tratamento dado a ele é o de uma categoria natural que, apesar de ser humanizado na sua condução social, pertence à esfera do ser natural. Para essa perspectiva, o trabalho (work) não é uma atividade que surge especificamente com o mundo humano, mas um dado presente na interação que algumas espécies de animais possuem com o meio ambiente. Obviamente que essa leitura não é tão grosseira a ponto de uniformizar as diversas atividades das variadas espécies, ignorando as suas peculiaridades, mas ela, de forma reducionista, concentra a diversidade num mesmo conceito que percorre o mundo natural e social, naturalizando o seu entendimento. Dito de outra forma, a chave para entender fundamentalmente o fenômeno do trabalho (work) é ampliada para o mundo animal e o instrumental teórico para captá-lo é dividido com as ciências biológicas e a filosofia da natureza.
Antes de adentrarmos para o campo mais estritamente filosófico, é
importante atentar para o fato de que a abordagem naturalista sobre essa
e outras questões tem bastante influência no senso comum e permeia
muitas de nossas conversas informais da vida cotidiana[1] (Alltagsleben).
Não é algo raro de se ver o apagamento das fronteiras entre as esferas
biológica e social em comentários do dia a dia. Popularmente é comum
ouvir coisas como “aquele gato roubou o bife”, mas, ora, roubar é um
atributo especificamente do mundo do ser social – há essa e muitas
outras transferências humanas ou, numa mão dupla, a biologização da
práxis. Nesse procedimento pode ocorrer tanto a animalização do ser
humano quanto a antropomorfização do mundo animal. Ou seja, a ideia de
que os animais também trabalham (work) tem um alcance maior
porque ela está na cadência superficial de projetar atributos humanos
para a natureza geral — e quando se trata da esfera animal, tão próxima a
nós, fica mais difícil avançar sobre a aparência fenomênica e
estabelecer pontos precisos de demarcação do que é especificamente
humano[2].
Se no senso comum, como era de se esperar, o naturalismo não necessita de atestados de validade, no âmbito acadêmico, ele sucumbe se não for constantemente reforçado. No tema aqui tratado, podemos citar Hannah Arendt e Jürgen Habermas como a ilustração de como a busca pela superação da teoria social marxiana e do seu eixo central, o trabalho (work), acabam conduzindo a uma abordagem naturalista da base econômica, renovando com outra roupagem (ou até involuntariamente) a ideia de natureza humana anistórica típica do liberalismo (cf. MÉSZÁROS, 2004, p. 103). E os dois são de fatos liberais, mesmo que progressistas em certo sentido ou, como no caso de Habermas (cf. DANNER, 2013), um apologista destacado do Estado Burguês de “Bem-Estar” (Welfare State): o que é o keynesianismo, por exemplo, se não um tipo de intervencionismo social-liberal? – ao contrário do que é comumente propagado pela concepção de mundo burguesa, J. M. Keynes está “longe de ser antiliberal”[3]. Arendt e Habermas pretendem corrigir Marx e ambos ocupam um lugar na evolução do naturalismo por não operar via redução simplista do determinismo mais vulgar, mas renová-lo ao fincar uma distinção entre as atividades humanas, separando o lado animal/instrumental do lado “puramente humano”. Por isso, nenhum destes dois autores é (predominantemente) um naturalista propriamente — ambos sendo até críticos do naturalismo determinista —, porém, os dois possuem uma abordagem naturalista da atividade produtiva e, embora Habermas não tivesse isso em mente ao defender o conceito de “naturalismo fraco” (HABERMAS, 2004, p. 31-ss), está aí uma boa denominação para a sua característica dualista.
Para Arendt (2007), a vita activa designa três atividades fundamentais do ser humano: o labor, a “fabricação” (work) e a “ação” (action), e a atividade mais básica da humanidade é o “labor”[4]. As necessidades imediatas são atendidas por essa atividade biológica enquanto pelo termo work ela pensa as obras humanas duradouras, para além dessa atividade vital e individual de primeira ordem: a técnica, a fabricação de um mundo artificial (artificial world of things). Já a “ação” se expressaria na atividade política propriamente dita. Com essa antinomia “dada”, o seu livro A condição humana pode ser visto como a tentativa de apresentar uma antropologia filosófica própria, mas não estabelecendo uma articulação processual entre o natural e o social (como o processo de humanização tratado por Marx e Engels). É por isso que em vez de um movimento de autoconstrução humana, sua obra faz menção a uma “condição humana”, no sentido de algo já estabelecido, próximo do “ser-no-mundo” (Dasein) heideggeriano — uma fonte da qual bebeu na sua formação filosófica (cf. SARTORI, 2011).
A divisão de Arendt, que fatia o ser humano como animal laborans (labor), homo faber (fabricação) e animal socialis (ação), estabelece uma diferenciação das atividades humanas não pelo tipo da relação em si (como as relações de produção e da superestrutura em Marx: humano-natureza e humano-humano), mas quanto à durabilidade do produto destes processos. Os meios de subsistência, nessa lógica, são separados como aqueles que são perecíveis e desaparecem no consumo (alimentos, por exemplo) e aqueles que “produzem um mundo artificial”, para além do ciclo vital da espécie (o trabalho do artesão, por exemplo). Arendt ainda conclui que estes dois aspectos da “condição humana” têm alguma relação com a política, mas promovem a esfera do “social” (a autora rebaixa esse termo para uma espécie de alicerce da política, esta a atividade intersubjetiva e pública por excelência) — e esta promoção do social é criticada por ela como um erro da era moderna em que a esfera da necessidade se identifica com o domínio público. Sobre o “animal laborans” ela diz:
E a verdade é que o emprego da palavra “animal” no conceito de animal laborans, ao contrário do outro uso, muito discutível, da mesma palavra na expressão animal rationale, é inteiramente justificado. O animal laborans é, realmente, apenas uma das espécies animais que vivem na terra — na melhor das hipóteses a mais desenvolvida (ARENDT, 2007, p. 95).
Naturalizado, resta ao “labor” arendtiano representar um caráter biológico na constituição humana – um “trabalho animalizado”. E essa distinção da autora pode ser considerada como uma operação naturalista da sua parte em relação à questão; mesmo que o seu conceito de “fabricação” (work) apareça como a face humanizada do trabalho. É por isso que a denúncia de Arendt contra a biologização/animalização da humanidade no período moderno acontece de forma curiosa: ela mesma biologiza/animaliza um aspecto ativo (e também humano) dos seres humanos para reclamar dos seus efeitos nas atividades humanas mais “nobres”. E isso a faz criticar em Marx o “ponto de vista puramente social do trabalho” (ibidem, p. 99); pois o social, como já foi dito, está imbricado no processo vital-natural para ela.
Se com Arendt há uma naturalização parcial do trabalho (work), Habermas tem uma abordagem que aprofunda esse rumo de duplicar a esfera humana de forma mais sofisticada. O filósofo, que representa a segunda geração da Escola de Frankfurt, também confronta o pensamento de Marx para construir uma teoria própria do desenvolvimento social. E até fica difícil exagerar o alcance da obra filosófica de Habermas: autor sistemático, o pensador foi mais longe ainda do que outros “pós-marxistas”[5]. Sua discordância do legado marxista nesse âmbito vai sendo apresentada desde a década de 1960 até atingir uma resposta mais acabada em Para a reconstrução do materialismo histórico, de 1977, e a Teoria do agir comunicativo, de 1981. A teoria da “racionalidade comunicativa” (kommunikative Vernunft) é um ambicioso edifício teórico que, assim como Marx, tem como objeto a compreensão da totalidade social de forma articulada. Contudo, se no autor do século XIX há a centralidade fundante-materialista do trabalho (work), no Habermas tardio há a centralidade intersubjetiva da comunicação[6].
O Habermas tardio, com a sua epistemologia neokantiana, pretende substituir a ontologia de matriz hegeliano-marxiana, de grande influência no estudo da sociedade nos dois últimos séculos, e estabelecer um paradigma da comunicação – em sintonia com a “virada linguística” proposta pela filosofia analítica, embora não filiada a ela. Para isso, o núcleo da obra de Marx e o suposto “paradigma do trabalho” são reduzidos ao “agir” e à “razão instrumentais” (instrumentelle Vernunft), relativos ao “sistema” (System) econômico e político que coloniza o “mundo da vida” (Lebenswelt) — este, por sua vez, é expresso pelo “agir” e “razão comunicativos” e é o fundamento transcendental da sociabilidade. E, para ele, esses dois tipos de ações racionais não se desenvolvem dialeticamente uma com a outra, mas possuem histórias próprias e diferenciadas (HABERMAS, 1990, p. 128) — provavelmente, ecos da distinção kantiana entre razão pura e razão prática; e esta é exatamente a explicitação máxima das antinomias do pensamento burguês (LUKÁCS, 1974, p. 126-168). Nesse raciocínio, para colocar a categoria da “razão comunicativa” e, consequentemente, o campo da linguagem, no centro da estruturação da totalidade histórico-social, Habermas tem que empurrar a categoria marxiana do trabalho (work) desta posição. E ele faz isso da única maneira que seria congruente com o seu sistema filosófico: biologizando o trabalho como algo pré-humano:
Podemos
falar de reprodução da vida humana, que chegou o homo sapiens, somente
quando a economia de caça é completada por uma estrutura social
familiar. Esse processo durou muitos milhões de anos; ele equivale a
substituição, de nenhum modo insignificante, do sistema animal de status
por um sistema de normas sociais que pressupõe a linguagem (ibidem, p.
116).
No “modelo apriorístico antropológico habermasiano” (BONFIM, 2000, p. 72), a linguagem integralmente constituída, a estrutura familiar, os papéis sociais e as normas sociais “levaram à forma de reprodução da vida especificamente humana” (HABERMAS, 1990, p. 118). A passagem do ser biológico para o ser social é intersubjetivamente alcançada e não objetivamente fundada. Deste modo, a grande debilidade do edifício habermasiano é a sua frágil fundamentação transcendental, que significa o nebuloso conceito genérico de “mundo da vida”: uma pseudo-universalidade porque mantém o mito individualista do indivíduo mônada como anterior à sociabilidade (LESSA, 2012a, p. 213), “deixa de lado as conexões íntimas entre o entendimento e o fazer” (GIANNOTTI, 1991, p. 23) e descobre um “miraculoso mecanismo línguístico” de reconciliação (MÉSZÁROS, 2004, p. 103).
Tanto em Arendt quanto em Habermas, o naturalismo (na questão do trabalho) funciona como a base para se erguer o politicismo[7]. De maneira distinta, os dois são politicistas até a medula.
E quanto à tradição marxista? Obviamente, por uma questão de coerência interna, ela é bastante impermeável a uma abordagem naturalista do trabalho (work). No entanto, é possível encontrar algum comentário aparentemente nesse sentido, mas geralmente não passa de um desacordo semântico. Por exemplo, na obra Labor and monopoly capital, de H. Braverman, uma referência no estudo das relações trabalhistas do capitalismo contemporâneo, é dito que animais também trabalham, mas, em seguida, fica claro que estão sendo chamadas de “trabalho” (work) distintas formas de intercâmbio com a natureza e a atividade especificamente humana é salientada na sua diferença ontológica e chamada de “trabalho humano” (human work) (BRAVERMAN, 1998, p. 31-40). Todavia, esse desacordo semântico também está presente em vários casos quando o naturalismo cede espaço para o seu extremo oposto, tão problemático quanto: o culturalismo[8]. Essa oscilação é a miséria da antropologia. Tanto de sua expressão científico-acadêmica (semiciência ou ciência fragmentária burguesa) como de sua correspondência filosófica[9].
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Notas:
[1] A vida cotidiana é uma área central na reprodução social (pelo seu nível direto na reprodução dos indivíduos) e ela abrange um reflexo ideal próprio, o pensamento cotidiano. Sobre a cotidianidade, cf. Lukács (1966, p. 33-81), Lefebvre (1991), Kosik (2002), Heller (2002) e Netto (2007).= = =
[2] Como exemplo da manobra biologista e “diálogo” entre o acadêmico e o senso comum, um pequeno texto apresentado como curiosidade na revista Mundo Estranho (que, junto com a Superinteressante, são as principais revistas massificadas de divulgação científica no Brasil): “Qual é a profissão mais antiga do mundo?” — o comentário é um primor de apagamento do salto ontológico que há entre natureza e sociedade. Além de fazer uma típica confusão entre trabalho (work) e emprego/profissão, chega a dizer que a primeira atividade humana é cozinhar e que “outras espécies de animais também coletam alimentos, caçam e se prostituem” (prostituição?!). Cf. Cordeiro, 2012.
[3] Cf. Mészáros (2002, p. 731). Ver também Merquior (1991), Mészáros (2004), Paniago (2012) e Lessa (2013).
[4] A divisão que Arendt faz entre work e labor não possui absolutamente nada a ver com a mesma divisão terminológica que pode ser feita na teoria social marxiana, cf. Heller, 2002, p. 204, nota 6.
[5] O termo “pós-marxistas” refere-se aqui aos autores cujas obras são tentativas de superar (aufheben) Marx. Tal busca é possível de se encontrar nas três tradições liberal-decadentes: irracionalismo moderno, racionalismo formal e neoiluminismo.
[6] “[...] a Teoria do agir comunicativo é o primeiro constructo filosófico, depois de Marx, capaz de fornecer uma concepção articulada de toda a reprodução da sociabilidade contemporânea. E capaz de o fazer – e daqui deriva seu enorme potencial ideológico do ponto de vista o mais conservador – a partir de uma categoria, o mundo da vida, que se propõe substituta do trabalho enquanto fundante do mundo dos homens” (LESSA, 2012a, p. 179).
[7] “O politicismo é intrínseco à ordem do capital: a ordem econômica é natural, a ordem política é o que resta para o homem configurar, e esta é decisiva, molda a convivência e realiza a justiça. A economia é [vista como] uma espécie de pano de fundo por si amorfo, ou melhor, uma plataforma virtual com várias possibilidades, que será decidida pela política” (CHASIN, 1999, p. 38).
[8] A posição culturalista aqui comentada, tal como outras formas de reducionismo (como o biologismo, o psicologismo, o economicismo etc.) é o “essencialismo social” (chamado por alguns de “sociocentrismo”) que – também – não consegue estabelecer o ponto preciso da dialética entre natureza e sociedade. Esta posição idealista está presente numa parte considerável dos sociólogos e antropólogos, que, no esforço de demarcar território para as ciências humanas frente às naturais (e geralmente menosprezando até a esfera econômica, “exata” demais para essa concepção), descolam a historicidade humana da natureza. O jovem Lukács se encaixa nessa vertente – embora a sua tendência antes da década de 1930 é ir gradualmente se depurando dessa abordagem.
[9] A antropologia filosófica está fadada à insuficiência unilateral (KOSIK, 2002, p. 243-250) – e isso vale mesmo para as suas expressões mais ricamente desenvolvidas, como em L. Feuerbach e (o último) J. P. Sartre, exemplos de naturalismo e subjetivismo, respectivamente.
AYRES, P. Classes fundamentais e classes de transição: Lukács e os fundamentos histórico-ontológicos das classes sociais. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – CCH-DFL/PGF, Universidade Estadual de Maringá (UEM). Maringá, pp. 22-27, 2018.
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