quarta-feira, 23 de maio de 2018

O pensamento fetichizado e a realidade



por György Lukács

O que há, então, de novo na filosofia do período imperialista? No seu conjunto, essa filosofia é o reflexo, no plano do pensamento, do imperialismo mesmo, isto é, do estágio supremo do capitalismo, que é também o mais rico em contradições. As contradições próprias à sociedade  capitalista, que determinam a evolução, a forma e o conteúdo da filosofia burguesa, aparecem no imperialismo sob uma forma objetiva levada ao extremo. É, entretanto, de interesse vital para a burguesia não reconhecer esse caráter fundamentalmente contraditório de seu pensamento. Dito de outra forma, quanto mais essas contradições são profundas e irreconciliáveis, tanto mais nítida é a ruptura — a causa mesma da crise da filosofia — entre o pensamento filosófico burguês e a evolução da realidade social. Mas o problema não consiste somente em uma contradição entre o pensamento burguês e a realidade social do imperialismo, pois acrescenta-se ainda uma outra contradição: a que subsiste entre a evolução efetiva e a superfície diretamente perceptível dessa realidade social. É essa contradição que explica que certos pensadores, que são, no entanto, de boa fé, nos deem uma representação completamente falseada da realidade social, simplesmente porque limitam ao exame dessa superfície diretamente perceptível.

Essa contradição constitui naturalmente um problemas constante para o pensamento burguês. Na sociedade capitalista, o fetichismo é inerente a todas as manifestações ideológicas. Isto quer dizer, sumariamente, que as relações humanas, que se mantêm na maior parte das casos, por intermédio de objetos, aparecem, para esses observadores enganados pela miragem superficial da realidade social, como coisas; as relações entre os seres humanos aparecem, portanto, sob o aspecto de uma coisa, de um fetiche. É o elemento fundamental da produção capitalista, a mercadoria que fornece o exemplo mais claro dessa alienação. Tanto quanto por sua produção como por sua circulação, a mercadoria é, com efeito, o agente mediador de relações humanas concretas (capitalista-operário, vendedor-comprador etc.), e é necessário o funcionamento de condições sociais e econômicas — isto é, de relações humanas — muito concretas e muito precisas para que o produto do trabalho do homem se torne mercadoria. Ora, a sociedade capitalista mascara essas relações humanas e as torna indecifráveis; dissimula cada vez mais o fato de que o caráter de mercadoria do produto do trabalho humano é apenas a expressão de certas relações entre os homens. Assim, as qualidades de mercadoria do produto (seu preço, por exemplo) dele se destacam e se tornam qualidade objetivas, como o gosto da maçã ou a cor da rosa. O mesmo processo de alienação ocorre no caso do dinheiro, no do capital e no de todas as categorias da economia capitalista: as relações humanas tomam o aspecto de coisas, de qualidade objetivas dos objetos. Quanto mais uma dessas categorias está distanciada da produção material efetiva, mais o fetiche está vazio, desprovido de todo o conteúdo humano. É evidente que, para o pensamento burguês, seu efeito de fetiche é apenas o mais profundo. Eis como a evolução do capitalismo no estágio imperialista não faz senão intensificar o fetichismo geral, pois, do fato da dominação do capital financeiro, os fenômenos a partir dos quais seria possível desvendar a reificação de todas as relações humanas, tornam-se cada vez menos acessíveis à reflexão média das pessoas.

Do ponto de vista da filosofia importa notar que esta intensificação do fetichismo exerce um efeito antidialético sobre o pensamento. Cada vez mais, a sociedade se apresenta ao pensamento burguês como um amontoado de coisas mortas e de relações entre objetos, em lugar de nele se refletir como é, ou seja, como a reprodução ininterrupta e incessantemente cambiante de relações humanas. O clima mental assim criado é muito desfavorável para o pensamento dialético. O parasitismo próprio ao estágio imperialista só intensifica essa evolução. A maior parte dos intelectuais encontra-se, com efeito, muito afastada do processo de trabalho efetivo que determina a estrutura verdadeira e as leis de evolução da sociedade; estão tão profundamente ajustados na esfera das manifestações secundárias da produção social — que consideram aliás como fundamentais — que a descoberta das relações humanas mascaradas pela alienação, torna-se para eles coisa impossível.

Em definitivo, é tão grande o abismo entre a realidade e o pensamento, que só reflete suas manifestações superficiais, que toda transformação na evolução social se apresenta para o pensamento sob o aspecto de uma ruptura inesperada e apenas pode provocar uma série contínua de crises. É evidente que, se falamos de uma crise constante da filosofia no estágio do imperialismo, é necessário distinguir várias etapas dessa crise. Até 1914, a crise da filosofia é de natureza latente; tornar-se-á evidente apenas depois de 1918.

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LUKÁCS, G. Existencialismo ou marxismo? Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979, p. 27-30.
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