sábado, 3 de janeiro de 2015

A sociedade como técnica da razão: um ensaio sobre Durkheim


 
por José Arthur Giannotti
 
I – A implantação da Sociologia como Ciência positiva não se faz sem pressupostos. Seria ingênuo pensar o sociólogo como garimpeiro das coisas, que se debruça sobre elas distinguindo com argúcia o ouro do cascalho. Não seria ao menos necessário estabelecer o sistema de projeção e o conjunto dos critérios? Desde logo percebemos que Durkheim se situa no espaço desenhado pela imbricação do positivismo e do kantismo. De Comte, se não adota a concepção de história e do progresso, nos termos formulados pelo filósofo, por certo não deixa de tomar a doutrina da ciência e do fenômeno em geral; de Kant aprende a situar o fenômeno social no obscuro plano da moralidade. É nosso intento traçar o mapa dessas pressuposições e sobretudo salientar como não se colocam de modo inerte num campo pré-científico, que pudesse ser isolado do corpo das formulações da Ciência, mas atuam insidiosa e insistentemente em todos os momentos de sua Sociologia, constituindo os bastidores em relação aos quais se tece a trama do seu discurso.

II – A prioridade concedida ao problema da definição inicial, cujo gesto circunscreve o campo onde deve exercer-se a investigação científica, já indica uma noção muito definida de experiência. Esta não se faz desprovida de um quadro de referências preciso, mas amparada por normas capazes de separar, de um lado os fenômenos que devem cair sob o olhar do cientista, de outro, aqueles que necessariamente fogem a ele.

“Nunca tomar como objeto de investigação a não ser um grupo de fenômenos previamente definidos por certos caracteres exteriores que lhes são comuns a incluir na mesma investigação todos aqueles que respondam essa definição”[1]. Essa regra, contrapartida positiva da célebre regra que postula a consideração dos fenômenos sociais como coisas, determina a primeira condição de observabilidade. Diante da multiplicidade caótica dos fenômenos urge possuir um critério que os agrupe num mesmo conjunto, que distinga um campo específico da realidade. Isto evidentemente para não cair no erro grosseiro da confusão de gêneros. Devemos, além disso, desconfiar das classificações por assim dizer naturais, daquelas implícitas das denotações das palavras, feitas pelo senso comum para o uso cotidiano. Se a explicação consiste na comparação, como diz a primeira página do Suicídio, é preciso estar seguro de que os fatos a serem comparados sejam homogêneos e pertençam à mesma ordem da realidade. Ora, a necessidade da comparação só se faz sentir se previamente o esforço do cientista for dirigido para o estabelecimento de leis invariantes, isto é, se a proposição científica brotar da indução que, considerando cada fato duma perspectiva previamente determinada, é capaz de separar o aspecto comum a fim de formulá-lo numa lei geral. Este modo de fazer ciência supõe, primeiramente, um distanciamento do sujeito em relação ao objeto e ainda uma separação entre eles de tal ordem que torna impossível a profunda imbricação de ambos. Pouco importa que possa reconhecer que o sujeito está para o objeto e vice-versa, porquanto desde logo o cientista os separa em unidades autônomas, uma capaz de representar a outra, de sorte que a representante, seja ela sujeito individual ou social, liga-se com a representada na base duma peculiar faculdade de espelhamento. Se na verdade certos textos de Durkheim sugerem sua adesão à teoria, desenvolvida por J. S. Mill, da constituição do sujeito e do objeto a partir de um estoque neutro de representações comuns, a solidariedade da origem não impede o funcionamento diferente. Para esta teoria da ciência, o sujeito sobrevoa a realidade, retrata-a de seu ponto de vista. No máximo é possível admitir perturbações passageiras causadas pela fraqueza do indivíduo e de sua ótica imperfeita. De direito, os fatos sociais devem ser tratados como coisas, isto é, como objetos que se dão indiferentemente ao olhar neutro e cauteloso do sujeito.

Constitui a primeira tarefa desse sujeito ideal estabelecer uma classe de equivalência: escolhida uma propriedade estratégica, agrupam-se os fenômenos semelhantes e descartam-se os dessemelhantes. A semelhança, relação reflexiva e simétrica, ganha, graças à predeterminação do aspecto, a transitividade que lhe é necessária par a selecionar no universo o conjunto dos mesmos indivíduos. A investigação inicia-se, desse modo, pela escolha dum critério capaz de reunir o conjunto dos fenômenos a serem estudados. Mas, sob a aparência desse procedimento ingênuo e indispensável, esconde-se uma tomada de posição de enormes consequências para a compreensão do que venha a ser a própria coisa. A definição não é apenas verbal, possuindo um peso ontológico determinado. É bem verdade que Durkheim insiste no caráter inicial dessa definição como em sua distância em relação a uma definição da essência.

Ao definir a religião como “um sistema solidário de crenças e de práticas relativas às coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que unem numa mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a ela aderem[2], não se propõe evidentemente estipular a essência da religião, pois isto tornaria inútil toda e qualquer investigação, mas apenas uma via de acesso para ela[3]. O peso ontológico da definição inicial não se situa, pois, em seu conteúdo formulado, naquilo que previamente diz a respeito da religião, mas na maneira pela qual agrupa e isola o fenômeno, excluindo de seu campo, por exemplo, todos os fenômenos messiânicos que não se fixam numa igreja. Apesar de sua fórmula proposicional sem variáveis, a definição opera como uma relação de equivalência: X é igual a Y se possuir os caracteres estipulados.

O que importa uma definição desse tipo? Antes de tudo, na pressuposição de que o fato, o fenômeno, esteja individualmente dado na experiência do sujeito, por mais complexo que esta seja. Estabelecido o critério que o separe da multiplicidade caótica das coisas, o fato em questão é experimentado como uma unidade valendo de per si. Isto quer dizer que a definição serve apenas de auxiliar transparente, a fim de que o sujeito investigador possa debruçar-se sobre o fato constituído como um conjunto de elementos semelhantes. No primeiro instante o fenômeno aparece de um só golpe como um conjunto isolado de seu complementar onde passam a ser incluídos todos os outros fenômenos que não caem na definição. O que vale neste nível para a semelhança dos fenômenos vale para a semelhança das ideias e convém citar um texto de Durkheim referente a essa última: “Duas ideias são propriamente distintas graças aos pontos em que se sobrepõem. Os elementos que se diz serem comuns a uma e a outra estão separadamente numa e noutra; não os confundimos separando-os. É a relação sui-generis que se estabelece entre elas, a combinação especial que formam em virtude dessa semelhança, os caracteres particulares dessa combinação que nos dão a impressão de similitude. Combinação, entretanto, supõe pluralidade”[4]. A posição é clara, cada suicídio, por exemplo, constitui um acontecimento particular e insubstituível; a comparação feita pelo cientista não destrói sua singularidade, apenas o integra numa classe de semelhança, na medida em que vê em todas essas mortes traços comuns. Está longe do ato de comparar a possibilidade de amalgamar indivíduos ou de criar outras substâncias, sua função reside exclusivamente na circunscrição duma série de fenômenos.

Qual é porém o critério que rege a comparação? É óbvio que qualquer propriedade das coisas pode servir de base duma classe de equivalência, de sorte que todo problem reside na sua escolha. O cientista porém não trabalha a partir do nada como uma divindade criadora, o fato de herdar uma linguagem já o encaminha para uma classificação das coisas. A despeito da desconfiança que de ve ter em relação à linguagem, na prática, sua definição inicial toma como ponto de partida o conceito e a palavra vulgares[5]; aqui todo seu esforço visa eliminar as ambiguidades. Isto se faz não tanto pela inércia do pensamento científico, mas fundamentalmente porque seria descabido um traço permanente qualquer não possuir uma razão. “A menos que o princípio de causalidade seja uma palavra vazia, quando caracteres determinados se encontrem identicamente e sem exceção em todos os fenômenos duma certa ordem, podemos estar seguros de que, duma maneira estrita, respeitam à natureza desses últimos, sendo-lhes solidários”[6]. É indiferente desse modo a escolha da primeira propriedade definidora, porquanto todas as propriedades permanentes são solidárias entre si e, o que é mais importante, reportam-se a um fundo comum, responsável pela igualdade observada. Esta surge assim como produto, cuja emergência se faz a partir dum impulso mais profundo, constituindo-se ela própria num efeito comum que manifesta uma causa também comum. Por isso é que a sociologia não se resume numa taxinomia que se contentasse em agrupar os fenômenos em classes de equivalência. Cumprida essa primeira tarefa, começa propriamente o trabalho do cientista, quando este toma a semelhança como índice ou sintoma duma causa oculta, do fator latente responsável pela reiteração do mesmo fenômeno.

[Continua. Ensaio completo no PDF]
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Notas:
[1] Les règles de la méthode sociologique (R), Paris, PUF, 1950, p. 35.
[2] Les formes élementaires de la vie religieuse (F), 4. ed. Paris, PUF, 1960, p. 65.
[3] R. p. 42.
[4] Sociologie et philosophie (So Ph), Paris, PUF, 1950, p. 19.
[5] R., p. 37, nota.
[6] R., p. 42.
[7] Le suicide (S), Paris, PUF, s.d., p. 5.
[8] S, p. 8.
[9] S. p. 143.
[10] Paul Lazarsfeld, Philosophie des sciences sociales, Gallimard, p. 267.
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GIANNOTTI, J. A. “A sociedade como técnica da razão: um ensaio sobre Durkheim”. In: Estudos Cebrap, São Paulo, n. 1, p. 48-98, 1971.
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