segunda-feira, 20 de junho de 2022

Teia de tautologias: a miséria do “anti-historicismo”


por István Mészáros

A passagem mais famosa em que Marx resume sua posição sobre a dialética entre a base e a superestrutura é a seguinte:
Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as relações jurídicas, bem como as formas de estado, não podem se explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais da existência, em suas totalidades, condições estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e dos franceses do século XVIII, compreendia sob o nome de “sociedade civil”. Cheguei também à conclusão de que a anatomia da sociedade burguesa deve ser procurada na economia política. [...] Na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. [...] A transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura. Quando se consideram tais transformações, convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção — que podem ser verificadas fielmente com a ajuda das ciências físicas e naturais — e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas, sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim. Do mesmo modo que não se julga o indivíduo pela ideia que de si mesmo faz, tampouco se pode julgar uma tal época de transformações pela consciência que ela tem de si mesma. É preciso, ao contrário, explicar essa consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade. Eis por que a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir.[1]
Em primeiro lugar, deve-se grifar a importância da observação de Marx de que “convém distinguir sempre” entre as transformações materiais e as formas ideológicas. Pois, surpreendentemente, com frequência as interpretações não apenas passam completamente ao largo da questão, mas conseguem transformar as visões de Marx em seu exato oposto. Contudo, uma leitura atenta deixa muito claro que o objetivo de Marx é:
  • 1. focar-se na distinção em si, enfatizando a importância vital de manter constantemente em mente as diferenças qualitativas nela implícitas;
  • 2. insistir que a superestrutura não pode ser determinada com a mesma precisão que a estrita “transformação material das condições econômicas de produção”;
  • 3. indicar que como há uma interação dialética entre a superestrutura e a base material — e que, portanto, ambas afetam uma à outra de maneira profunda, assim constituindo conjuntamente um todo orgânico —, por implicação: o desenvolvimento geral de todo o complexo não pode ser “verificado fielmente com a ajuda das ciências físicas e naturais”.
De modo estranho, no entanto, a passagem é interpretada como se Marx tivesse dito: “convém nunca distinguir entre a transformação material das condições econômicas de produção e as formas ideológicas”. Quando tais qualificações vitais são desprezadas, está aberto o caminho para a construção de um edifício totalmente irreconhecível do marxismo, de acordo com uma visão de ciência tipo-fetichista. O resultado necessário desse tipo de leitura equivocada é uma distorção reducionista, a despeito do intento subjetivo por trás dela: seja o objetivo o de produzir algum “renascimento” estruturalista/marxista ou, ao contrário, aquele de suprir a agradecida plateia das expectativas culturais/políticas da burguesia com ainda outra “refutação final” do marxismo e seu alegado “historicismo”.

Podemos ver as  consequências de se identificar a concepção marxiana com um modelo de ciência natural no celebrado ataque de Popper ao marxismo. Em A miséria do historicismo[2] — título que, segundo o autor, “teve a intenção de aludir ao livro de Marx, A miséria da filosofia[3] — ele orgulhosamente anuncia que “consegui[u] elaborar uma refutação do historicismo”[4]. E é de tal maneira que se desenrola a linha de raciocínio dessa tão aclamada “refutação”:
1. O curso da história humana é fortemente influenciado pelo crescer do conhecimento humano. (a verdade dessa premissa tem de ser admitida até mesmo por aqueles para quem as ideias, inclusive as ideias científicas, não passam de meros subprodutos de desenvolvimentos materiais desta ou daquela espécie.)
2. Não é possível predizer, através de recurso a métodos racionais ou científicos, a expansão futura de nosso conhecimento científico. (Essa asserção pode ser logicamente demonstrada por meio de considerações que são feitas adiante.)
3. Não é possível, consequentemente, prever o futuro curso da história humana.
4. Significa isso que devemos rejeitar a possibilidade de uma história teorética, isto é, de uma ciência social histórica em termos correspondentes aos de uma física teorética [grifos de Popper]. Não pode haver uma teoria científica do desenvolvimento histórico a servir de base para a predição histórica.
5. O objetivo fundamental dos métodos historicistas está, portanto, mal colocado; e o historicismo aniquila-se.[5]
Como podemos ver, toda a “refutação” parte da invenção de um boneco de palha [straw-man] que depois pode ser nocauteado ou “aniquilado” com a maior facilidade. Esse prestativo boneco de palha é produzido pela substituição do complexo modelo dialético de base e superestrutura por uma caricatura absurdamente reducionista, segundo a qual as ideias “não passam de subprodutos de desenvolvimentos materiais”. Está é, obviamente, uma forma bastante grosseira de evitar a questão, posto que o autor pré-fabrica para seu próprio uso um alvo conveniente, que é “feito sob medida” para a refutação circularmente antecipada.

E esse é apenas o perímetro externo da teia de tautologias a partir da qual a “refutação” popperiana é construída. O próximo círculo é tecido ao separar, por definição — e, é claro, de forma arbitrária —, a produção do conhecimento das condições sociais e históricas de sua produção, de modo que se possa opor esse conhecimento artificialmente desencarnado às determinações e desenvolvimentos sociais/históricos.

Para ser exato, esse tipo de conhecimento desencarnado é imune às influências sociais e à possibilidade de previsão. Entretanto, ao definir circularmente o conhecimento de um modo que corresponda aos requisitos da “refutação” autoantecipadora, a realidade do conhecimento — com as condições reais de sua produção — devem desaparecer sem deixar rastros. Pois, no mundo real, o desenvolvimento do conhecimento é dialeticamente entrelaçado com os processos sociais, e é uma questão de grau quanto eles (a) influenciam e (b) são previsíveis no que se refere ao impacto recíproco que exercem um sobre o outro.

Portanto, enquanto é de fato impossível prever o aparecimento desse ou daquele item particular de conhecimento em um determinado momento na história — assim como é impossível prever os eventos particulares pelos quais uma tendência social-histórica afirma a si mesma — não é de modo algum impossível apreender a conexão entre a emergência e o posterior desenvolvimento de um certo tipo de conhecimento e as determinações sociais-históricas de amplas bases das quais tanto o conhecimento científico de uma era quanto o quadro institucional/instrumental da formação social correspondente se articulam em seus detalhes múltiplos.

Significativamente, os dois qualificadores são omitidos das deduções de Popper. O grau em que o desenvolvimento do conhecimento pode ou não ser previsto torna-se uma categórica negação da possibilidade de sua previsão. Ao mesmo tempo, não é feita nenhuma tentativa de especificar o grau em que o desenvolvimento “não previsível” do conhecimento — que, em si, está sujeito às “necessárias qualificações dialéticas” — invalida a previsão social/histórica em geral. (Em outras palavras, o que é rudemente distorcido aqui é que, como o desenvolvimento do conhecimento de fato é previsível até certo grau no sentido há pouco indicado, e como o avanço do conhecimento é, em si, apenas um dos fatores envolvidos no desenvolvimento social, a previsão histórica é de fato possível em um grau bastante significativo.) Soa muito melhor — e sustenta mais convincentemente a afirmação “consegui elaborar uma refutação do historicismo” — se se puder declarar categoricamente que, posto que o crescimento do conhecimento é imprevisível, por uma questão de impossibilidade lógica, portanto, a predição histórica é a priori impossível em outra que não a mais míope das escalas. De todo modo, o problema é que a omissão demasiadamente entusiástica das qualificações necessárias torna falaciosa a “refutação”/dedução popperiana, mesmo em seus próprios termos de referência.

Mas talvez a parte mais reveladora da teia popperiana de tautologias seja seu círculo interno e “prova derradeira”, como enunciado no ponto (4). Segunda esta, “não pode haver uma teoria científica do desenvolvimento histórico” porque nenhuma concepção histórica pode almejar ser como a “física teorética”. Aqui, mais uma vez, uma medida arbitrária é assumida por definição como o princípio orientador autoevidente de todo discurso racional sobre a ciência e a história, e, portanto a “refutação” é consumada ao concluir circularmente que o “historicismo” não equivale à medida arbitrariamente assumida.

Na verdade, a medida supostamente autoevidente é apenas uma peneira feita de enormes buracos — de fato tão grandes que até mesmo boa parte da ciência natural passaria por eles, sem mencionar a totalidade da ciência social — unida por nada mais firme e sólido que uma hostilidade ideológica cruzada [crusading] em relação ao marxismo.

O título de outro livro cruzado de Popper — A sociedade aberta e seus inimigos[6] — fala por si só a esse respeito. Qualquer coisa que não se encaixe no padrão de apologeticamente remendar e encobrir as rachaduras da ordem estabelecida — especialmente a ideia do automanejo da sociedade socialista pelos produtores associados, em conformidade com um plano geral que eles estabelecem para si mesmos — é categoricamente rejeitada ao ser rotulada de “holismo” e “perfeccionismo pré-científico”. Podemos ver o interesse ideológico sob a superfície desse exorcismo-por-rotulação nas seguintes linhas:
Razão adicional para considerar o enfoque holista da ciência social como enfoque pré-científico está em que contém um elemento de perfeccionismo. Compreendendo que não podemos transformar a terra em um céu, mas que podemos melhorar as coisas um pouquinho, também compreendemos que as coisas são passíveis de melhora gradual, pouco a pouco.[7]
A lógica desse procedimento “científico” é realmente reveladora. Primeiro, a ideia de melhorar as condições de vida por meio de grandes mudanças na sociedade é transformada em “um elemento de perfeccionismo” (e ipso facto condenado ao inferno como“pré-científico”). Em seguida, o alegado elemento do perfeccionismo é retoricamente igualado ao desejo de se ter, indiscriminadamente, “a terra em um céu” (e rejeitado como uma autoevidente absurdidade pela força da imagem em si). Tendo, pois, limpado o terreno — não por prova ou raciocínio, mas por retórica e rotulação — o autor pode agora apresentar a alegação totalmente insustentável (objetivo subjacente de todo exercício) segundo a qual “só podemos melhorar as coisas um pouquinho”. Por fim, o arbitrariamente assumido “pouquinho” estipula o único “método científico”concebível apropriado ao seu objeto: o “pouco a pouco” da “engenharia social” apologética confinada à manipulação tecnológica.

Naturalmente, a afinidade para com essa postura cruzada entorpece a sensibilidade filosófica daqueles que deveriam saber melhor — pelo menos no nível da lógica formal. Em vez disso, o verdadeiro caráter da “refutação” popperiana — o fato de que seu núcleo central é uma tautologia autorreferencial (o modelo mítico da “física teorética”), envolta numa dupla circularidade, como vimos anteriormente — continua escondido, e a iniciativa é aclamada como sabedoria derradeira. Portanto, graças em larga medida ao fetiche da “ciência” que é usado em suas “refutações” circulares, a gritante hostilidade ideológica — atrelada à falácia lógica — pode satisfatoriamente deturpar a si mesma como “a lógica da descoberta científica”.

De modo característico, até mesmo a especulação mais rebuscada é seriamente contemplada nesse “discurso científico”, contanto que prometa produzir alguma munição útil contra o adversário ideológico. Dessa forma, lemos em A miséria do historicismo:
Há, por exemplo, uma tendência para a “acumulação de meios de produção” (como diz Marx). Dificilmente esperaremos, porém, que ela persista dentro de uma população que decresça rapidamente e esse decréscimo talvez esteja na dependência de condições extraeconômicas, como, digamos, de invenções ou do direto impacto fisiológico (e talvez bioquímico) de uma zona industrial. Há, sem dúvida, a possibilidade de atuação de um número enorme de condições; e, para termos como examinar essas possibilidades, quando buscamos as verdadeiras condições de uma tendência, teremos sempre de tentar imaginar condições sob as quais a tendência em pauta desapareceria. Isso, contudo, é exatamente o que o historicista está impedido de fazer. Ele acredita firmemente em sua tendência favorita e não pode sequer pensar em condições sob as quais essa tendência deixaria de existir. A miséria do historicismo, seria cabível dizer, é uma pobreza de imaginação.[8]
Aqui, mais uma vez, é-nos apresentada uma caricatura de Marx como um materialista mecânico e um determinista grosseiro. Pois, a rigor, Marx não fala genericamente sobre uma “acumulação de meios de produção”, mas define com grande precisão as condições objetivas da tendência historicamente identificada em termos de “composição orgânica do capital”, de “taxa decrescente de lucro”, de “centralização e concentração de capital” etc. O que ele “falha” em fazer, obviamente, é suprir os apologetas do capital com uma lista de “condições” grotescamente extravagantes (de maneira autocongratulatória elogiada por Popper como “imaginação”), que invalidariam a priori sua preocupação com as contradições internas do capital, prefigurando o colapso do sistema.

Certamente, Popper deve saber que se a ciência perdeu seu tempo especulando sobre possíveis “invenções” e sobre todas as “possibilidades concebíveis”, bem como sobre as contrapossibilidades, nunca chegaríamos a levantar um dedo sequer para a realização de qualquer tarefa, pensando que “possivelmente” todas estariam fadadas ao fracasso como resultado de alguma contracondição interveniente “concebível”. Afinal, assim como a atividade prática da vida real em geral — sujeita a uma multiplicidade de restrições objetivas —, a ciência, também, não está preocupada com com a “má infinitude” das extravagantemente abstratas “possibilidades concebíveis”, mas sim com as possibilidades e probabilidades concretas, definidas em termos de sua de sua relevância mais ou menos direta mas pelo menos alguma, para os problemas em questão.

Portanto, rejeitar Marx numa era de população dramaticamente crescente como um historicista “que padece de uma deficiência de imaginação”, por sua suposta falha em falar um século antes sobre uma “população que decresce rapidamente” como a sólida contracondição de sua própria teoria, é algo espantoso. Pois, mesmo se desprezarmos quanto os próprios contraexemplos de Popper erram seu alvo, permanece o fato de que a única forma de satisfazer as condições estipuladas pelo autor — a saber, diluir a validade das tendências sociais/econômicas identificadas, evocando possíveis “invenções” e “incontáveis condições extraeconômicas possíveis”, bem como outras contracondições “imaginadas” “concebíveis” — é não ter nenhuma teoria crítica sobre as reais tendências sociais/econômicas. Mas, é claro, esse é precisamente o propósito do tão celebrado empreendimento popperiano.

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Notas:
[1] Karl Marx, Contribuição à crítica da economia política (trad. Florestan Fernandes, São Paulo, Expressão Popular, 2008), p. 47-8.
[2] Karl Popper, A miséria do historicismo (trad. Octany S. da Mota e Leonidas Henberg, São Paulo, Edusp, 1980). Publicado em 1957.
[3] Ibidem, p. 6.
[4] Ibidem, p. 5.
[5] Idem.
[6] Karl Popper, A sociedade aberta e seus inimigos (trad. Milton Amado, Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia. Edusp, 1987). Publicado em 1945.
[7] Karl Popper, A miséria do historicismo, cit., p. 87, ênfase de Popper.
[8] Ibidem, p. 69.
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MÉSZÁROS, I. Estrutura social e formas de consciência II: a dialética da estrutura e da história. Trad. Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 39-44.
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Um comentário:

  1. Excelente texto!
    Vim pela live do Ian Neves com o Pedro Ivo lendo a obra de Popper.

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