terça-feira, 26 de abril de 2022

A necessidade da autorrenovação metodológica


por István Mészáros
 
As mesmas considerações se aplicam à avaliação da filosofia marxiana, não obstante sua importância representativa quanto à incorporação intelectual de uma fase mais avançada do desenvolvimento histórico. Sua reivindicação de ser o mais abrangente sistema vivo de pensamento não é julgada com base na novidade histórica de seus princípios centrais tais como inicialmente articulados na obra de seu criador. É decidida sobretudo por conta de sua contínua capacidade para oferecer — apesar dos numeroso reveses e reversões sociais e das revisões teóricas correspondentes — um quadro para a crítica radical tendo em vista uma reestruturação fundamental da sociedade em sua totalidade.

O radicalismo metodológico da abordagem marxiana e sua importância para a época em que se originou são determinados pela profunda crise de uma ordem social cujos problemas só podem ser solucionados por uma reestruturação radical da própria ordem social, nas suas dimensões fundamentais. Na falta de uma tal solução, pode-se apenas manipular, “pouco a pouco”, as contradições socioeconômicas em questão e suas manifestações ideológicas, adiando temporariamente a erupção da crise iminente sem, no entanto, instituir um remédio estrutural adequado.

Naturalmente, a realização de uma reestruturação radical da sociedade é inconcebível como um “acontecimento” repentino e irreversível. Ela deve ser encarada, em vez disso, como um processo auto-renovador, mantido por um período histórico tão longo quanto persistir sua necessidade em relação a determinadas tarefas e adversários ideológicos bem identificados. Quando deixa de existir a necessidade desta reestruturação, “do topo à base, de toda a sociedade”, inevitavelmente a abordagem marxiana perde sua importância e significado como uma irreprimível “filosofia viva” e se transforma no monumental documento histórico de uma época passada, como ocorreu com outros grandes sistemas “totalizantes” antes dela.

Desse modo, paradoxalmente, a concepção marxiana só pode se tornar vitoriosa com a condição de “falir e deixar de ser a filosofia viva” — isto é, o quadro orientador abrangente — das forças mais progressistas da época.

Isto pode soar perturbador para aqueles que estão cativados pela ideologia do cientificismo e querem transcender, de modo imaginário, toda ideologia. Entretanto, as consequências de se adotar o ponto de vista destes últimos são que se distorcem a origem e as características inerentes da abordagem marxiana, de modo a se adequar à preconcepção cientificista, e tornam completamente incompreensíveis os desenvolvimentos subsequentes da teoria original, realizados pelos seguidores de Marx. Passam a ser considerados “interpretações errôneas”, “desvios ideológicos”, “traições sociais” e assemelhados. O problema. todavia, é que caracterizações deste tipo, mesmo se descritivamente corretos, limitam-se a colocar rótulos nos desenvolvimentos em questão, sem tentar compreender seus complexos determinantes e funções sociais no contexto vivos das novas condições históricas.

Na realidade, o quadro marxiano — em suas origens e transformações posteriores — é ininteligível sem um pleno reconhecimento do papel ideológico vital que ele sempre teve (e tem) de desempenhar em face de outras ideologias. Por isso nunca se deve esquecer que as “três fontes do marxismo” — a filosofia clássica alemã, a economia política inglesa e o socialismo utópico — não eram apenas fontes de que o marxismo tinha de ser apropriar positivamente. Eram, ao mesmo tempo, os três principais adversários ideológicos da nova concepção, na época de sua formulação original por Marx.

Elas foram elevadas a tal posição-chave no novo quadro conceitual não porque representassem — pois não representavam —o outro extremo do espectro ideológico, e sim porque, além de seus méritos intrínsecos, exerciam uma influência muito desorientadora sobre o desenvolvimento do movimento da classe trabalhadora, influência da qual este último tinha de ser emancipado. Em outras palavras, eram identificadas como os interlocutores e adversários ideológicos mais importantes não no plano abstrato, enquanto potenciais opostos teóricos ao marxismo, mas precisamente enquanto sistemas vivos de pensamento, cujo impacto tangível sobre o movimento socialista não poderia deixar de ser desafiado. As mudanças subsequentes na avaliação dessas “três fontes”, ainda durante a vida de Marx, sem mencionar o desenvolvimento das abordagens marxistas no final do século XIX e no século XX, só se tornam significativas ante o pano de fundo das novas exigências ideológicas do movimento internacional do trabalho, e não como “descobertas teóricas” fictícias.

É instrutivo recordar, quanto a este ponto, a mudança significativa na opinião de Marx sobre Proudhon, que foi de uma empolgante simpatia à completa hostilidade. Do mesmo modo, a importância de um diálogo crítico com o socialismo utópico já era muito menor no início da década de 1850. Na verdade, mais tarde, em consequência de uma confrontação prática com os seguidores de Proudhon, que “tagarelam sobre ciência e nada sabem”, que “na verdade preconizam a ciência burguesa ordinária, apenas proudhonisticamente idealizada”,[1] Marx resumiu sua posição em relação às figuras de destaque do pensamento utópico francês e alemão — em contraste com Proudhon, a quem rejeitava neste contexto como “um filisteu utópico” — dizendo que, “nas utopias de um Fourier, um Owen etc., há o pressentimento e a expressão imaginativa de um mundo novo”.[2]

Também em relação a Hegel, a mudança — em um sentido diametralmente oposto ao que ocorreu quanto a Proudhon, de uma avaliação negativa mais sumária nas primeiras obras até a avaliação altamente positiva nos Grundrisse e em O capital, não obstante algumas lendas completamente infundadas afirmando o contrário — é inseparável de algumas controvérsias ideológicas “internas” contra Lange e outros. Lange, autor de A questão trabalhista: seu significado para o presente e para o futuro (1865), que assumiu o papel de um “conciliador” no movimento alemão dos trabalhadores — e que, segundo Marx, “quer agradar a todos os lados” —,[3] exerceu grande influência sobre o movimento da classe trabalhadora alemã, defendendo uma posição dogmaticamente anti-hegeliana e antidialética (as duas coisas estão frequentemente juntas). Como Marx escreveu mais tarde:

Herr Lange me elogia em voz alta, mas com o objetivo de tornar a si mesmo importante. [...] O que o mesmo Lange diz a respeito do método hegeliano e da aplicação que faço dele é realmente infantil. Antes de tudo, ele não entende nada do método de Hegel, e depois em consequência disso, muito menos da aplicação crítica que faço dele. [...] Herr Lange se admira que Engels, eu e outros levemos a sério esse cachorro morto que é Hegel, enquanto Büchner, Lange, dr. Dühring, Fechner etc., acham que já o enterraram — coitado — há muito tempo.[4]

Exemplos deste tipo poderiam ser multiplicados, desde o contexto ideológico historicamente determinado de A sagrada família, A ideologia alemã e A miséria da filosofia até o Anti-Dühring de Engels. No que se refere à última obra, o próprio Engels tornou absolutamente claro que não foi a substância intelectual do livro do dr. Dühring que o levou a escrever sua extensa refutação crítica a ele, mas o fato de que as pessoas estavam se “preparando para difundir esta doutrina de forma popularizada entre os trabalhadores”.[5]

Tendo em mente desenvolvimentos teóricos e político-intelectuais como esses, fica claro que, embora os amplos parâmetros metodológicos de todos os grandes sistemas de pensamento sejam estabelecidos para todo um período histórico, devem, mesmo assim, se redefinir constantemente como sistemas vivos, de acordo com as exigências práticas de suas funções ideológicas mutáveis. Devem entrar em diálogo crítico uns com os outros e, assim fazendo, inevitavelmente levantam a problemática sócio-historicamente específica — na verdade, em princípio “estranha” — de seus adversários ideológicos, ainda que apenas para “superá-los”, tanto na teoria quanto no terreno prático-organizacional das confrontações sociais reais.

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Notas:
[1] Marx, carta a Kugelmann, 9 de outubro de 1866.
[2] Ibid.
[3] Marx, carta a Engels, 11 de março de 1865.
[4] Marx, carta a Kugelmann, 27 de janeiro de 1870.
[5] Engels, Anti-Dühring: Herr Eugen Dühring's revolution in science, Londres, Lawrence & Wishart, 1975, p. 9.
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MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. Trad. Magda Lopes e Paulo Cezar Castanheira. 4ª reimpr. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 307-319.
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