quinta-feira, 24 de março de 2022

O racionalismo formal e a democracia formal


por Paulo Ayres

Este ano o livro O estruturalismo e a miséria da razão completa 50 anos. É tempo de celebrar esse clássico da bibliografia marxista de combate, indicando a sua importância na batalha das ideias. Contudo, é tempo também de mostrar o seu aspecto insuficiente, buscando o ponto onde Carlos Nelson Coutinho deixa escapar uma classificação mais precisa da filosofia burguesa contemporânea. Essa insuficiência classificatória, não sem uma dose de ironia, irá se expressar no próprio caminho político do pensador marxista, que assume, posteriormente, a via social-democrata do reformismo. A lacuna fica visível: o conceito de racionalismo formal de Coutinho não abarcou todo o racionalismo (burguês), tendo como foco o racionalismo cientificista, agnóstico e objetivista. Não sendo abordado no livro, é como se o racionalismo humanista — humanismo abstrato, não o concreto do materialismo histórico — fosse poupado da classificação de decadência ideológica burguesa porque seria uma suposta continuidade legítima do movimento iluminista da burguesia ascendente. Entretanto, esse racionalismo, em contexto da sociedade capitalista consolidada, é decadente como o irracionalismo moderno e também possui um vínculo orgânico com a coisificação generalizada da vida cotidiana e a barbárie contemporânea do capital.

Diante disso, temos que preencher essa classificação insuficiente trazendo esse racionalismo (de abordagem ontológica e de abordagem agnóstico-humanista) para o palco da crítica da metafísica, completando a análise dialético-materialista de reconhecer a filosofia burguesa atual, sua antagonista, na totalidade em que se expressa. Busquei fazer isso, nos últimos anos, separando o racionalismo formal e o racionalismo  clássico como duas tradições decadentes distintas que dialogavam em certas expressões. De tal maneira que surgiram dois blogs: o Núcleo de Estudos de Racionalismo Formal e o Núcleo de Estudos de Neoluminismo. Contudo, nos últimos meses tenho percebido que essa separação que fiz é um equívoco, ela não se sustenta.  A divisão proposta em três tradições decadentes contemporâneas se revela um contorno desnecessário. O próprio Lukács, aliás, classificava essa distinção burguesa apenas como irracionalismo e racionalismo, sem separar uma tradição própria para tratar o agnosticismo cientificista. É verdade que ocorre um tipo de separação política no racionalismo decadente, porém ele não cria uma terceira tradição. No máximo, realiza, em certos casos, uma junção racionalista e irracionalista.
 
Indo além do que o jovem Coutinho desenvolve, faz sentido entender manifestações da miséria da razão no racionalismo burguês clássico, quando esse entra em fase de decadência ideológica e revela a sua insuficiência, a sua formalidade e a sua pobreza, através do surgimento do olhar da razão dialética enquanto método autoconsciente. O agnosticismo, tão enfatizado no livro sobre o estruturalismo, é uma abordagem presente em correntes das duas tradições, irracionalismo moderno e racionalismo formal, e o próprio Coutinho observa que o estruturalismo se trata de uma ontologia social, ainda que epistemologizada. Ademais, até a ontologia geral (da natureza e da sociedade) de Nicolai Hartmann, com todos os seus avanços, padece de um empobrecimento metodológico que Lukács identifica como a sua insuficiência dialética. Em suma, a miséria da razão se expressa, de diversas maneiras, no fetiche da empiria, no fetiche da razão, de maneira aberta na abordagem agnóstica e de maneira residual na abordagem ontológica. O elemento essencial nos variados tipos é algum grau de caráter antidialético.
 
O racionalismo formal é, em sentido estrito, um racionalismo agnóstico. Contudo, considerando o sentido amplo de miséria da razão, o termo também serve para se referir ao Kautsky tardio e ao próprio Coutinho tardio! Afinal, se o autor brasileiro supostamente continuou um marxista ortodoxo na filosofia, por outro lado, virou adepto de uma expressão política do racionalismo formal. Nesse caso, pode se apontar o fato de que, além de ser antidialético, refém do entendimento (Verstand) e da lógica formal em algum grau, o racionalismo decadente humanista é formal por fetichizar a democracia formal (liberal) consolidada e, desse modo, é também uma adaptação do racionalismo moderno após o revolucionário Iluminismo para justificar a ordem social da irracionalidade metabólica do capital e/ou a conciliação de classes.

A morada política do Coutinho posterior é, além de tudo, uma tendência neoiluminista que representa um autêntico centrão político. O democratismo — fetiche da democracia liberal/formal — engloba uma ala socialista, de fato, mas esse centrismo oscilante às vezes se confunde: entre liberais sociais há quem se considere “socialista” e há alguns partidos socialistas atuando, na prática, de maneira “liberalizante”.
 
Em diferentes graus, esses racionalistas politicistas se situam entre a apologia direta e a apologia indireta da propriedade privada e da economia de mercado. Um direcionamento levemente suspenso, mas sincrônico. O social-liberalismo, nesse sentido, não visa a superação (Aufhebung) do modo de produção capitalista, isto é, da exploração do ser humano pelo ser humano. Os sociais-democratas clássicos (socialistas centristas), por sua vez, até têm um telos visando a superação do capitalismo a longo prazo, todavia, se perdem nas reformas sem norte revolucionário. Na prática, essas duas tendências do extremo centro representam a esperança no estado liberal-democrático com responsabilidade na promoção da cidadania e na redução das mazelas sociais, através de reformas estruturais, intervenções keynesianas, políticas públicas e/ou parcerias no “terceiro setor”. Enfim, a fantasia reformista de construir um planeta Terra harmônico com duzentas Noruegas imaculadas, através de um gradual processo de “humanização do capital”.
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