por José Paulo Netto
Este ensaio parte da questão posta por Godelier (s.d., p. 137) — onde
estava Marx em 1843? Não se trata de fornecer qualquer solução à
problemática implícita da indagação, mas, antes, de sugerir rapidamente
um enquadramento capaz de favorecer a leitura da Crítica da filosofia do Estado de Hegel,[1] o manuscrito marxiano que, redigido entre março e agosto de 1843, em Kreuznach,[2] e só publicado por D. Riazanov em 1927, constitui, a meu juízo, uma peça-chave para a compreensão do rumo de Marx.
Com este limite, eis o andamento da minha argumentação: a propósito da Crítica
de 1843, remeter à sua centralidade no curso da reflexão de Marx,
indicar o contexto em que emerge e apontar para a sua radical
originalidade — simultaneamente a um registro bibliográfico mínimo que permita ao estudioso trabalhar a Crítica de forma eficiente.
A centralidade da Crítica
As glosas marxianas aos parágrafos 261-313 da “obra hegeliana de pior reputação pela sua tendência restauradora”[3]
reúnem em torno de si uma enorme bibliografia, cuja tônica é a
diversidade dos referenciais de avaliação e a colisão de juízos.
Enquanto Rubel (in Marx, 1968, II, XXII) garante que no conceito de
democracia nelas proposto por Marx “percebemos o embrião da sua concepção de socialismo”, Vranicki (1973, I, p. 75) assegura que a impostação da Crítica é abstrata, entre outros elementos, porque nela a “democracia vem oposta à monarquia como um princípio a outro”. Se Villar (in Hobsbawn, org., 1980, I, p. 98) desmerece a Crítica na evolução de Marx, reputando-a mesmo como “um recuo em relação a 1842”,
Della Volpe (1978, p. 124) vincula-a às geniais formulações de
1857/1858 e não hesita em considerá-la mais importante que os célebres Manuscritos de 1844 porque “contém as premissas mais gerais de um novo método filosófico” — num julgamento similar ao que Cerroni (1972, p. 118) emitiu posteriormente encontrando nela “o parâmetro metodológico fundamental da perspectiva teórica de Marx”.
A simples menção destas avaliações colidentes revela que a significação do manuscrito de 1843 está longe de uma apreciação minimamente consensual. A polaridade que se verifica no espectro judicativo é expressiva: se Rubel localiza na reflexão de Kreuznach o giro decisivo realizado por Marx no encaminhamento do seu projeto intelectual (Rubel, 1957), Villar (loc. cit) não vê nela mais que um episódio.
A centralidade da Crítica escapa igualmente aos que dela já querem extrair o Marx “marxista” e aos que nela não identificam mais que um “episódio”. O seu caráter nuclear no conjunto da obra marxiana só é adequadamente perceptível na perspectiva que a põe como patamar necessário para o rumo posterior do pensamento de Marx, margem de um espaço onde se encontram os limites de um ponto de chegada — o abandono da razão filosófica especulativa — e as fronteiras de um ponto de partida — a assunção da prática social como âncora da reflexão teórica. Nesta chave de leitura, a Crítica é um marco no qual se contêm determinações inconclusas, prolongadas e/ou marginalizadas nos a anos seguintes, uma vez que só com a Miséria da filosofia a teoria social marxiana apresentaria uma formulação inicial cerrada.[5]
Independentemente, porém, do acordo ou do desacordo do intérpretes acerca da centralidade da Crítica, há no próprio Marx elementos que desautorizam as abordagens polares de Rubel e de Villar.
No “prefácio” à Para a crítica da economia política, de janeiro de 1859, esboçando um escorço da sua evolução intelectual e recordando os imediatos desdobramentos da experiência da Gazeta Renana, Marx escreve: “Para resolver as dúvidas que então me assaltavam, empreendi um primeiro trabalho, uma revisão crítica da filosofia de Hegel”. Dessa revisão crítica, ele menciona a Introdução (Marx, 1977), publicada em 1844 nos Anais Franco-Alemães,[6] a partir de cujos resultados foi levado ao estudo da Economia Política, ponto de ataque para a inteligência da “anatomia da sociedade civil”, e que lhe forneceu o “fio condutor” das suas pesquisas (Marx, 1965, I, p. 272). De uma parte, fica patente que a revisão crítica — para usar da sua própria expressão — é tudo, menos um episódio: Marx remonta a ela a gênese da sua abertura para a análise da “sociedade civil” embasada na crítica da Economia Política. De outra, a indicação se complementa com a referência explícita à Introdução, redigida já em Paris e onde comparecem essenciais componentes inexistentes no texto de Kreuznach (o vislumbramento da revolução que tem por sujeito o proletariado); ora, a sugestão evidencia a insuficiência da Crítica, deslegitimando a pretensão de nela encontrar “a razão de sua [de Marx] adesão à causa do proletariado” (como quer Rubel, 1957, p. XXIII).
Uma segunda pista (e esta, a meu juízo, não se presta a qualquer tergiversação) põe de manifesto a centralidade referida — no “posfácio” à segunda edição alemã de O capital, datado de 24 de janeiro de 1873, Marx afirmou:
A simples menção destas avaliações colidentes revela que a significação do manuscrito de 1843 está longe de uma apreciação minimamente consensual. A polaridade que se verifica no espectro judicativo é expressiva: se Rubel localiza na reflexão de Kreuznach o giro decisivo realizado por Marx no encaminhamento do seu projeto intelectual (Rubel, 1957), Villar (loc. cit) não vê nela mais que um episódio.
Ora,
no meu entender, há que evitar esses dois equívocos: o de Rubel, que
pode conduzir à falsa ilação de que nas anotações de Kreuznach está
embutida a estrutura que a trajetória ulterior de Marx explicitaria
concretamente, e o de Villar, que subalternaliza de maneira
injustificada a Crítica. Evitando-os, favorece-se a emersão do
relevo exato deste texto: ele é central na determinação do perfil global
da obra marxiana, precisamente enquanto inaugura uma reflexão cujas
resultantes serão completamente visíveis nos fins dos anos 50 — no justo período da elaboração dos Gründrisse... É a Crítica que permite ver onde estava Marx em 1843 — o
deslocamento e a primeira ultrapassagem de um modo dado de pensar o
social, tratando os fenômenos sociopolíticos, sem que ainda se explicite
uma concepção teórico-metodológica alternativa. Em 1843, nesta Crítica,
Marx está num momento crucial da sua definição teórica: as glosas
assinalam que ele, inteiramente rompido com a programática política de
Hegel, começa a ultrapassar a filosofia como razão especulativa,
apontando para a modalidade de intervenção que, resolvendo a
problemática filosófica no âmbito da práxis, vai instaurar um novo
estatuto teórico para a reflexão referida à socialidade. Numa palavra: na Crítica,
Marx inicia o processo de superação da filosofia que, nos três anos
seguintes, vai se coroar com o lançamento das primeiras bases da sua
teoria social.[4]
A centralidade da Crítica escapa igualmente aos que dela já querem extrair o Marx “marxista” e aos que nela não identificam mais que um “episódio”. O seu caráter nuclear no conjunto da obra marxiana só é adequadamente perceptível na perspectiva que a põe como patamar necessário para o rumo posterior do pensamento de Marx, margem de um espaço onde se encontram os limites de um ponto de chegada — o abandono da razão filosófica especulativa — e as fronteiras de um ponto de partida — a assunção da prática social como âncora da reflexão teórica. Nesta chave de leitura, a Crítica é um marco no qual se contêm determinações inconclusas, prolongadas e/ou marginalizadas nos a anos seguintes, uma vez que só com a Miséria da filosofia a teoria social marxiana apresentaria uma formulação inicial cerrada.[5]
Independentemente, porém, do acordo ou do desacordo do intérpretes acerca da centralidade da Crítica, há no próprio Marx elementos que desautorizam as abordagens polares de Rubel e de Villar.
No “prefácio” à Para a crítica da economia política, de janeiro de 1859, esboçando um escorço da sua evolução intelectual e recordando os imediatos desdobramentos da experiência da Gazeta Renana, Marx escreve: “Para resolver as dúvidas que então me assaltavam, empreendi um primeiro trabalho, uma revisão crítica da filosofia de Hegel”. Dessa revisão crítica, ele menciona a Introdução (Marx, 1977), publicada em 1844 nos Anais Franco-Alemães,[6] a partir de cujos resultados foi levado ao estudo da Economia Política, ponto de ataque para a inteligência da “anatomia da sociedade civil”, e que lhe forneceu o “fio condutor” das suas pesquisas (Marx, 1965, I, p. 272). De uma parte, fica patente que a revisão crítica — para usar da sua própria expressão — é tudo, menos um episódio: Marx remonta a ela a gênese da sua abertura para a análise da “sociedade civil” embasada na crítica da Economia Política. De outra, a indicação se complementa com a referência explícita à Introdução, redigida já em Paris e onde comparecem essenciais componentes inexistentes no texto de Kreuznach (o vislumbramento da revolução que tem por sujeito o proletariado); ora, a sugestão evidencia a insuficiência da Crítica, deslegitimando a pretensão de nela encontrar “a razão de sua [de Marx] adesão à causa do proletariado” (como quer Rubel, 1957, p. XXIII).
Uma segunda pista (e esta, a meu juízo, não se presta a qualquer tergiversação) põe de manifesto a centralidade referida — no “posfácio” à segunda edição alemã de O capital, datado de 24 de janeiro de 1873, Marx afirmou:
Meu
método dialético não só difere basicamente do método hegeliano, é o seu
exato oposto. Para Hegel, o movimento do pensamento, personificado sob o
nome de Ideia, é o demiurgo da realidade, que é tão somente a forma
fenomênica da Ideia. Para mim, ao contrário, o movimento do pensamento é
apenas a reflexão do movimento real, transposto para o cérebro do
homem. Critiquei este lado místico da dialética hegeliana há cerca de
trinta anos, numa época em que ela ainda estava na moda (Marx, I, 1965,
p. 558).[7]
A remissão de Marx me parece inequívoca: referencia sem dúvidas a Crítica, da qual um tema recorrente — à diferença da Introdução, publicada em 1844 — é precisamente a desmontagem da mística hegeliana.[8]
Não pode ser um mero acidente que, trinta anos depois de Kreuznach, Marx volte seus olhos para lá na identificação de um dos fundamentos do seu método dialético. Estou convencido de que essa evocação deve ser posta na conta da centralidade da Crítica no interior do complexo processo da formação de Marx — momento em que se abre a viragem que lhe propiciou a construção da sua teoria social.
Por que a concepção hegeliana do Estado?
As preocupações de Marx, em 1843, incidiam imediatamente sobre problemas de ordem política — a estância em Kreuznach, paragem entre Colônia e o auto-exílio parisiense, na moldura tranquila da lua de mel,[9] permite-lhe um recolhimento aproveitado não só para uma revisão da história antiga (então, redige longas cronologias), mas ainda para leituras sobre a Revolução Francesa (Ranke, Ludwig, Wachsmuth) e, especialmente, dos teóricos da política, da natureza e da estrutura do poder (Maquiavel, Montesquieu e Rousseau). A reflexão capital que realiza, entretanto, tem por centro a filosofia do Estado de Hegel. É importante dilucidar as razões elementares que esclarecem o alvo da análise marxiana, uma vez que elas transcendem os marcos de uma preferência pessoal ou idiossincrática.
Um feixe daquelas razões se localiza na recente experiência jornalística de Marx, a experiência da Gazeta Renana, dirigida por ele entre outubro de 1842 e março de 1843.[10] Então, Marx defrontou-se com dois problemas cuja vinculação não pôde deixar de investigar. O primeiro se conectou à liberdade de imprensa: as peripécias da Gazeta Renana, submetida à censura imperial, mostraram-lhe o caráter social da burguesia alemã — os acionistas do periódico, representantes da oposição liberal, nunca foram capazes de um enfrentamento com o poder da nobreza fundiária e seus apêndices burocráticos. A vacilação dos liberais burgueses, o direcionamento das suas iniciativas para o limbo do arreglo, a sua reiterada aposta no compromisso capitulacionista não só conduziram Marx ao afastamento da empresa, mas salientaram a inépcia da burguesia alemã para enformar um projeto de classe hábil e suprimir os obstáculos à construção de uma ordem social isenta das marcas corporativas da feudalidade. A partir da Gazeta Renana, Marx discerniu o traço pertinente da burguesia alemã, uma associação de “proprietários covardes”, óbvio desvio do padrão de 1789, que assentava na dinâmica dos “cidadãos revolucionários”. O segundo foi posto pelos furtos de madeira dos camponeses: pela primeira vez em sua vida, Marx viu-se a braços com situações particulares da vida social, aquelas atinentes às formas de espoliação econômica. Nos dois casos, o que emergiu para Marx, pressionando no sentido de uma inter-relação de ambos os problemas, foi a questão da representação dos interesses sociais determinados no âmbito do poder político. Vale dizer: fatos sociais e econômicos, indicadores de conflitos e contradições que operavam no bojo da estrutura social, compeliram-no a indagar como se engendrava a articulação dos interesses que os criavam com os aparatos e processos asseguradores da ordem política e jurídica.
Era a vida mesma empurrando Marx, do seu terreno profissional originário, da sua “especialidade”, da filosofia e da jurisprudência, para o campo de indagações que, desde Hobbes, pusera-se na ordem do dia da reflexão ocidental: a natureza da sociedade política, com o privilégio do Estado. Neste sentido, o encontro de Marx com a problemática da ordem política estatal não se mostra como um roteiro singular: seu objeto, em 1843, obedece à tradição intelectual que se empenha em apanhar a relação entre as instâncias estatais e as demais instituições sociopolíticas.[11] Levado a esse tipo de questionamento, Marx não podia fugir ao confronto com a filosofia do Estado de Hegel — e por dois motivos fundamentais.
Primeiramente porque, partindo da política (das questões práticas postas pela experiência da Gazeta Renana), Marx estava às estava às voltas com a história enquanto presente. E, ao contrário, de todos os autores do seu universo intelectual, era Hegel quem dava conta do Estado moderno. A filosofia hegeliana do Estado tinha como objeto justamente o Estado contemporâneo, matrizado entre o Diretório e o Congresso de Viena; nela, a inspiração e o paradigma jusnaturalistas foram subvertidos de modo radical, com a absorção dos elementos práticos da organização estatal atual.[12] Ademais, na crítica a seus predecessores, Hegel invertera as concepções contratualistas e rebatera o lastro do liberalismo — o que, compreende-se, atrai a atenção de Marx, que, em 1843, não comungava com ilusões liberais. Sob essa luz, pois, só a confrontação com Hegel, especificamente, poderia satisfazer às necessidades que atormentavam Marx.
Mas há outro motivo fundamental que esclarece por que, em Kreuznach, Marx problematiza a filosofia hegeliana do Estado — motivo que, ele mesmo, constitui o outro feixe de razões elementares antes referidas. Trata-se aqui do próprio destino da escola hegeliana nos anos 40 do século XIX.[13]
Desde a morte de Hegel (1831), a escola derivada do seu magistério — e que marcaria dominantemente a cena alemã até o ocaso das jornadas revolucionárias de 1848/1849 — ingressou numa etapa de diferenciação. Num estágio inicial, que vai até 1839, as principais controvérsias no interior do hegelianismo centravam-se no problema religioso, só residualmente desbordando para as questões lógico-metafísicas. A partir daí, amplia-se o terreno da polêmica, com a crítica desenvolvendo incidências progressivamente mais nítidas acerca da vida sociopolítica — então, a figura de Feuerbach adquire uma especial saliência: da sua Crítica da filosofia hegeliana (1839) e A essência do cristianismo (1841) circunscreve-se a orientação que vai conduzir os jovens hegelianos, no limite, ao ateísmo e ao radicalismo, configurando uma alternativa filosófica que, segundo Lukács, dará na “forma conceptual suprema da democracia revolucionária alemã”.[14]
A ascensão de Frederico Guilherme IV (1840) foi saudada por muitos jovens hegelianos; boa parte deles entreviu aí a emergência do “Estado racional” — tematizado pelo mestre na Filosofia do direito —: Ruge, por exemplo, logo se manifestou por um “apoio crítico” ao monarca. Tais ilusões se desfizeram rapidamente: a intelectualidade de oposição, encabeçada pelos jovens hegelianos, em curtos meses apercebeu-se que Frederico Guilherme IV não romperia com o absolutismo e o obscurantismo social e político e o “apoio crítico” converteu-se em “oposição crítica”. A face real do tacão prussiano mostra-se primeiro em 1841 e já se dirige contra os jovens hegelianos: Bauer tem seus cursos proibidos em Berlim. E, nos dois anos seguintes, a fratura entre os jovens hegelianos e o Estado prussiano torna-se irrecorrível: em março de 1842 Bauer é excluído da universidade e as medidas repressivas e policiais multiplicam-se, alcançando o ápice com a expulsão de Herweg e com a interdição, efetuada com a direta intervenção de Frederico Guilherme IV, de todas as publicações liberais (e a sua apreensão, quando editadas no exterior). A clivagem ideológica se manifestou e, assim, depois
As preocupações de Marx, em 1843, incidiam imediatamente sobre problemas de ordem política — a estância em Kreuznach, paragem entre Colônia e o auto-exílio parisiense, na moldura tranquila da lua de mel,[9] permite-lhe um recolhimento aproveitado não só para uma revisão da história antiga (então, redige longas cronologias), mas ainda para leituras sobre a Revolução Francesa (Ranke, Ludwig, Wachsmuth) e, especialmente, dos teóricos da política, da natureza e da estrutura do poder (Maquiavel, Montesquieu e Rousseau). A reflexão capital que realiza, entretanto, tem por centro a filosofia do Estado de Hegel. É importante dilucidar as razões elementares que esclarecem o alvo da análise marxiana, uma vez que elas transcendem os marcos de uma preferência pessoal ou idiossincrática.
Um feixe daquelas razões se localiza na recente experiência jornalística de Marx, a experiência da Gazeta Renana, dirigida por ele entre outubro de 1842 e março de 1843.[10] Então, Marx defrontou-se com dois problemas cuja vinculação não pôde deixar de investigar. O primeiro se conectou à liberdade de imprensa: as peripécias da Gazeta Renana, submetida à censura imperial, mostraram-lhe o caráter social da burguesia alemã — os acionistas do periódico, representantes da oposição liberal, nunca foram capazes de um enfrentamento com o poder da nobreza fundiária e seus apêndices burocráticos. A vacilação dos liberais burgueses, o direcionamento das suas iniciativas para o limbo do arreglo, a sua reiterada aposta no compromisso capitulacionista não só conduziram Marx ao afastamento da empresa, mas salientaram a inépcia da burguesia alemã para enformar um projeto de classe hábil e suprimir os obstáculos à construção de uma ordem social isenta das marcas corporativas da feudalidade. A partir da Gazeta Renana, Marx discerniu o traço pertinente da burguesia alemã, uma associação de “proprietários covardes”, óbvio desvio do padrão de 1789, que assentava na dinâmica dos “cidadãos revolucionários”. O segundo foi posto pelos furtos de madeira dos camponeses: pela primeira vez em sua vida, Marx viu-se a braços com situações particulares da vida social, aquelas atinentes às formas de espoliação econômica. Nos dois casos, o que emergiu para Marx, pressionando no sentido de uma inter-relação de ambos os problemas, foi a questão da representação dos interesses sociais determinados no âmbito do poder político. Vale dizer: fatos sociais e econômicos, indicadores de conflitos e contradições que operavam no bojo da estrutura social, compeliram-no a indagar como se engendrava a articulação dos interesses que os criavam com os aparatos e processos asseguradores da ordem política e jurídica.
Era a vida mesma empurrando Marx, do seu terreno profissional originário, da sua “especialidade”, da filosofia e da jurisprudência, para o campo de indagações que, desde Hobbes, pusera-se na ordem do dia da reflexão ocidental: a natureza da sociedade política, com o privilégio do Estado. Neste sentido, o encontro de Marx com a problemática da ordem política estatal não se mostra como um roteiro singular: seu objeto, em 1843, obedece à tradição intelectual que se empenha em apanhar a relação entre as instâncias estatais e as demais instituições sociopolíticas.[11] Levado a esse tipo de questionamento, Marx não podia fugir ao confronto com a filosofia do Estado de Hegel — e por dois motivos fundamentais.
Primeiramente porque, partindo da política (das questões práticas postas pela experiência da Gazeta Renana), Marx estava às estava às voltas com a história enquanto presente. E, ao contrário, de todos os autores do seu universo intelectual, era Hegel quem dava conta do Estado moderno. A filosofia hegeliana do Estado tinha como objeto justamente o Estado contemporâneo, matrizado entre o Diretório e o Congresso de Viena; nela, a inspiração e o paradigma jusnaturalistas foram subvertidos de modo radical, com a absorção dos elementos práticos da organização estatal atual.[12] Ademais, na crítica a seus predecessores, Hegel invertera as concepções contratualistas e rebatera o lastro do liberalismo — o que, compreende-se, atrai a atenção de Marx, que, em 1843, não comungava com ilusões liberais. Sob essa luz, pois, só a confrontação com Hegel, especificamente, poderia satisfazer às necessidades que atormentavam Marx.
Mas há outro motivo fundamental que esclarece por que, em Kreuznach, Marx problematiza a filosofia hegeliana do Estado — motivo que, ele mesmo, constitui o outro feixe de razões elementares antes referidas. Trata-se aqui do próprio destino da escola hegeliana nos anos 40 do século XIX.[13]
Desde a morte de Hegel (1831), a escola derivada do seu magistério — e que marcaria dominantemente a cena alemã até o ocaso das jornadas revolucionárias de 1848/1849 — ingressou numa etapa de diferenciação. Num estágio inicial, que vai até 1839, as principais controvérsias no interior do hegelianismo centravam-se no problema religioso, só residualmente desbordando para as questões lógico-metafísicas. A partir daí, amplia-se o terreno da polêmica, com a crítica desenvolvendo incidências progressivamente mais nítidas acerca da vida sociopolítica — então, a figura de Feuerbach adquire uma especial saliência: da sua Crítica da filosofia hegeliana (1839) e A essência do cristianismo (1841) circunscreve-se a orientação que vai conduzir os jovens hegelianos, no limite, ao ateísmo e ao radicalismo, configurando uma alternativa filosófica que, segundo Lukács, dará na “forma conceptual suprema da democracia revolucionária alemã”.[14]
A ascensão de Frederico Guilherme IV (1840) foi saudada por muitos jovens hegelianos; boa parte deles entreviu aí a emergência do “Estado racional” — tematizado pelo mestre na Filosofia do direito —: Ruge, por exemplo, logo se manifestou por um “apoio crítico” ao monarca. Tais ilusões se desfizeram rapidamente: a intelectualidade de oposição, encabeçada pelos jovens hegelianos, em curtos meses apercebeu-se que Frederico Guilherme IV não romperia com o absolutismo e o obscurantismo social e político e o “apoio crítico” converteu-se em “oposição crítica”. A face real do tacão prussiano mostra-se primeiro em 1841 e já se dirige contra os jovens hegelianos: Bauer tem seus cursos proibidos em Berlim. E, nos dois anos seguintes, a fratura entre os jovens hegelianos e o Estado prussiano torna-se irrecorrível: em março de 1842 Bauer é excluído da universidade e as medidas repressivas e policiais multiplicam-se, alcançando o ápice com a expulsão de Herweg e com a interdição, efetuada com a direta intervenção de Frederico Guilherme IV, de todas as publicações liberais (e a sua apreensão, quando editadas no exterior). A clivagem ideológica se manifestou e, assim, depois
de haver tentado, sucessivamente e em vão, desempenhar o papel de ideólogo do Estado “protestante” e da burguesia liberal, o grupo dos jovens hegelianos encontrou-se, em 1843, numa situação de “disponibilidade ideológica”.
Fragmentou-se também em várias tendências, cada uma das quais
cristalizava as divergências que se esboçavam desde 1842, a partir do
denominador comum da recusa do Estado prussiano e do liberalismo burguês
(Löwy, 1978, p. 60).
O quadro político, portanto, pressionava também os discípulos de Hegel, precipitando a diferenciação intrínseca que se registrava desde os finais da década anterior. Com a clivagem de 1843, a dissolução do hegelianismo se acelera: a herança de Hegel é explorada diversamente — Bauer e os Livres de Berlim refugiam-se na pura especulação do “espírito crítico”; Feuerbach (e, de modo muito menos forte, Ruge) identifica humanismo e comunismo, numa fração democrático-humanista que se confunde, inicialmente, com o comunismo filosófico de Hesse e Engels. A intercorrência entre essas duas últimas tendências, que perdurará por algum tempo, viabilizará o projeto dos Anais Franco-Alemães, com o qual Marx se comprometeu.[15]
Como se verifica, no momento em que Marx, por efeito de sua própria evolução, era levado a pensar a filosofia do Estado de Hegel, registrava-se na constelação mesma dos jovens hegelianos um movimento similar de questionamento político. A aproximação de Marx e Ruge, nessa época, é expressiva: um e outro, por vias particulares, tinham que enfrentar o Estado “racional” e a sua tematização filosófica. Se Marx era compelido ao estudo da construção hegeliana do Estado pela sua recente experiência na Renânia, era-o ainda pela própria atmosfera dominante na esquerda hegeliana. Hegel se impunha a Marx, pois de forma irrecusável: pela via da prática política e pela via da polêmica filosófica. Por outra parte, na esquerda hegeliana, a posição de Marx era peculiar: ao contrário da maioria dos seus representantes, ele nunca embarcou em qualquer devaneio sobre a “remodelagem” do Estado prussiano com Frederico Guilherme IV. A clivagem surgida em 1843 aparecia-lhe, por isto, como um estímulo intelectual adicional: havia que pesquisar os traços políticos e filosóficos que lhe eram subjacentes, bem como os seus desdobramentos — mas esta tarefa não se cumpriu em Kreuznach.[16]
Em 1843, portanto, a filosofia do Estado de Hegel constituía um desafio que Marx não podia ladear, senão ao preço de esquivar-se das discussões intelectuais mais vivas e de escamotear o mais que necessário auto-esclarecimento da sua experiência recente.[17] Assim, o seu recolhimento ao “gabinete de estudo”, em 1843, abandonando, por um instante, a “cena pública”, não teria razão se, entre Maquiavel, Rousseau e muitos outros, ele não privilegiasse Hegel.
O contexto filosófico da Crítica
A esmagadora maioria dos analistas considera que a matriz dominante da Crítica
é o trabalho que Feuerbach vinha desenvolvendo desde 1839. Esta
vertente interpretativa pode ser resumida com a transcrição do juízo de
Godelier:
Apoiando-se
na concepção materialista da alienação de Feuerbach, generalizando a
crítica feuerbachiana da filosofia especulativa aos domínios da política
e do direito, Marx mostrava que Hegel, assim como fizera da Ideia
Absoluta o Sujeito criador do mundo, e do sujeito real, o Homem, uma
determinação do conceito, havia feito do Estado o sujeito e da Sociedade
o atributo (Godelier, s.d., p. 138).
Não resta a menor dúvida, como quer Löwy (1978, p. 63), de que o ponto de partida de Marx, no enfrentamento de 1843 com Hegel, é antropológico no estrito sentido de Feuerbach. Tanto a Crítica da filosofia hegeliana quanto A essência do cristianismo — na qual se “inverte” a colocação da religião — subjazem à reflexão de Kreuznach, embora se deva ressaltar, ainda, da influência feuerbachiana, os influxos das Teses provisórias para um reforma da filosofia (1843); Marx, logo que lê essa obra, manifesta (em carta a Ruge, 13/3/1843), o seu acordo com um de seus eixos, a sistemática denúncia da falsa relação estabelecida por Hegel entre sujeito e predicado.
No plano mais geral, a Crítica assume inteiramente a reserva de Feuerbach, segundo a qual, na filosofia de Hegel, “está o absoluto como sujeito”, enquanto “o verdadeiro sujeito [...] permanece tendo o significado de um simples predicado” (Feuerbach, 1948, p. 62); e assume também um de seus corolários: da hipóstase do absoluto como sujeito decorre, em Hegel, a mistificação da relação sujeito/predicado: “o sujeito verdadeiro, suporte da predicação, [...] converte-se num atributo do que deveria ser um predicado, numa qualificação deste, em seu acidente lógico" (Rossi, 1963, 2, p. 117). Em toda a Crítica, essa postura feuerbachiana é recorrente e sempre explícita. Os exemplos probatórios são inúmeros — em Hegel, “condição se converte no condicionado, o determinante no determinado, o produtivo em produto do seu produto” (Marx, loc. cit., p. 9), ou: “O importante é que Hegel converte constantemente a Ideia em sujeito, e o sujeito autêntico e real [...] em predicado” (idem, p. 12).
Todavia, parece-me insuficiente reconduzir a Crítica somente à “inversão teórica” de Feuerbach — os desdobramentos epistemológicos e metodológicos da polêmica de Marx contra Hegel, em 1843, indicam que o espectro crítico de que aquele se valeu vai muito mais além das iluminações feuerbachianas. Os desenvolvimentos marxianos reenviam a um aristotelismo[18] que não pode ser debitado à leitura de Feuerbach, ainda que se reconheça que “a temática feuerbachiana de sujeito e predicado [...] também tem uma clara origem aristotélica, porquanto o sujeito não é mais que o substrato ou substância a que o predicado se adere como determinação e acidente” (Dal Pra, 1971, p. 72).
Marx não se contenta com a impostação de Feuerbach, nem lhe são suficientes os seus próprios estudos sobre o Estagirita, levados a cabo ainda em Berlim, em 1840. Na verdade, avançando na denúncia do misticismo hegeliano, ele apela diretamente ao sujeito aristotélico (hypokeimenon), num passo essencial da Crítica:
Hegel
independentiza os predicados, os objetos, mas separando-os da sua
independência real, dos sujeitos. Portanto, o sujeito real aparecerá
como resultado, quando o que se deve fazer é partir do sujeito real e
considerar a sua objetivação. A substância mística converte-se em
sujeito real e este parece outro, um fator daquela. Por que Hegel parte
dos predicados da característica geral em vez de partir do ente real (hypokeimenon)
e por que lhe falta algo em que apoiar esta característica,
precisamente por isto a ideia mística se converte neste apoio. O
dualismo de Hegel consiste, consiste, aqui, em que o universal não é
visto como essência real do finito e real, ou seja, existente e
concreto; ou, noutras palavras, o ente real não é tomado como o verdadeiro sujeito do infinito (Marx, loc. cit., p. 29).
A colocação marxiana retoma Aristóteles, basicamente, a crítica à teoria platônica da efetividade dos universais (que aparece nos livros XIII e XIV da Metafísica) e se é fato que lhe permite “atribuir caracterização platônica à doutrina hegeliana e consolidar o realismo feuerbachiano do mundo da experiência sensível” (Dal Pra, 1971, p. 73), tem, realmente, um alcance muito maior.
É que a citação de Marx que acabei de transcrever faz mais que desmistificar o procedimento lógico de Hegel, que consiste em conceder aos predicados o estatuto de substratos, recusando uma compreensão unitária do real partindo do ente real (hypokeimenon) como sujeito e tomando as suas determinações abstratas como qualificações. Aqui há algo mais que a simples, embora decisiva, denúncia da mistificação lógica que credita valor de realidade fundante às determinações abstratas. Existe, especialmente, a assunção de Marx, de uma reserva central ao procedimento lógico total de Hegel, não posta por Feuerbach, mas formulada pelo anti-hegeliano de direita Adolf Trendelenburg, em 1840, nas suas Investigações lógicas.[19]
Numa original defesa da lógica aristotélica, Trendelenburg assinala que a negação dialética, mediante a qual Hegel dinamiza o Espírito a partir de si mesmo, pode ser concebida ou como negação lógica ou como oposição real; neste caso, ela só se introduz no processo dialético, tal como Hegel o constrói, por um recurso à realidade que se faz à base de uma interpolação da intuição empírica. E acentua: “A contradição não deriva do pensamento puro, mas da intuição que a assume [...] A dialética não é, em absoluto, uma dialética do pensamento puro” (apud Rossi, 1963, 2, p. 308). Ora, na Crítica, com uma direção ontológica, são essas reservas de Trendelenburg que ressoam nitidamente, ainda que se queira atribuir a elas um mero peso técnico-lógico (como o faz Rossi, 1963, p. 308). As interpolações da intuição empírica — viáveis inclusive pelas várias hipóstases realizadas por Hegel e indicadas por Marx — é que determinam os vícios empiristas (e, logo, o conteúdo acrítico) que a investigação de Marx descobre na filosofia hegeliana do Estado.[20] Marx aponta o empirismo hegeliano socorrendo-se da impostação de Trendelenburg: as interpolações é que acabam por dar movimento efetivo à “dialética do pensamento puro”, recolhendo os dados da realidade que propiciam a transcendência da pura atividade lógica.
No entanto, a incidência da recuperação crítica de Trendelenburg cobre mais que a indicação das incongruências mistificadoras contidas nas hipóstases e interpolações. Ela afeta o próprio estatuto das categorias com que opera o pensamento. E é sobre o fundamento dessa incidência que se compreende a recusa da Crítica em face do jogo hegeliano entre o universal, o particular e o singular.[21]
Finalmente, é preciso mencionar que o contexto filosófico em que emerge a Crítica ultrapassa as reservas concernentes à lógica (tais como as de Trendelenburg), assim como a “inversão” de Feuerbach (que centra seus resultados nomeadamente na metafísica religiosa). Essa ultrapassagem, ela mesma própria da dissolução do hegelianismo, Marx encontra-a na elaboração de Arnold Ruge.
Em agosto de 1842, Ruge publicou, nos Anais Alemães de Ciência e Arte,[22] um ensaio sob o título “A filosofia do direito de Hegel e a política do nosso tempo”. A peça é de fundamental importância para acompanhar o processo de diferenciação dos jovens hegelianos: nela se clarifica o rumo de Ruge para o radicalismo democrático e, ao mesmo tempo, os limites da sua postura, determinados simultaneamente pela sua ruptura com a burguesia liberal alemã e a inexistência, no seu horizonte ideológico, de qualquer outra força social alternativa para realizar a revolução política que ele considerava impostergável.[23]
Em seu ensaio, Ruge observa que, na Filosofia do direito, Hegel adota uma posição “diplomática”, “olímpica” no confronto com os fatos; mantém-se no plano estrito da “teoria", sem atribuir-lhe qualquer função “crítica”. Por isso, Hegel reduz as categorias históricas a termos lógicos:
O
defeito geral de toda a filosofia de Hegel, a sua limitação do ponto de
vista teórico, à margem da história concreta, é também o da sua Filosofia do direito.
Não se pode considerar o Estado em si e separá-lo da história, porque
toda concepção de Estado [...] é o produto da história [...]. Para
conservar um caráter especulativo e comportar-se como teoria absoluta,
sem deixar espaço para a crítica, a Filosofia do direito de Hegel
elevou aquilo que só possui existência empírica, as determinações
históricas, ao nível de determinações lógicas [...] (apud Cornu, 1976,
2, p. 104-105).[24]
Essa caracterização da Filosofia do direito rebate claramente na Crítica marxiana; dentre inúmeras ressonâncias, recorde-se só uma, decisiva na apreciação global de Marx:
Não
há por que criticar a Hegel por descrever a essência do Estado moderno,
tal como é, mas por fazer passar o que é pela essência do Estado (Marx,
loc. cit., p. 8).
Fica evidenciado, por estas referências, que não são nem de longe exaustivas, que situar nas origens da Crítica tão-somente o influxo de Feuerbach é reduzir indevidamente o húmus cultural, o contexto filosófico que viabiliza a reflexão de Kreuznach. As “três fontes” aqui indicadas e mais acicataram o pensamento de Marx à época mostram o quanto ele é tributário do processo de dissolução do hegelianismo e o quanto a sua intervenção se insere num movimento maior, mais abrangente, que envolvia toda a intelectualidade alemã, de oposição ou que se defrontava polemicamente com Hegel.
A originalidade da Crítica
Se, para evitar equívocos na análise da Crítica, convém reter
sempre a sua inserção no contexto filosófico de que emerge, para
escoimar de erros a sua avaliação há que indicar claramente o que nela
se captura de distinto em face daquele contexto. O rastreamento
sugerido nas páginas precedentes, realçando o muito que o manuscrito de
1853 incorpora dos numerosos e heterogêneos componentes críticos que a
polêmica pós e anti-hegeliana pôs na ordem do dia, quando da dissolução
do hegelianismo, não pode toldar a apreciação da originalidade da reflexão de Kreuznach.
Se se confronta a operação marxiana de 1843 com a intervenção
anti-hegeliana de Trendelenburg, a saliência das diferenças é de uma
força irredutível. O autor das Investigações filosóficas
restringe o seu objeto ao plano da lógica e aos desenvolvimentos
técnico-analíticos que, nesse âmbito, infirmam o procedimento hegeliano;
as suas aporias se articulam no sentido de resgatar o realismo
aristotélico com a denúncia do panlogicismo de Hegel e as incongruências
que nele verifica. Resulta daí que a crítica de Trendelenburg, cabível
quando agarra os artifícios de que Hegel se socorre para pôr de pé a sua
construção especulativo-sistemática, fica aquém da problemática que
Hegel levantou — especialmente no que concerne à processualidade
do ser. Marx demarca-se inteiramente do sentido e das implicações
contidas na postura de Trendelenburg: o que ele não quer perder é
exatamente essa conquista do pensamento hegeliano; por isso, sua crítica
à exorbitância lógica de Hegel[25] não termina por retroceder diante dela —
ao contrário, o que intenta é dar densidade e consequência a categorias
e procedimentos compatíveis com a processualidade que Hegel tomou
inconsequentemente. Enquanto
Trendelenburg conduz a sua crítica numa direção que acaba por situá-la
numa perspectiva filosófica tradicional e rigorosamente pré-hegeliana,
Marx assimila sua contribuição para franquear os limites da lógica
hegeliana, num movimento teórico-ontológico que transcende a Crítica, mas que nela encontra um dos seus passos primeiros.
Diferenciação de outra natureza é a existente entre Marx e Ruge. A característica central da crítica de Ruge a Hegel, no que tange a concepção de Estado, é que ele se mantém no mesmo terreno do seu interlocutor. Ruge não ultrapassa a impostação jurídico-política com que Hegel travestiu a sua tematização do lógica do Estado. A Filosofia do direito colocara a questão das instituições políticas como questão jurídica, e é neste campo que Ruge a problematiza. A consequência é que sua crítica permanece prisioneira de uma tautologia: não recorrendo, como Hegel, ao Espírito, Ruge é levado a explicar o Estado pelas instituições políticas mesmas, com a reflexão limitando-se a girar em torno do político sem alcançar a sua substância no social.[26] Marx, em troca, rompe decisivamente com essa fronteira: na Crítica — e voltarei a este ponto — o que se observa é exatamente o deslocamento da análise do Estado, transladando-a do espaço do político para o solo do social. Vale dizer: a Crítica procura remontar a impostação jurídico-política da concepção de Estado, presente em Hegel e responsável pela estreiteza da crítica rugeana, a seus suportes sociais.
Diferenciação de outra natureza é a existente entre Marx e Ruge. A característica central da crítica de Ruge a Hegel, no que tange a concepção de Estado, é que ele se mantém no mesmo terreno do seu interlocutor. Ruge não ultrapassa a impostação jurídico-política com que Hegel travestiu a sua tematização do lógica do Estado. A Filosofia do direito colocara a questão das instituições políticas como questão jurídica, e é neste campo que Ruge a problematiza. A consequência é que sua crítica permanece prisioneira de uma tautologia: não recorrendo, como Hegel, ao Espírito, Ruge é levado a explicar o Estado pelas instituições políticas mesmas, com a reflexão limitando-se a girar em torno do político sem alcançar a sua substância no social.[26] Marx, em troca, rompe decisivamente com essa fronteira: na Crítica — e voltarei a este ponto — o que se observa é exatamente o deslocamento da análise do Estado, transladando-a do espaço do político para o solo do social. Vale dizer: a Crítica procura remontar a impostação jurídico-política da concepção de Estado, presente em Hegel e responsável pela estreiteza da crítica rugeana, a seus suportes sociais.
Mais flagrante ainda é a separação que se verifica entre Marx e a sua “fonte” unanimemente mais citada, Feuerbach. Mencionei que a leitura das Teses provisórias... provocou
em Marx uma reação muito positiva, expressa em carta a Ruge
(13/03/1843). Entretanto, nessa missiva, eles escreve também: “Os aforismos de Feuerbach apenas não me persuadem [...] enquanto pouco referidos à política”. A reserva não é um detalhe — e adquire o seu peso real se voltarmos os olhos para as escassas atenções de Feuerbach dedica ao Estado nas Teses provisórias... Nelas, o Estado aparece como “a explícita, desenvolvida e realizada totalidade do ser humano”, com o soberano visto como “o representante do homem universal”, já que “deve representar indistintamente todas as classes” que, em face dele, “são todas igualmente necessárias e possuem todas os mesmos direitos” (Feuerbach, op. cit., p. 67). Estas colocações mostram, realmente, um retrocesso em comparação com a Filosofia do direito;[27] no
plano político, Feuerbach continuava (como Marx haveria de esclarecer
posteriormente) encarcerado em concepções que expressavam os limites do
seu materialismo. Se se diz, portanto, que a Crítica
incorpora muito das temáticas e ideias feuerbachianas, para que a
afirmação não redunde em equívoco é necessário dar realce, ao mesmo
tempo, ao fato verificável de que, no plano político, ela é também uma polêmica contra Feuerbach.
Na mesma carta acima citada, Marx oferece uma pista que, aparentemente, poderia levar ao reconhecimento da originalidade da Crítica. Aludindo à relação entre filosofia e política, assevera: “Esta é a única aliança pela qual a moderna filosofia pode transformar-se numa verdade”.
A frase é significativa: abriga um programa implícito, que aponta para
liquidação do traço contemplativo e especulativo da razão filosófica e,
em termos imediatos, a sua incidência na Crítica é inquestionável — a “aliança”
subjaz ao manuscrito de 1843. Tal incidência parece dar razão a boa
parte da tradição interpretativa (recorde-se Godelier) que procura
identificar a originalidade da Crítica nessa “generalização”, por Marx, da crítica de Feuerbach a Hegel e a sua como que “extensão”
ao domínio do direito e da política. Essa identificação, diante do que
vimos, tem algum sentido, mas é precária por vários motivos, dois dos
quais palmares — e vinculados ao que assinalei há pouco: a) aquelas “generalização” e “extensão” não são apanágio de Marx, mas uma tendência mais ou menos difusa na esquerda hegeliana (pense-se em Ruge) e b) não deixa explícito com o vigor necessário que ambas, “generalização” e “extensão”, são implementadas por Marx num sentido que desloca ou infirma a tematização ocorrente nas “fontes”.
Em meu juízo, a originalidade da Crítica não deve ser buscada nestas “generalização” e “extensão”, nem no registro das diferenças em relação às “fontes” — embora compreenda estas e, com as reservas já enunciadas, implique aquelas. Nem, ainda, no duríssimo tratamento a que Marx submete a construção hegeliana — embora se ligue estreitamente a ele.[28] Penso, alternativa mas não excludentemente, que a originalidade do conteúdo do manuscrito de 1843 situa-se na perspectiva teórica peculiar que Marx então assume, fundada num procedimento da crítica histórico-sistemática.
Em meu juízo, a originalidade da Crítica não deve ser buscada nestas “generalização” e “extensão”, nem no registro das diferenças em relação às “fontes” — embora compreenda estas e, com as reservas já enunciadas, implique aquelas. Nem, ainda, no duríssimo tratamento a que Marx submete a construção hegeliana — embora se ligue estreitamente a ele.[28] Penso, alternativa mas não excludentemente, que a originalidade do conteúdo do manuscrito de 1843 situa-se na perspectiva teórica peculiar que Marx então assume, fundada num procedimento da crítica histórico-sistemática.
Com efeito, Marx resgata de suas “fontes” inúmeras sugestões — do mesmo modo como recusa outras tantas —, mas insere-as numa ótica totalmente nova: atribui-lhes uma funcionalidade distinta,[29] que consiste em explorar o seu potencial crítico operando simultaneamente sobre a razão hegeliana e o seu objeto. Marx não examina as categorias hegelianas e sua coerência e articulação específicas, de uma parte, e, de outra, a apreensão que realizam do processos que pretendem figurar — isto é: não faz crítica interna e crítica externa. O seu procedimento é outro, revolucionário: procura apanhar a dinâmica mesma da filosofia hegeliana do Estado enquanto movimento constituinte do seu objeto no plano do pensamento; a crítica marxiana não incide, destarte, sobre componentes da filosofia hegeliana do Estado, mas sobre esta tout court: investe contra toda a construção hegeliana do Estado, desmontando os seus vícios lógicos, seu misticismo e seu empirismo, no mesmo movimento de desmontagem das suas falsificações históricas — Marx investe contra a filosofia do Estado de Hegel porque esta, falseando o seu objeto (o Estado), falseia-se enquanto construção teórica.[30] Porque já enquadrando o Estado como resultado de um processo histórico determinado (e tomando como marco decisivo a Revolução Francesa, que “consumou a separação entre a vida política e a sociedade civil” — Marx, op. cit., p. 100), Marx pode discernir na tematização de Hegel o seu caráter relativo oculto, histórico: o caráter de filosofia deste Estado — não é por acaso que, como transcrevi acima, Marx nota que “não há por que criticar a Hegel por descrever a essência do Estado moderno, tal como é, mas por fazer passar o que é pela essência do Estado”. A mistificação da filosofia do Estado é a mistificação da razão hegeliana porque é a mistificação do Estado — ela, a filosofia, é o Logos do próprio Estado, que se quer precisamente o que Hegel pensa dele;[31] a mistificação histórica é a mistificação sistemática (em Hegel): o sistema (da Filosofia do direito) é mistificado e mistificador porque a história (o Estado) mistificou-se.
É essa perspectiva teórica peculiar, inédita no processo de dissolução do hegelianismo, que singulariza a intervenção marxiana de 1843. As suas críticas a Hegel, inspiradas nas várias “fontes”, revestem-se de uma tendencial concreção — por isso, escapam ao formalismo de Trendelenburg e à inconsequência de Feuerbach, mas, ao mesmo tempo e no mesmo movimento, fogem às limitações de Ruge: a emergente concreticidade remete a discussão para fora do âmbito jurídico-político. Aqui o aspecto revolucionário da Crítica: a postura de crítica histórico-sistemática que começa a se configurar na reflexão de Kreuznach conduz o procedimento analítico para além das fronteiras jurídico-políticas — a crítica política (recorde-se que esta é a preocupação imediata de Marx) da filosofia do Estado tende a converter-se em crítica social, em crítica da sociedade.
É preciso dizê-lo com a máxima ênfase: na Crítica, esse trânsito do político ao social não é levado às suas consequências — estamos diante apenas do seu passo inicial. Entrentato, já em 1843, ele não é um simples projeto implícito inscrito no manuscrito de Kreuznach: é mesmo um processo teórico-metodológico perceptível, que peculizariza Marx entre todos os seus contemporâneos e cujo aprofundamento extensivo e intensivo, nos anos seguintes, responderá precisamente pela emergência da teoria social marxiana.
A visibilidade desde emergente processo teórico-metodológico é indiscutível se nos ativermos ao principal núcleo problemático que Marx enfrenta, a relação Estado/sociedade civil. A Crítica não só “inverte” a explicação genética proposta por Hegel, demonstrando os artifícios lógicos que sustentam a construção mistificada/mistificadora da Filosofia do direito. A “inversão” vai necessariamente acompanhada de uma nova compreensão daquela relação, que se apreende como não orgânica e sim dialética, com o Estado posto não mais como mediação universal dos interesses privados e gerais e sim como instância alienada da representação (também alienada) da contraposição privado/público — a autonomia que a Filosofia do direito confere ao Estado, à “esfera política” como tal, é dissolvida pela remissão à vida social. E não só no eixo temático Estado/sociedade civil o mencionado processo teórico-metodológico é verificável: também o é, decorrentemente, na crítica à teoria hegeliana da representação, na funcionalidade da constituição, na concepção de soberania e, marcantemente, na detecção das relações entre propriedade, trabalho e cidadania. Em todos esses passos, como na concepção de democracia que toda a Crítica exsuda,[32] o político remete ao social.
A originalidade do manuscrito de 1843, nessa linha interpretativa, reside no giro que ele documenta: Marx transcende os limites da crítica anti-hegeliana ao encaminhar a sua resolução para fora do político, ao impeli-la para o domínio do social. A crítica do Estado — e da sua reconstrução filosófica abstrata — é hipotecada à crítica da sociedade civil (burguesa). Marx está encontrando, aqui, a ponta daquele “fio condutor” a que permanecerá aferrado até seus últimos dias.
Evidentemente, na Crítica surpreende-se esse trânsito da análise jurídico-política à crítica social em estado emergencial, ainda in nuce, o que explica muitas das soluções insuficientes (ou não soluções) que Marx alcança.[33] O essencial, entretanto, é que já inscrita na Crítica a grande viragem que determinará o perfil intelectual de Marx — a ultrapassagem da filosofia especulativa no rumo da teoria social.
= = =
Notas:
[1] O texto — a que me referi sob a designação abreviada de Crítica — tem um precária edição portuguesa (Marx, s.d). Segui a versão castelhana contida no volume 5 das Obras de Marx y Engels (Marx-Engels, 1978), que enfeixa escritos marxianos de 1843/1844.[2] Sobre a data da redação do manuscrito, cf. as informações de Rossi (1963, 2, p. 295-301). Cabe observar que o texto que nos chegou é incompleto: faltam-lhe as quatro primeiras páginas.[3] Esta é a caracterização da Filosofia do direito por Adorno (1974, p. 47). Uma edição acessível do texto hegeliano encontra-se em Hegel (1968).[4] Uma das peculiaridades da operação marxiana de 1843 é a totalização emergente no processo de crítica a Hegel: o rompimento político é parte constitutiva da superação filosófica (que, sabe-se, não se realiza inteiramente por esta época), ambos ocorrentes com o deslocamento da problemática filosófica para o nível da prática social. Mesmo com um recusa enfática de qualquer “corte epistemológico” entre o jovem Marx e o Marx da maturidade, à moda de Althusser, é preciso concordar com Lefebvre (1976, 2, p. 138) que, tratando deste giro, nota que “o corte metodológico e teórico implica o corte político, portanto prático”.[5] É aí que surge a primeira análise de conjunto do modo de produção capitalista; sobre este ponto, cf. adiante, 1847: Marx contra Proudhon.[6] Esta introdução, escrita entre dezembro de 1843 e janeiro de 1844, mereceu uma tradução de José Carlos Bruni e Raul Mateos Castell, publicada em Temas de Ciências Humanas (São Paulo, Grijalbo, v.2, 1977).[7] Esta passagem deve contribuir para ultrapassar a noção, simplista, de que entre Marx e Hegel o diferencial se resume à “inversão materialista” operado pelo primeiro. A démarche marxiana não se restringiu a “colocar a dialética sobre seus próprios pés” — como Lukács (1978, p. 65) afirmou, havia que desenvolver “um método fundamentalmente novo e oposto à dialética hegeliana”.[8] Cf., na Crítica, especialmente as glosas referentes aos parágrafos 261, 269, 279, 299, 301-304 da Filosofia do direito hegeliana.[9] Recorde-se que a passagem por Kreuznach, em termos pessoais, está ligada ao casamento com Jenny von Westphalen, celebrado em junho de 1843.[10] Uma excelente panorâmica dessa experiência é oferecida por Cornu (1976, 2, cap. I).[11] Por isso, inteira razão assite a Löwy quando, sugerindo o cariz tradicional do “problema político” de Marx em 1843, indica que este se resumia no empenho de proteger a universalidade do Estado contra os interesses privados (Löwy, 1978, p. 64).[12] Bobbio (1982) tece interessantes considerações sobre a subversão do jusnaturalismo em Hegel.[13] Para uma análise desse destino, cf. Rossi, op. cit.[14] Esta formulação lukacsiana aparece em Realistas alemães do século XIX e foi retomada por Schmidt (1975).[15] Não se deve subestimar a influência exercida sobre Marx pelos então “comunistas filosóficos”: A questão judaica revela os influxos de Hess e o ensaio de Engels, de 1843-1844, acerca da Economia Política (in Netto, org., 1981), foi de capital importância para a evolução do pensamento marxiano.
[16] De fato, ela ocuparia Marx — e Engels — basicamente entre 1844 e 1846, indo de A sagrada família (1845) a A ideologia alemã (1845-1846).[17] A experiência recenta era, claro, a da Gazeta Renana; no entanto, sabe-se, desde 1841, na sua Dissertação, que Marx já tinha Hegel como problema (Rubel, 1970; Lukács, 1978).[18] Ao que eu saiba, foi Della Volpe que mais decididamente apontou o aristotelismo subjacente à Crítica (Della Volpe, 1978); posteriormente, este problema foi retrabalhado por Dal Pra (1971) e Rossi (op. cit.).[19] As Investigações lógicas de Trendelenburg, publicadas em Leipzig, constituem uma dura crítica ao princípio mesmo da lógica de Hegel. Marx estudou a obra logo que ela veio à luz e Bauer esperava dele uma análise do livro (carta de Bauer a Marx, 31/3/1841).[20] Cf. como Marx salienta uma interpolação: “[...] Uma existência empírica é tomada sem nenhum espírito crítico como a verdade real da Ideia” (Marx, op. cit.m p. 49). O vício empirista é igualmente ressaltado: “[...] A realidade empírica é tomada tal como é” (idem, p. 10).[21] Examinem-se, por exemplo, as inferências epistemológicas e metodológicas que se podem extrair, entre outras, das glosas aos parágrafos 275, 278-279, 280-281 e 283 da Filosofia do direito.[22] Esta revista, editada em Dresden, dava continuidade aos Anais de Halle, onde, desde 1839, a crítica dos jovens hegelianos derivava para o radicalismo.[23] O pessimismo de Ruge, derivado daí, é notável na sua correspondência com Marx (cf. Löwy, 1978, p. 67 e ss.).[24] Já neste texto, Ruge acena com a necessária “ação recíproca” dos filósofos alemães com os políticos franceses — perspectiva no qual enquadrará, depois, o projeto dos Anais Franco-Alemães. Recorde-se, a propósito, as palavras finais da Introdução publicada por Marx naquele periódico: “Quando forem cumpridas todas as condições anteriores, o dia da insurreição na Alemanha será anunciado pelo canto do galo gaulês”.[25] Cf., na Crítica, a glosa do parágrafo 270 da Filosofia do direito. A formalização hegeliana é tão exorbitante que Marx chega a lembrar que, para Hegel, “não é a lógica das coisas, mas a causa da Lógica o especificamente filosófico”; que a Hegel “o que verdadeiramente interessa não é a filosofia do Direito, mas a Lógica” — e que as concreções que Hegel atribui ao Estado são secundárias prescindíveis, porque meras derivações de “um capítulo da [Ciência da] Lógica” (Marx, op. cit., p. 21).[26] O referido pessimismo de Ruge pode ser estudado a partir desta limitação — pessimismo que terminou por esterilizar a sua intervenção política, numa trajetória emblemática do radicalismo democrático alemão (cf. sobre isto, Lukács, 1978), p. 78).[27] Sobre esta concepção de Estado, em 1843, de Feuerbach, um dos melhores conhecedores de suas relações com Marx escreve: “Se isto quer ser uma caracterização das relações reais, não apreende a realidade social, mas, antes à la Hegel, mistifica-a; se, em troca, pretende o sentido de um postulado democrático-revolucionário, então indica uma regressão, comparativamente a Hegel, à abstração kantiano-fichteana do dever ser” (Lukács, 1978, p. 58).[28] No curso ulterior de sua reflexão, os vários reexames que Marx fez de Hegel redundam em juízos mais matizados e ricos acerca do filósofo que aqueles que comparecem na Crítica; belas sugestões sobre este ponto foram feitas por Mészáros no ensaio “Marx filósofo” (in Hobsbawn, org., 1980, 1).[29] O termo funcionalidade inspira-se na exegese de Rossi sobre a Crítica (op. cit.), mas não implica solidariedade às inferências deste brilhante intérprete.[30] Pouco importa, nesta linha argumentativa, que Marx indique o apriorismo formalista e logicista com que Hegel se aproxima do Estado (cf. supra, nota 25), já que — como a análise marxiana igualmente revela — é o Estado mesmo, tal como Hegel o concebe histórica e realmente, que se compatibiliza com o logicismo: “A lógica não está a serviço da fundamentação do Estado; o Estado é que serve para fundamentar a lógica” (Marx, op. cit., p. 21).[31] De fato, a filosofia hegeliana do Estado é a retórica do próprio Estado: se não a hegeliana “substancialidade imediata do Espírito”, pelo menos o “fim imanente” da sociedade civil, “a realidade efetiva da liberdade concreta”, a “realização da liberdade”, contraposto — e por isso assegurador do cumprimento da universalidade — ao “espetáculo da libertinagem e da miséria, com a corrupção física e ética”, imperante na sociedade civil (Hegel, op. cit., pp. 205, 229, 287 e 291-292). Não é casual que Lefebvre, referindo-se à concepção hegeliana do Estado, observe que ela é a “filosofia em ato”, e que a concepção mesma de Hegel seja o “protótipo ou matriz do Estado moderno” (Lefebvre, op. cit., p. 128 e 162).[32] Concepção obviamente precária, porque anterior à análise concreta da sociedade burguesa; cf. a nota seguinte.[33] É o caso específico da significação que Marx atribui, então, ao sufrágio universal. Com inteira razão, Rossi (op. cit., p. 420) observa que aí aparecem os limites da concepção democrática da Crítica: trata-se de uma concepção que carece de “uma crítica da sociedade burguesa moderna”.
= = =
NETTO, J. P. “Marx, 1843: o crítico de Hegel”. In: Marxismo impenitente: contribuição à história das ideias marxistas. São Paulo: Cortez, p. 13-30, 2004, p. 13-30.
= = =
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