sábado, 6 de fevereiro de 2021

Diálogo de surdos: crítica à filosofia analítica

por István Mészáros

Há alguns anos, houve uma conferência filosófica em Royaumont. Seu relatório foi publicado com o título La philosophie analytique[1], e um crítico escreveu sobre o volume:

Este é o registro de um diálogo que não se realizou, um dialogue de sourds. [...] A vontade de dialogar parecia inexistir entre alguns dos “oxfordianos”. Isso pode ter acontecido graças ao desprezo com que os filósofos “continentais” são tratados em Oxford, que dificilmente lhes confere o status de interlocutores dignos. Mas, à exceção de um caso, isso realmente não explica o acontecido. A raiz dessa relutância parece estar mais no fato de que os interlocutores continentais queriam discutir problemas que raramente são discutidos em Oxford e que usualmente são considerados perda de tempo. [...] Os interlocutores, naturalmente, queriam discutir problemas de metodologia e a justificativa filosófica dos procedimentos da escola. E esse não é um assunto comumente discutido em Oxford. Na verdade, é assunto que raramente precisa ser levantado, uma vez que Oxdord tem vivido por muito tempo em estado de solipsismo cultural, sem comunicação com as escolas rivais, e, assim, raramente enfrenta um desafio que exigiria esclarecimentos.[2]

As possibilidades de um diálogo bem-sucedido são um pouco melhores hoje que à época da conferência de Royaumont? Se a resposta for sim, não se deve deixar a questão na simples afirmação da existência de uma atitude mais otimista em relação aos problemas filosóficos, como é feito na introdução de uma coleção de ensaios bem recente sobre filosofia política, na qual se lê que “o clima é muito diferente e muito mais favorável do que há seis anos”[3]. Mudanças dessa natureza precisam ser explicadas, e a explicação certamente não é dada ao se afirmar que “não acreditamos mais que a filosofia política esteja morta”, porque permanece sem resposta a pergunta: “em primeiro lugar por que você acredita nisso?”.

Nas páginas seguintes, tentarei revisar os problemas com que me confrontei, quando ministrava aulas de filosofia na Grã-Bretanha e estive em estreito contato com a filosofia britânica contemporânea, pois esses problemas podem causar dor de cabeça a todos aqueles que não foram educados na escola que dominou o pensamento filosófico britânico, durante as duas últimas décadas.

I. Preferências não reconhecidas

As primeiras perguntas que as pessoas de fora provavelmente farão podem ser algo do tipo: quais são as principais características e as origens da filosofia britânica contemporânea? Descobrirão, sem dúvida com desapontamento, que o número de trabalhos que trata diretamente dessa questão é bem pequeno. Na maioria das vezes, serão aconselhados pelos filósofos britânicos a ler os originais e a descobrir por si mesmos quais são aquelas características.

Até certo ponto a justificativa para esse conselho é que, no continente, há muitas generalizações do tipo dos manuais didáticos, que permitem ao aluno evitar a leitura de originais e adquirir um conhecimento bastante superficial de nomes e sistemas estruturais, sem compreender o espírito das várias escolas filosóficas que ele é compelido a percorrer.

Mas por que supor que não há outro caminho entre esses dois extremos? Afinal de contas, um mapa não necessariamente atrapalha alguém que queira encontrar lugares importantes em terra desconhecida. Não se pode contestar que, ao conhecermos todos os nomes de um mapa, dificilmente se conheceria alguma coisa sobre o lugar em si. Mas disso não se conclui que os mapas devam ser descartados.

No tocante à história da filosofia, a filosofia analítica britânica está centrada principalmente na herança sistemática de Platão, Hume, John Stuart Mill, G. E. Moore e Wittgenstein. Esse conjunto de preferências é, contudo, apresentado como a escolha natural que não precisa de justificativa de espécie alguma. Que Aristóteles seja negligenciado como sistematizador; que grandes filósofos como Diderot sejam completamente ignorados; que Hegel só apareça como uma espécie de espírito maligno; que haja pouca inclinação tanto para lidar com os problemas levantados por Marx, quanto para os reconhecer, e que o existencialismo seja dificilmente mencionado; tudo isso não importa, se você acredita que sua orientação é tão natural, e não tendenciosa, que nem mesmo deva ser chamada de escolha. Assim, as reivindicações de rivais tem de ser descartadas não com argumentos concretos, mas en bloc, como manifestações da “confusão metafísica”, incapaz de reconhecer uma escolha natural.

Dessa forma, se você perguntar pela justificativa para um conjunto de preferências, a resposta é que sua própria demanda é a prova da confusão em que você se encontra. É desnecessário dizer que não pode haver diálogo algum nessa base. A argumentação nesse sentido é circular, porque toma como prova para o seu próprio saber a recusa de abordagens alternativas, enquanto, ao contrário, tanto a auto-aprovação quanto a rejeição de alternativas precisariam ser justificadas, cada uma separadamente.

A condição elementar para um diálogo frutífero não é, naturalmente, a facilidade em se desistir de preferências existentes, mas o reconhecimento tranquilo de que essas preferências são preferências, por mais que sejam passíveis de justificação. Nesse contexto, pode-se reconhecer que uma das principais características da filosofia analítica britânica, a recusa à discussão de questões de caráter abrangente, é uma das possíveis abordagens ao mundo contemporâneo, mas não “a revolução em filosofia”, como os adeptos dessa abordagem a denominaram há alguns anos.[4]

Seria uma tarefa importante investigar por que a filosofia britânica tomou o rumo que tomou. Aqui pode-se referir a tentativa de Gilbert Ryle de explicar o caráter analítico da filosofia britânica. Ele escreve na introdução a The Revolution in Philosophy:

A filosofia se transformou em um disciplina acadêmica separada, parcialmente destacada da cultura clássica, da teologia, da economia e, por fim, da psicologia. Os professores de filosofia de uma universidade chegaram a constituir uma faculdade, e organizaram seus próprios grupos de discussão. A partir de 1876, surgiu o periódico trimestral Mind e, não muito mais tarde, formou-se a Aristotelian Society, em cujas reuniões eram lidos e discutidos trabalhos que, em seguida, eram impressos nos relatórios anuais da Sociedade. Essa nova prática profissional de submeter problemas e argumentos à crítica especializada de colegas de profissão levou a uma preocupação crescente com questões de técnicas filosóficas e a uma paixão crescente pelo rigor do raciocínio. [...] Os filósofos tinham de ser agora filósofos de filósofos.[5]

Essa análise é reveladora em mais de um aspecto. Primeiro — tomando de empréstimo uma comparação — porque tenta explicar a origem do mal pela queda do homem, Ryle aqui se compromete a encontrar uma explicação para o caráter analítico altamente profissionalizado (o que ele chama, de maneira otimista, de “a sofisticação de virtuoso”) da filosofia britânica. Naturalmente, ele enfatiza muito a influência das ciências naturais no comportamento geral da filosofia britânica, apesar de boa parte de sua explicação residir no fato de a filosofia ter-se tornado “uma disciplina acadêmica separada”. Compromete-se a descobrir por que os filósofos britânicos se tornaram “mais técnicos em seu discurso”, isto é, filósofos de filósofos, e descobre que foi porque “os filósofos tinham agora de ser filósofos de filósofos”. Assim, sua explicação é dada em uma referência circular a fatos que, por si sós, poucos precisam de explicação.

Ou precisam? Obviamente que não, se você estiver convencido de que o estado atual da filosofia é o ideal. Nesse caso, tudo que precedeu a revolução em filosofia aparecerá como um momento subordinado a esse auge supremo. E a rejeição implícita à possibilidade do que ela poderia se (agora e no futuro) traz, contudo, a tendência extremamente problemática de se tratar fatos históricos com a maior liberalidade, enfatizando unilateralmente no passado, de modo desproporcional, práticas que parecem assemelhar-se às atuais, negando todos os traços contrastantes, a fim de possibilitar o alcance das famosas conclusões acríticas.

A atitude daqueles que não estão muito satisfeitos com o estado de coisas descrito de modo confiante por Ryle — e há um número razoável deles entre os filósofos britânicos — será bem diferente. Assim que entenderem que, por exemplo, “Uma das consequências de se tratar a ética como a análise da linguagem ética é que isso leva à trivialidade crescente do assunto”[6], eles estarão preparados para estabelecer suas preferências como preferências e, fundamentos nesse princípio, iniciar um diálogo com as outras tendências.

A abordagem de Ryle não só não consegue dar uma explicação para os problemas em questão, como também negligencia ou obscurece fatos importantes que são essenciais para uma explicação plausível. Essa abordagem enfatiza tudo isso como sendo um fenômeno especificamente britânico. Todavia, a verdade é que:

(1) a filosofia analítica não se originou na Grã-Bretanha, mas no continente. Frege influenciou profundamente não apenas Wittgenstein, mas Bertrand Russell também, assim como G. E. Moore, principalmente em sua versão russeliana. Mesmo no desenvolvimento recente da filosofia analítica britânica, o estímulo vital veio essencialmente da Áustria (o “Círculo de Viena”, Wittgeinstein), embora, nesse estágio, possa ser detectada uma certa influência recíproca entre G. E. Moore e o último Wittgenstein;

(2) é característica da cultura do nosso século concentrar-se na descrição e análise diretas dos tipos diferentes de experiência. (“A era da análise!”) Essa tendência compreende a maioria das ciências sociais e uma variedade de tendências artísticas, e não está, de forma alguma, confinada à filosofia, quanto mais à filosofia britânica.

Comparada a esse pano de fundo, a pretendida explicação que faz referência ao fato de que os filósofos britânicos tiveram de publicar pequenos artigos no Mind e nos Procedings of the Aristotelian Society parece trivial e inteiramente irrelevante, pois, mesmo se fosse verdade que “a extensão de um artigo ou de um trabalho não seja suficientemente ampla para admitir uma cruzada contra ou a favor de qualquer ‘ismo’ poderoso”[7], tal afirmação não poderia ser feita sobre os longos e numerosos livros que os filósofos britânicos publicaram, tanto quanto seus colegas continentais. É necessário aqui, primeiro, tentar explicar um fenômeno europeu, em seu contexto mais amplo, no seu quadro apropriado e em escala europeia.

As questões mais importantes a serem exploradas são: por que as tendências analíticas não se tornaram dominantes no seu lugar de origem, no continente, e por que foram capazes de conquistar o cenário filosófico britânico? Além disso, por que a filosofia britânica se tornou quase que exclusivamente analítica depois da Segunda Guerra Mundial, pois, apesar da impressão que poderia ter pela leitura de The Revolution in Philosophy, antes e também durante a Segunda Guerra Mundial a “filosofia analítica” foi apenas uma das muitas tendências na Grã-Bretanha, e o próprio Gilbert Ryle escreveu, na década de 1930, em linguagem muito diferente daquela, o livro The Concept of Mind.

Essas questões são importantes porque, a menos que se possa apontar para fenômenos que indiquem o enfraquecimento dos fatores que resultaram, depois da Segunda Guerra Mundial, no domínio de uma atitude exclusivista em filosofia, seja a estigmatização de todas as outras abordagens como “absurdo metafísico” ou “confusão conceitual”, seja, na melhor das hipóteses, exibindo a indiferença cortês do não reconhecimento efetivo, não pode haver nenhuma esperança de discussões frutíferas com base no entendimento mútuo. A conferência de Royaumont estava fadada ao fracasso porque os participantes não demonstraram sinais de estar preparados para reconsiderar as bases das atitudes exclusivistas. Como colocou R. P. Van Breda:

Frequentemente, deu-se a entender que: “Você está fazendo, sem dúvida nenhuma, algo diferente: continue, se lhe interessa. Tanto melhor”. De minha parte, acredito que há aqui um julgamento de valor implícito. Quando encontramos você, somos, às vezes, muito educados e não suficientemente honestos. Acredito que é uma verdade pura e simples dizer que há muitos filósofos continentais que não estão minimamente interessados na sua filosofia. E ouso dizer que acontece o mesmo com você no que diz respeito aos filósofos continentais.[8]

Essa atitudes só podem levar a um “dialogue de sourds”. É por isso que o primeiro passo em direção a uma comunicação frutífera de ideias tem de ser o reconhecimento das preferências existentes e, consequentemente, uma mudança de atitude, do exclusivismo ao entendimento mútuo.

II. Incoerências

Na sessão conjunta da Aristotelian Society e da Mind Association em 1957, A. E. Teale, em seu discurso inaugural, protestou contra

as várias interdições lançadas pelos filósofos que, primeiro, nos dizem que determinar fatos empíricos está além de seu campo de ação e, em seguida, continuam nos informando que, por exemplo, “o remorso não difere, de nenhum modo moralmente significativo, do embaraço”, ou que “as nossas consciências são o produto dos princípios que o nosso aprendizado anterior implantou indelevelmente em nós”.[9]

As interdições criticadas severamente por Teale estão, é claro, intimamente ligadas a uma concepção geral de filosofia que teremos de discutir depois. Nesse momento estamos preocupados com a experiência fantástica de ver um princípio contradito, com frequência, no mesmo artigo, e algumas vezes apenas a algumas linhas da generalização em questão.

Um exemplo pode ser a discussão recente de J. L. Austin da verdade, que ganhou muita influência. Ele afirma que “Ficamos obcecados com a ‘verdade’ ao discutirmos afirmações, do mesmo modo que ficamos obcecados com a ‘liberdade’ ao discutirmos a conduta”. Em seguida, ele propõe abolir a discussão de problemas como a liberdade e a verdade — e de qualquer coisa que seja feita livremente ou não — e concentrarmo-nos, no lugar desses problemas, em advérbios como “acidentalmente”, “relutantemente”, “inadvertidamente”, porque, dessa maneira, de acordo com Austin, “nenhuma inferência conclusiva é necessária”. Mas é curioso notar que, na frase seguinte, ele diz: “Como a liberdade, a verdade não passa simplesmente de um mínimo declarado ou de um ideal ilusório”[10], e nada pode ter o caráter de uma afirmação mais conclusiva do que essa frase, seja qual for o seu significado.

Naturalmente, a afirmação de Austin não é uma “inferência conclusiva”: não há garantias de que ela possa ser inferida do que foi dito anteriormente. É uma assertiva categórica sem a menor tentativa de encontrar argumentos que a corroborem. Mas, o que é mais importante, o autor nos aconselha a fugir dos problemas da verdade e da liberdade a não fazer generalizações sobre eles, e a aderir a advérbios de caráter muito mais particularizado; em seguida, faz, de forma dogmática, uma generalização da mais alta ordem expressando suas próprias preferências altamente céticas.

Muitos negariam que nos tornamos obcecados com a verdade quando discutimos afirmações, e com a liberdade quando discutimos a conduta. Essas “obsessões” são, na verdade, bem mais antigas que as discussões filosóficas desse tipo ou, por assim dizer, mais antigas que as discussões de qualquer outro tipo.

Se há qualquer coisa óbvia a respeito das fontes daquilo que Austin chama de “enganos filosóficos”, é o fato de que elas são múltiplas e muito mais persistentes do que se poderia desejar. Por conseguinte, é um equívoco reduzir essa complexidade de causas a supostas “confusões linguísticas”. Uma das maiores dificuldades das discussões filosóficas é que aquilo que uma tendência considera como enganos pode ser exaltado por outra como conquistas, e vice-versa. Em uma situação como essa, torna-se extremamente duvidoso dizer que o uso emocional de adjetivos como “óbvio” e “notório” etc., ou mesmo o uso peculiar de aspas, de que estão repletos os trabalhos de Austin, poderia ajudar de alguma forma[11]. E quando as afirmações categóricas e sem fundamentos estão ligadas a incoerências, ou quando as interdições são violadas por aqueles que as lançaram, não se pode razoavelmente esperar nada além de um endurecimento do ponto de vista da posição contrária. Afinal, é uma condição básica de qualquer diálogo que os mesmos critérios de julgamento devam ser aplicados pelos participantes para a avaliação dos argumentos de ambos os lados.

III. A analogia com a ciência natural

Na conferência de Royaumont, quando Austin, Ayer e Ryle foram pressionados a definir sua metodologia filosófica; de uma maneira ou de outra, todos eles se referiram à ciência natural[12]. Austin, por exemplo, enfatizou que a forma em que se deveria proceder em filosofia é “Comme em Physique ou en sciences naturelles”, e disse até mesmo que “Il n’y a pas d’autre manière de procéder[13].

A razão que está por trás dessa posição foi expressa claramente por Austin na mesma discussão e, por sua importância, temos de citá-la na íntegra. Fizeram-lhe a pergunta: quais são os critérios para uma boa análise? Austin respondeu deste modo:

Pour moi la chose essentiale au départ est d’arriver à um accord sur la question “Qu’est-ce qu’on dirait quando?”. A mon sens, l’expérience prouve amplement que l’on arrive à se mettre d’accord sur le “Qu’est-ce qu’on dirait quando” (sur telle ou telle chose), bien que je vous concède que ce soit solvente long et difficile. Si longtemps que cela prenne, on peut y arriver néanmoins; et sur la base de cet accord, sur ce donné, sur cet acquis, nouns pouvons commencer à défricher notre petit coin de jardin. J’ajoute que trop solvente c’est ce qui manque em philosohie: um “atum” préalable sur lequel l’accord puisse se faire au départ. Je ne dis pas qu’on puisse esperér partir, dans tous les cas, d’une donnée considerée comme acquise. Nous sommes tous d’accord pour penser au moins que c’est souhaitable. Et j’rai jusqu’a dire que quelques-unes des sciences expérimentales ont découvert leur point de départ initial et la bonne direction à suivre, précisément de cette manière: en se mettant d’accord sur la façon de determiner une certaine donnée. Dans le cas de la physique, par l’utilisation de la méthode expérimentale; dans notre cas, par la recherche impartiable d’in “Qu’est-ce qu’on dirait quando?”, Cela nous donne um point de départ, parce que, comme je l’ai déjà souligné, un accord sur le “Qu’est-ce qu’on dirait quand?” entraine, constitue déjà, un accord sur une manière, une, de décrive et de saisir les faits.[14]

Como se pode ver, Austin, a exemplo de alguns de seus predecessores, defende procedimentos na linha da ciência experimental, a fim de encontrar um ponto de partida com o qual todos os interessados poderiam concordar. O ideal é o que ele chama de “la recherche impartiable”, isto é, a eliminação do vié ideológico. Mas esse programa é realista? “La recherche impartiable” em filosofia não passa “simplesmente de um mínimo declarado ou de um ideal ilusório”?

A primeira dificuldade que surge nesse contexto é que o datum de partida é necessariamente seletivo (como é, na verdade, tudo em que o conhecimento humano esteja envolvido) e, por conseguinte, sempre podem surgir desacordos, se as posições filosóficas básicas forem diferentes. A analogia com a ciência natural parece não existir aqui, uma vez que a seletividade está tão presente nas ciências experimentais quanto na filosofia e, apesar disso, não resulta naquelas oposições irreconciliáveis no que diz respeito ao ponto de partida e aos critérios de seleção. (Provavelmente porque as alternativas podem ser testadas e o resultado do teste é um julgamento prático inexpugnável.) Na física, por exemplo, concorda-se geralmente com o ponto de partida, porque um certo tipo de limitação imposta às suas investigações, através dos séculos, resultou em conclusões práticas, que simplesmente estavam fadadas a ser incorporadas às formulações de gerações sucessivas de físicos, se estas quisessem que a sua ciência avançasse. Se os físicos sempre começassem pelo nada terminariam inevitavelmente no nada e, consequentemente se alguém começasse a questionar o ponto de partida praticamente estabelecido e os critérios de seleção dessa ciência particular, esse alguém deveria se colocar fora do quadro da física. Em filosofia, entretanto, questionar os diferentes pontos de partida, bem como os critérios de seleção com vistas a encontrar justificativa para aquele ponto de partida que um determinado filósofo se propõe a anotar não é apenas legítimo, mas necessário também. Em consequência, se o objetivo é a produção de um acordo geral com relação aos pontos de partida, ou bem fica abolida a seletividade (o que é impossível), ou se estabelece um confronto entre os fatores responsáveis pelas oposições antagônicas que inexistem na ciência natural.

Obviamente, Austin não pode escolher a segunda alternativa, porque isso equivaleria a admitir que a analogia com a ciência natural não é válida (como vimos, a situação na filosofia não é análoga, mas contrasta totalmente com aquela da ciência natural) e, dessa forma, as ilusões ligadas à concepção formulada nas ciências naturais deveriam ser deixadas de lado. Por conseguinte, ele deve tentar abolir a seletividade. O resultado é uma hesitação incoerente entre as reivindicações de integralidade e a admissão de que o qual ele propõe é uma escolha. Primeiro, ele diz que se deve “s’assurer que l’inventaire est bien complet” e, portanto, deve se preparar “une liste de tout ce qui se rapporte, dans le language, au sujet que nous examinons: de tout les mots que nous emploierions, de toutes les expressions dans lesquelles ce mots rentreraient” (o que é não apenas uma impossibilidade empírica, mas também lógica). Mas, na frase seguinte diz que “il est essentiel que ce choix soit ssez representatif” Austin entende que o programa de integralidade só seria plausível se se pudesse “prendre un problème qui porte sur un point suffisement limite[15]. Mas como se poderia esperar um acordo geral — o objetivo de todo o exercício — quando tanto representatividade quanto “limitação suficiente” estão envolvidas?

Isso nos leva à segunda dificuldade, bem mais importante. Surge a seguinte questão: que limitação deve haver em um problema para que este seja qualificado como “limitado suficientemente”, permitindo-nos, assim, atingir a integralidade e o acordo geral? Supondo que alcançássemos um acordo geral com relação a um assunto suficientemente limitado, a questão que realmente interessa é se o assunto assim limitado é importante filosoficamente ou não? Se se limitam e restringem os problemas à extensão que é considerada necessária, para atingir a integralidade e o acordo geral, não estamos também nos confinando a trivialidades? (Assim como não estamos pedindo “a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade”, quando investigamos “sobre, por exemplo, a batalha de Waterloo”[16] — mas quem foi que pensou que estivéssemos?) É altamente significativo que Bertrand Russell, que compartilha, de várias maneiras, das metas de uma filosofia que tem como objetivo um acordo geral, a ser conseguido através de procedimentos similares aos da ciência natural, rejeite a abordagem linguística de “Qu’est-ce qu’on dirait quand?”. Se os desacordos são tão fortes entre os filósofos que, embora diferentemente, compartilham, contudo, desse objetivo global, como se pode esperar de modo realista por um acordo geral sobre qualquer coisa de importância filosófica?

Na verdade, toda a evidência que Austin apresenta na discussão de Royaumont para sua tese é a categórica: “L’expérience prouve amplement que l’on arrive à se mettre d’accord” etc. Poder-se-ia perguntar: experiência de quem? O que se espera que aceitemos não é apenas a afirmação muito duvidosa segundo a qual, com base na pesquisa linguística imparcial — a suposta equivalência filosófica da metodologia experimental — é possível conseguir o acordo geral, mas também que esse tipo de abordagem é um requisito necessário de toda a filosofia que quer se emancipar dos “devaneios” (expressão de Austin).

Ninguém pode discutir que “un accord sur le ‘Qu’est-ce qu’on dirait quand?’ (isto é, o que Austin apresenta como uma condição necessária dos procedimentos filosóficos frutíferos) entraine, constitue déjà, um accord sur une certaine maniére, une, de décrire et de saisir les faits”. Mas, precisamente por essa razão, apenas aqueles que já estão compromissados com a posição filosófica da linguagem podem insistir na importância filosófica de acordos linguísticos dessa espécie. Outros continuarão dizendo o que T. M. Knox escreveu: “Muito do que estes escritores linguísticos dizem parece-me verdadeiro, mas mesmo assim, não importa[17].

Não seria bem mais produtivo se, ao invés de perseguir os objetivos frustrados da “filosofia não tendenciosa”, formulada cientificamente, fossem admitidas as dificuldades existentes? O desejo de abolir todas as tendências na filosofia de forma que “entraine, constitue déjà um accord”, isto é, a aceitação do viés da filosofia da linguagem, só pode resultar em incoerências, porque objetivos desse tipo são autocontraditórios.

O viés linguístico neopositivista também indica que todas as abordagens não “suficientemente limitadas” são descartadas — de novo, não a partir de argumentos, mas da autoridade de uma suposta analogia com a ciência. Isto pode ser ilustrado com outra citação de J. L. Austin:

Nous devons aller chercher nos sujets dans les régions moins septiques, moins âprement disputées. J’y vois pour ma part trois raisons: em premier lieu, nous nous y ferons la main, san trop nous échauffer; en second lieu, les grands problems qui ont résisté à tous les assauts de front, peuvent céder si nous les attaquons par un biais; en troisième lieu, et ceci me parait de beaucoup le plus important, n’y a-t-il pas quelque risqué à prétende à savoir à l’avance quells sont les problems les plus importants, à supposer même, ce qui est encore à voir, que nous puissions pretender connaître la meilleure méthode d’approche pour les attaquer? Je crois qu’en prenant du recul, nous aurons plus de chance de voir se profiler les sommets, et de trouver la bonne voie, chemin faisant. L’ example de la physique est ici encore, instructif. En bricolant, de droite et de gauche, avec ses instruments, comme le faisait Faraday, on a plus de chance de tomber sur quelque chose de vraiment important qu’en se disant un beau jour: Attaquons-nous à quelque grand problème: demandons-nous, par exemple, de quoi est fait notre univers.[18]

Como podemos ver, Austin põe fé na pura “possibilidade de tropeçar” em algo “verdadeiramente importante”. Em segundo lugar, ele também se contradiz, dizendo, primeiramente, que é inútil fingir conhecer “o melhor método de abordagem” e, em seguida, declarando que a melhor coisa a se fazer é adotar o método instrutivo da física. Podemos detectar um viés significativo, que consiste em justificar a abordagem linguística apelando para o fato de que certas distinções linguísticas são perpetuadas na linguagem escrita e falada através da história[19], mas, agora está determinado a não aplicar as mesmas considerações para decidir quais são os problemas filosóficos importantes. Ao contrário, o fato de que certos problemas filosóficos tenham sido perpetuados através da história é uma evidência para se negar a sua importância, e para afirmar que, até recentemente, a filosofia esteve em um cul de sac [beco sem saída]. Dessa forma, quando convém ao viés da filosofia da linguagem, a história existe de fato; quando for contra esse viés, ela deixa de existir.

O viés está presente não só na rejeição sarcástica das investigações de caráter abrangente, como ao final de nossa citação, mas também na descrição equivocada (no vocabulário de Austin: “pesquisa imparcial”) da ciência como estando confinada a pequenas coisas e progredindo por acaso. O acaso, naturalmente, tem uma função importante no desenvolvimento da ciência, assim como na vida em geral, Mas se há uma realização científica importante, tem de haver mais que apenas “bricoler, de droite et de gauche, avec des instruments”, na esperança de “tropeçar” em alguma coisa que, por acaso, se revelará frutífera. E essa alguma coisa a mais é a relação dos pequenos problemas limitados com aqueles abrangentes. Sem querer minimizar, em hipótese alguma, a importância dos resultados de Faraday, é necessário enfatizar que os Faradays operam em um quadro geral criado pelos Galileus, Newtons e Einsteins. Os grandes cientistas se preocupavam muito com aquelas questões abrangentes que são descartadas veementemente por Austin, com ironia inoportuna, em nome da ciência. E tal preocupação é parte integrante — na verdade, força sintetizadora — das realizações científicas que marcariam época.

Pode-se constatar, assim, que mesmo o mito científico é imposto à filosofia através de uma distorção da ciência, visto que os processos científicos reais não excluem generalizações abrangentes, mas, ao contrário, se baseiam nelas. O que está na raiz de abordagens do tipo é o desejo de fugir de questões abrangentes, de minimizar a importância delas, de negar a sua legitimidade filosófica e, frequentemente[20], até mesmo a sua existência. É esse desejo de fugir das questões abrangentes que resultou em insustentáveis declarações céticas do tipo: “Como a liberdade, a verdade não passa simplesmente de um mínimo ou de um tipo ideal ilusório, da mesma forma que resulta na idealização de uma ciência natural inexistente”.

IV. Estética: uma pedra no caminho

O leitor continental, interessado na posição da filosofia da linguagem sobre questões estéticas, descobrirá, com grande desapontamento, que os periódicos filosóficos britânicos dedicam pouquíssimo espaço à discussão desses tópicos. E descobrirá, com desapontamento ainda maior, que grande parte do que aparece nessa área é altamente irrelevante, porque dificilmente se pergunta: como a solução desses problemas contribuirá para uma melhor avaliação das criações artísticas? Os filósofos da linguagem negarão que essas questões são filosoficamente relevantes.

Até certo ponto, é compreensível que certos filósofos britânicos tenham sentido aversão às formulações estéticas aceitas acriticamente. Wiliam Elton, editor do volume intitulado Aesthetics and Language, cita em sua introdução, com indignação justificável, esta passagem: “a música de Lourié é uma música ontológica; no estilo kierkegaardiano, dir-se-ia também ‘existencial’. Ela nasce nas raízes singulares do ser, na função mais próxima possível da alma com o espírito”[21]; e há, sem dúvida alguma, muitas generalizações similares, isto é, palavras obscuras e vazias, nos trabalhos de estética.

Entretanto, a existência de artigos de estética absurdos não é motivo para se abandonar os problemas em si, pois, bem menos compensador que uma alternativa como essa, é o que se lê em Aesthetics and Language, como resumo do ensaio intitulado The Expression Theory of Art:

Determinado tipo de música tem algumas características das pessoas tristes. É vagarosa, e não ligeira; é baixa e não tilintante. As pessoas tristes se movem mais vagarosamente e, quando falam, falam baixo e suavemente. Associações desse tipo podem, naturalmente, ser multiplicadas indefinidamente. E temos exaltado o conteúdo em detrimento da forma. Acredito que o conteúdo tornou-se um problema de proporções menores, sem muita importância. Mas a forma provou ser importante.[22]

No conjunto, o que não é totalmente trivial é simplesmente um absurdo completo. É, na verdade, o resultado da ignorância das grandes variedades de expressão musical. Mas o aspecto mais inquietante nessa citação é a sugestão implícita de que os problemas não importam, apenas a forma em que se apresentam. Em outras palavras, trata-se de uma exibição de sagacidade, destinada a criar a impressão de que as questões com as quais a teoria da expressão da arte está se debatendo realmente não existem.

Se os filósofos da linguagem querem ser verdadeiros em relação a seu próprio intento de considerar todas as expressões (ou, mais realisticamente, todos os tipos de expressões) em que a palavra-chave de suas investigações ocorre, eles não podem omitir, como têm feito, os problemas ligados à linguagem artística. De fato, Austin estava preparado para admitir isso quando disse em Royamount: “Loin de moi le désir de le exclusure du champ de nos recherches. Leus heure viendra. Je ne me sens pas de taille à les attaquer pour l’instant, voilà tout. Je sais tout ce que cette réponse peut avoir d’insatisfaisant[23].

É um fato que os problemas da linguagem artística tenham sido completamente ignorados no curso da história da filosofia da linguagem. E, considerando as limitações que a filosofia da linguagem se auto-impôs, é duvidoso que ela tenha condições de enfrentar esses problemas. É, na verdade, muito pouco responder a uma crítica como a aqui formulada dizendo simplesmente que a sua vez chegará. Se o descaso com certos problemas é tão grande, há algo mais que simples falta de tempo, ou falha pessoal.

Nesse sentido, o estado desses problemas é revelador quanto à filosofia da linguagem em geral. O fato é que não hesitaria em dizer que a sua vez nunca chegará dentro dos métodos da filosofia da linguagem. Tomemos três exemplos — três tipos diferentes de uso da linguagem artística — para entender por que não.

(1) “A beleza é verdade, a verdade, beleza.”
(2) “C’est la chaude loi des hommes”, “C’est la dure loi des hommes”, “C’est la douce loi desse hommes.” [“É a lei quente dos homens”, “É a dura lei dos homens”, “É a doce lei dos homens”.]
(3) “Sul ramo del nulla siede il mio cuore.” [“Sobre o ramo do nada senta-se o meu coração.”]

O que o filósofo da linguagem poderia dizer sobre o primeiro exemplo, uma vez que ele não está preparado para dizer outra coisa senão aquilo que tenho ouvido em discussões, que “não faz sentido algum?”. Considerando seus enunciados sobre a verdade etc., em outros escritos, ele poderia sugerir que é mais vantajoso colocar substantivos abstratos e admitir a forma adverbial. Mas o problema com esse tipo de abordagem é que ela deixa escapar o principal: em poesia — por causa da unidade de conteúdo e forma — não se pode mudar nada, sem mudar o próprio conteúdo poético. Pode-se, em geral, reformular, ou “traduzir” fielmente expressões da linguagem comum. Mas nunca se pode fazer o mesmo com a poesia, porque a mudança introduzida significa que o analista estaria falando sobre a própria versão e não sobre o poema de que pretendia falar. A tradução adverbial ou qualquer coisa do tipo está, portanto, totalmente fora de cogitação, no que diz respeito aos problemas da linguagem artística. Dessa forma, se Keats escreve:

Beauty is truth, truth is beauty – that is all
Ye know on earth, and all ye need to know,

o filósofo tem de falar sobre a beleza e a verdade como estão representadas nesse poema particular.

Tomando o segundo exemplo, a situação é ainda pior. Quando referidas a um padrão de medida da linguagem comum, expressões como “a lei quente dos homens”, “a dura lei dos homens” e “a doce lei dos homens” aparecem como muitos estranhas. E, de qualquer modo, se tomadas isoladamente, não fica claro o que elas significam (se é que significam alguma coisa). Portanto, se o nosso filósofo está preparado para dar o benefício da dúvida ao poeta, ele não descartará prontamente aquelas expressões como “uma coleção de palavras sem significado”, mas dirá que são “expressões idiossincráticas” e de nenhum interesse filosófico. Mas todas as expressões verdadeiramente poéticas são, por definição, “idiossincráticas”. E a solução dos problemas ligados ao caráter específico da poesia (ou, falando mais amplamente, da arte em geral) — os problemas da idiossincrasia artística é da maior importância filosófica. (Por exemplo, com relação à epistemologia.)

Sobre o terceiro exemplo, naturalmente, não pode haver dúvidas que é o pior tipo de “confusão conceitual”, pois, como meu coração poderia estar sentado “no ramo do nada”? Se é nada, certamente não pode ter ramos e, mesmo que os corações pudessem ser imaginados em posição de assento, provavelmente não poderiam sentar-se em um ramo não existente do nada. Mas, objeções desse tipo, novamente, compreendem mal a questão. O poeta, felizmente, não está preocupado minimamente em salvaguardar-se da possibilidade de tais objeções e veicula, poeticamente, os lugares comuns inúteis. Ele quer vincular, em um poema intitulado “Sem esperança”, os sentimentos de alguém que está desesperadamente isolado. E com que força o consegue através destas imagens:

Sul ramo del nulla siede il mio cuore
il suo piccolo corpo, muto, rabbrividisce,
gli si raccolgono intorno teneramente
e lo guardano, guardan le stelle.[24]

A filosofia da linguagem esteve sempre preocupada com o significado de expressões que podem ser reformuladas ou “traduzidas”[25]. Consequentemente, não poderia prestar atenção ao seu significado literário. É por isso que, em estética, só eram discutidas questões passíveis de uma formulação no interior dos limites dados por uma redação exclusiva com o seu significado literal: isto é, questões sobre o que crítico quer dizer quando usa termos como bonito, original etc.

A linguagem artística acabou desconcertando a filosofia da linguagem, porque seus problemas não podem ser enfrentados com o método de listagem de unidades atômicas, por mais numerosas que sejam. Provavelmente, não poderemos nos tornar mais sábios com relação ao significado da expressão “doce leis dos homens”, mesmo com uma lista completa (que é uma impossibilidade prática) das frases em que as palavras “doce” e “lei” aparecem — como nos aconselha Austin —, mas somente se considerarmos o poema como um todo orgânico onde lemos:

C’est la douce loi des hommes
De changer l’eau en lumière
Le rève em réalité
Et les ennemies em frères.
[26]

Em um poema, nenhuma palavra (ou expressão) tem um significado isolado, mas apenas um significado inter-relacionado com todas as outras partes (palavras, expressões) que o constituem. Na medida em que as palavras ou expressões podem ser isoladas do poema (e ter um significado próprio) elas não possuem o significado que carregam no poema através da inter-relação múltipla com todas as outras partes do poema como um todo — mas somente o significado que têm na linguagem comum de que foram tiradas (e, em seguida, adaptadas e transformadas) pelo poeta. Se estivermos interessados no significado poético — como é o caso da análise da linguagem artística — temos de preservar o caráter específico dessa relação parte/todo, ao invés de destruí-lo, através da dissolução das múltiplas expressões poéticas em seus elementos atomísticos, esteticamente irrelevantes. Referindo-se a esses elementos isolados, não estaremos mais falando de partes constitutivas de uma obra de arte. Ou seja, é uma ilusão pensar que, no final, com esse procedimento estaremos aludindo a um quadro esteticamente relevante. Seria o mesmo que esperar que um exame em separado de cada tessela de um mosaico constituísse uma avaliação estética daquele mosaico como obra de arte. Sozinhas, as tesselas de um mosaico são apenas pedras coloridas e não partes constituintes de uma obra de arte, da mesma forma que expressões isoladas de poemas são apenas frases (mais do que nunca, frases aparentemente desprovidas de qualquer sentido), que adquirem seu significado poético apenas em virtude de estarem em inter-relação inalterável com todas as outras partes do poema, entendido como um todo orgânico.

É do conhecimento de todos que a filosofia analítica, apesar de um interesse crescente pelos traços contextuais da linguagem, retém diversas das pressuposições atomísticas que foram muito dominantes no positivismo. Assim, pode-se afirmar com segurança que é improvável uma mudança na situação da análise da linguagem artística, sem que haja mudanças que envolvam, profundamente, em especial as pressuposições atomísticas da filosofia da linguagem. Se, entretanto, essas mudanças ocorrerem, a filosofia da linguagem será muito diferente da forma em que a conhecemos agora.

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Notas: 
[0] Publicado originalmente em B. Williams e A. Montefiore (eds.), British Analytical Philosophy (Londres, Routledge & Kegan Paul, 1966), p. 312-30.
[1] “Cahiers de Royaumont”, Philosophie n° IV: la philosophie analytique. Doravante abreviada como CRP IV.
[2] C. Taylor, “Rewiew of CRP IV”, Philosophical Review, LXXIII, 1964, p. 132-5.
[3] P. Laslett e W. G. Runciman (eds.), Philosophy, Politics and Society (Oxford, Blackwell, 1962), Second Series, p. VII.
[4] G. Ryle (ed.), The Revolution in Philosophy, Introduction (Londres, Macmilan, 1957).
[5] Ibidem, p. 3-4.
[6] H. M. Warnock. Ethics Since 1900 (Oxford, University Press, 1960), p. 202.
[7] G. Ryle (ed.), The Revolution in Philosophy, cit., p. 4.
[8] CRP IV, p. 344.
[9] A. E. Teale, “Moral Assurance”, em Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary Volume, XXXI, 1957, p. 1-42.
[10] J. L. Austin, Philosophical Papers (Oxford, Claredon Press, 1961), p. 98.
[11] “Enganos na filosofia surgem notoriamente através da concepção de que o que vale para palavras ‘comuns’ como ‘vermelho’ ou ‘rosnados’ tem de valer também para palavras extraordinárias como ‘real’ ou ‘existe’, Mas, que ‘verdadeiro’ seja outra palavra extraordinária é óbvio” (Ibidem, p. 95-6). Deve-se notar aqui não apenas a ausência de qualquer tentativa de fundamentar essas assertivas, que estão longe de serem óbvias, mas também o uso peculiar de aspas ao contrastar “comuns” (isto é, não completamente comuns) com as supostamente extraordinárias (sem aspas). A fim de estabelecer que há uma classe filosoficamente útil daquilo que Austin chama de palavras extraordinárias, e que a palavra verdadeiro usada bem comumente pertence àquela classe, seria necessário algo mais que a omissão incoerente das aspas em uma das duas classes em contraste, e o repúdio a dúvidas que poderiam surgir por meio do adjetivo “óbvio”, usado peremptoriamente.
[12] CRP IV, p. 330-80.
[13] A fim de evitar equívocos, cito o texto de Austin no original francês e dou a tradução nas notas: “Como na física ou nas ciências naturais”; “Não há outra maneira de proceder” (Ibidem, p. 350).
[14] “Para mim o essencial, em primeiro lugar, é obter um acordo sobre a questão ‘o que devemos dizer e quando?’. Na minha opinião, a experiência prova amplamente que se pode conseguir um acordo sobre a questão ‘o que devemos dizer e quando?’ (sobre este ou aquele assunto), embora eu possa aceitar que obter esse acordo seja frequentemente difícil e leva muito tempo. Não importa quanto tempo leve, pode-se assim mesmo ter sucesso; e com base nesse acordo, nesse dado, nessa aquisição, podemos começar a pôr em ordem nosso pequeno canto de jardim. Acrescento que muito frequentemente o que está faltando na filosofia é um ‘datum’ preliminar em cujas bases se possa obter um acordo para se começar. Não digo que em todos os casos poderia se começar por uma dado considerado por todos como estabelecido. Todos concordamos ao pensar que, pelo menos, esse acordo é desejável. E eu iria até o ponto de dizer que algumas das ciências experimentais descobriram seu ponto inicial de partida e a direção certa a seguir precisamente desta maneira: obtendo um acordo sobre o modo de determinar um dado particular. No caso da física, utilizando-se o método experimental; no nosso caso, por meio da pesquisa imparcial a respeito de ‘o que devemos dizer e quando?’. Isso nos dá um ponto de partida, porque, conforme eu já havia salientado, um acordo sobre ‘o que devemos dizer e quando?’ implica, ou já constitui o acordo sobre uma certa forma, uma forma particular de descrição e entendimento dos fatos” (Ibidem, p. 334).
[15]Certificar-se que o inventário seja bem completo”; uma lista de tudo que tem ligação, na linguagem, com o assunto que estamos examinando: de todas as palavras que usaríamos, de todas as expressões em que entrariam essas palavras”; “É essencial que essa escolha seja suficientemente representativa”; “tomar um problema que se fixa em um ponto suficientemente limitado” (Ibidem, p. 332).
[16] J. L. Austin, Philosophical Papers, cit., p. 98.
[17] T. M. Knox, “Two Conceptions of Philosophy”, Philosophy, v. XXXVI, n. 138, p. 291, out. 1961 (itálico de Knox).
[18] “Temos de procurar nosso tema nas regiões menos sépticas, aquelas que são menos amargamente disputadas. Para isto, vejo três boas razões: em primeiro lugar, podemos pôr à prova nossa habilidade sem ficarmos muito inflamados; em segundo lugar, os grandes problemas que têm resistido a todos os assaltos pela frente poderiam sucumbir se os atacássemos pelos lados; em terceiro lugar, e esta me parece decididamente a razão mais importante, não seria arriscado proclamar de antemão que se sabe quais são os problemas mais importantes, ou ainda supor — o que ainda precisa ser visto que se pode proclamar que se conhece o melhor método de abordagem para ataca-los? Acredito que, recuando, teremos uma oportunidade melhor de ver os picos que se destacam e de encontrar um bom caminho, à medida que avançamos. O exemplo da física é, de novo, instrutivo. Zanzando de um lado para outro, com instrumentos, como fez Faraday, tem-se uma oportunidade melhor de tropeçar em alguma coisa realmente, do que ao se dizer um belo dia: vamos atacar alguma grande problema; vamos perguntar, por exemplo, de que é feito o nosso universo” (CRP IV, p. 350).
[19] “Si une langue s’est perpétuée sur les lèvres et sous la plume d’hommes civilisés, si ele a pu servir dans toutes les circonstances de leur vie, au cours des âges, il est probable que les distinctions qu’elle marque, comme les rapproachments qu’elle fait, dans ses multiplex tourneres, ne sont pas tout à fait sans valeur.” (“Se uma língua se perpetuou nos lábios e na pena de homens civilizados; se pôde servi-los em todas as circunstâncias de sua vida, através dos anos, é provável que as distinções que ela marca, assim como as assimilações que ela faz, em suas múltiplas alternâncias de expressão, não sejam totalmente sem valor.”) (Ibidem, p. 335).
[20] Sempre que forem sumariamente empregadas como “confusões conceituais”. Muito significativamente, as realizações da filosofia britânica que seguiriam a fase de The Revolution in Philosophy – Thought and Action, de Hampshire e Essay in Descriptive Metaphysics, de Strawson etc., dizem respeito a questões mais abrangentes.
[21] O. K. Bouwsma, “The Expression Theory of Art”, em W. Elton (ed.), Aesthetics and Language (Oxford, Black-well, 1954), p. 2.
[22] Ibidem, p. 99.
[23] “Longe de mim o desejo de excluí-las do campo de nossas pesquisas. Sua vez chegará. Não me sinto capaz de atacá-las no momento, é isso. Entendo perfeitamente que essa resposta possa parecer insatisfatória” (CRP IV, p. 350). Nesse contexto pode-se constatar novamente a incoerência quando Austin primeiro diz que, ao atacar os problemas da linguagem artística, devesse proceder “comme em physique, ou em sciences naturelles... Il n’y a pas d’autre manière de proceder”. (“Como na física ou nas ciências naturais... Não há outra maneira de proceder.”) Em seguida, aparentemente se esquecendo disso, ele continua a dizer: “Je suis sûr, en tout cas, qu’on ne peut rien em dire à l’avance”. (“Estou certo, em todo o caso, que não se pode dizer nada de antemão.”) Mas ele acabou de dizer alguma coisa “de antemão”, alguma coisa bem categórica também.
[24] “Meu coração está sentado no ramo do nada/ seu pequeno corpo adormecido treme/ em volta dele justam-se as estrelas./ E observam-no, observam-no com ternura.”
[25] Em relação a esses problemas, ver “A metáfora e o símile”, cap. VII, neste volume.
[26] “É a doce lei dos homens/ Transformar água em luz/ Sonhos em realidade/ E inimigos em irmãos.”
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MÉSZÁROS, I. “Crítica à filosofia analítica”. In:______. Filosofia, ideologia e ciência social. Tradução de Ester Vaisman. São Paulo: Boitempo, 2008, pp. 169-183.
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