quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Narrar ou descrever?


por György Lukács  

Ser radical significa tomar as coisas pela raiz.
Mas para o homem a raiz é o homem mesmo.
(Marx)

Entremos, desde logo, in medias res. Em dois famosos romances modernos, Naná de Zola e Anna Karenina de Tolstoi, encontra-se a descrição de uma corrida de cavalos. Como se desincumbem do empreendimento os dois escritores?

A descrição da corrida é um esplêndido exemplo do virtuosismo literário de Zola. Tudo o que pode acontecer numa corrida em geral, vem descrito com exatidão, com plasticidade e sensibilidade. A descrição de Zola é uma pequena monografia sobre a moderna corrida de trote, que vem acompanhada em todas as suas fases, desde a preparação dos cavalos até a passagem pela linha de chegada, com a mesma insistência. A tribuna dos espectadores aparece com toda pompa e todo o colorido de uma exibição de moda parisiense sob o Segundo Império. Também o que acontece na pista vem representado com exatidão em todos os aspectos: a corrida termina por uma grande surpresa e Zola não se limita a descrever essa surpresa, mas desmascara também a complicada trama que a causou.

No entanto, esta descrição, com todo o seu virtuosismo, não passa de uma digressão dentro do conjunto do romance. Os acontecimentos da corrida são apenas debilmente ligados ao entrecho e poderiam facilmente ser suprimidos, de vez que o ponto de conexão consiste apenas no fato de que um dos muitos amantes passageiros de Naná se arruinou em consequência do desfecho da trama.

Uma outra conexão entre a corrida e o tema central é ainda mais débil, tanto assim que não se pode sequer dizer que seja um elemento do entrecho, embora — por isso mesmo — seja ainda mais sintomática para o estudo do método de composição utilizado por Zola: o cavalo vencedor, que ocasiona a surpresa, chama-se também Naná. E Zola não deixa de sublinhar claramente esta coincidência tênue e casual; a vitória do homônimo da mundana Naná é um símbolo do triunfo desta no mundo e no demi-monde parisiense.

A corrida de cavalos de Ana Karenina é ponto crucial de um grande drama. A queda de Wronski representa uma reviravolta na vida de Ana. Pouco antes da corrida, Ana fica sabendo que está grávida e, depois de uma dolorosa hesitação, decide comunicar a sua gravidez a Wronski. A emoção suscitada pela queda de Wronski provoca a conversa decisiva de Ana com Karenin, seu marido. Todas as relações entre os principais personagens do romance entram numa fase decididamente nova, após a corrida. Esta, por conseguinte, não é um “quadro” e sim uma série de cenas altamente dramáticas, que assinala uma profunda mudança no conjunto do entrecho.

As finalidades completamente diversas a que atendem as cenas dos dois romances se refletem em toda a exposição. Em Zola, a corrida é descrita do ponto de vista do espectador; em Tolstoi, é narrada do ponto de vista do participante.

O relato da corrida de Wronski constitui o verdadeiro objetivo visado por Tolstoi, que sublinha a importância de nenhum modo episódica ou casual do evento na vida do seu ambicioso oficial. Este se prejudicou na sua carreira militar em virtude de uma série de circunstâncias e, em primeiro lugar, em virtude da sua ligação com Ana. A vitória na corrida, diante de toda a Corte e da sociedade aristocrática, está entre as poucas possibilidades de satisfazer a sua ambição que lhe restam abertas. Todos preparativos e todas as fases da corrida, portanto, são momentos de uma ação importante e vêm contados em dramática sucessão. A queda de Wronski é o vértice de toda esta fase dramática da sua vida e com ela se interrompe a narração da corrida, sendo apenas acenado, de passagem, em uma única frase, o fato de que o seu rival o ultrapassa.

Com isso, entretanto, está longe de ser exaurida a análise da concentração épica desta cena. Tolstoi não descreve uma “coisa”: narra acontecimentos humanos. E esta é a razão de que o andamento dos fatos venha narrado duas vezes de maneira genuinamente épica, ao invés de ser descrito por imagens. Na primeira narração em que Wronski, que participava da corrida, era a figura central, era preciso expor, com precisão e competência, tudo aquilo que era essencial na preparação da corrida e no seu próprio transcurso. Na segunda, porém, as figuras principais passam a ser Ana e Karenin.

A excepcional arte épica de Tolstoi se manifesta no fato de que ele não faça com que ao primeiro que siga imediatamente o segundo relato da corrida, mas comece a narrar todo o dia precedente de Karenin e a evolução de suas relações com Ana, para fazer do relato da corrida, afinal, o ápice do novo dia. A corrida torna-se, assim, um drama psicológico: Ana só acompanha Wronski com os olhos e nada vê da corrida propriamente dita e nem dos outros. Karenin observa exclusivamente Ana e suas reações ante o que se passa com Wronski. A tensão desta cena, quase sem palavras, prepara a explosão de Ana, quando, ao voltar para casa, confessa a Karenin suas relações com Wronski.

O leitor ou o escritor formado na escola dos “modernos” poderia objetar, neste ponto: admitindo que estejamos diante de dois métodos diferentes de representação artística, não será o próprio fato de vincular a corrida a importantes vivências inter-humanas dos personagens principais que tornará a corrida um elemento acidental, uma mera ocasião para que se ecloda a catástrofe do drama? E, ao contrário, não será o caráter completo, acabado e monográfico, da descrição de Zola aquilo que dá o exato quadro de um fenômeno social?

Eis-no agora em face de um problema: o que é que se pode chamar de acidental na representação artística? Sem elementos acidentais, tudo é abstrato e morto. Nenhum escritor pode representar algo vivo se evita completamente os elementos acidentais; mas, por outro lado. precisa superar na representação a casualidade nua e crua, elevando-a ao plano da necessidade.

E será que é o caráter completo de uma descrição objetiva que torna alguma coisa artisticamente “necessária”? Ou não será, antes, a relação necessária dos personagens com as coisas e com os acontecimentos — nos quais se realiza o destino deles, e através dos quais eles atuam e se debatem?

Já a ligação entre a ambição de Wronski e a sua participação na corrida manifesta uma necessidade artística bem diversa da que poderia ser oferecida pela descrição “completa” de Zola. O assistir ou participar de uma corrida de cavalos pode ser, objetivamente, apenas um episódio. Tolstoi relacionou o mais intimamente possível tal episódio com um drama de importância vital. De certo modo, a corrida é somente uma ocasião para fazer eclodir o conflito; porém esta ocasião, estando ligada à ambição social de Wronski — que é um importante componente da tragédia em desenvolvimento — nada tem de casual.

A literatura acumula exemplos nos quais aparece de forma ainda mais clara o contraste entre os dois métodos, no que concerne à necessidade ou casualidade da representação de seu objetos.

Vejamos a descrição do teatro que se encontra neste mesmo romance de Zola e comparemo-la às das Illusions perdues de Balzac. Exteriormente, há semelhanças. A estreia com que se inicia o romance de Zola decide a carreira de Naná. Em Balzac, a estreia determina uma profunda mudança na carreira de Lucien Rubempré, sua passagem de poeta desconhecido a jornalista inescrupuloso e coroado de êxito.

Também o recinto do teatro é descrito por Zola de maneira cuidadosa e completa. Primeiro, visto da plateia: tudo que acontece nas cadeiras, nos corredores, no palco, o aspecto assumido pela cena, todas as coisas descritas com impressionante habilidade literária. Depois, a obsessão zoliana pelo caráter completo e monográfico passa adiante e um outro capítulo do seu romance esta´dedicado à descrição do teatro visto do palco; com não menos vigor, são descritos as mudanças de cenário, os vestuários, etc. e o que se passa durante as representações e os intervalos. Por fim, para completar o quadro, um terceiro capítulo contém a proficiente e zelosa descrição de um ensaio geral.

Este caráter completo de inventário não existe em Balzac. O teatro e a representação, para ele, constituem somente o ambiente em que se desenvolvem íntimos dramas humanos: a ascensão de Lucien, o prosseguimento da carreira artística de Coralie, a aparecimento da paixão entre Lucien com seus velhos amigos do círculo de D’Arthèz e com seu atual protetor, Lousteau. Também do início da sua vingança contra Madame de Bargeton, etc.

Mas o que é que vem representado em todas estas lutas, em todos estes conflitos direta ou indiretamente conexos ao teatro? A sorte do teatro no capitalismo: a universal e complexa dependência do teatro em relação ao capital e em relação ao jornalismo dependente do capital. as relações entre o teatro e a literatura, entre a vida das atrizes e a prostituição aberta ou disfarçada.

Tais problemas sociais também são aflorados por Zola. Mas são descritos apenas como fatos sociais, como resultados, como caput mortuum da situação. O diretor do teatro, em Zola, repete incessantemente: “Não diga teatro, diga bordel”. Balzac, entretanto, representa o modo pelo qual o teatro se prostitui no capitalismo. O drama das figuras principais é, ao mesmo tempo, o drama das instituições no quadro das quais elas se movem, o drama das coisas com as quais elas convivem, o drama do ambiente em que elas travam as suas lutas e dos objetos que servem de mediação às suas relações recíprocas.

Este é um caso extremo, é claro. Os objetos do mundo que circunda os homens não são sempre e necessariamente tão ligados às experiências humanas como neste caso. Podem ser instrumentos da atividade e do destino dos homens e podem ser — como aqui se passa com Balzac — pontos cruciais das experiências vividas pelos homens em suas relações sociais decisivas. Mas podem ser, também, meros cenários da atividade e do destino deles.

Persistirá o contraste por nós indicado mesmo onde se trata somente, na realidade, da representação de um cenário?

No capítulo introdutório do seu romance Old Mortality, Walter Scott descreve uma exibição militar, associada a festejos populares, organizada na Escócia depois da restauração dos Stuart e da tentativa de renovar as instituições feudais. A promoção tem por objetivo passar em revista os fiéis e provocar os descontentes, a fim de que se desmascarem. Na obra de Scott, ela se realiza na véspera da insurreição dos puritanos oprimidos. A grande arte épica de Scott fixa neste cenário todos os contrastes que estão prestes a explodir numa luta sangrenta. A comemoração militar revela, em cenas grotescas, o envelhecimento sem esperança das relações feudais e a surda resistência da população contra a tentativa de renová-las. A competição de tiro ao alvo que se segue à revista das tropas mostra a contradição instalada no seio de ambos os partidos adversários: só os elementos moderados de um e do outro tomam parte no divertimento popular. Na hospedaria, assistimos à brutalidade da soldadesca do rei e, ao mesmo tempo, ali se revela em toda a sua tétrica grandeza a figura de Burley, que depois virá a ser um dos cabeças da revolta puritana. Em suma: Walter Scott, contando o que se passou nesta celebração militar e descrevendo o cenário em que ela se realizou, desenvolve todas as tendências e todos os personagens principais de um grande drama histórico, colocando-o, de golpe, bem no meio da ação.

A descrição agrícola e premiação dos agricultores em Madame Bovary é uma das mais celebradas obras-primas da arte descritiva do moderno realismo. Flaubert descreve, aqui, efetivamente o “cenário”, uma vez que toda a exposição não passa de uma ocasião para enquadrar a cena decisiva do amor entre Rodolfo e Ema Bovary. O cenário é casual, um verdadeiro cenário, no sentido literal da palavra. E esta casualidade vem claramente sublinhada pelo próprio Flaubert.

Unindo e contrapondo os discursos oficiais a fragmentos do colóquio amoroso, Flaubert institui um paralelo irônico entre a banalidade pública e a banalidade privada da vida pequeno-burguesa. E tal contraste irônico é desenvolvido com extrema coerência e grande arte.

Fica, todavia, não resolvido o contraste pelo qual este cenário casual, este pretexto casual para a descrição de uma cena de amor, se torna, ao mesmo tempo, no mundo de Madame Bovary, um acontecimento importante, cuja minuciosa descrição é exigida pelos fins almejados por Flaubert, isto é, pela completa representação do ambiente. A ironia do contraste não esgota o significado da descrição. O “cenário” possui uma significação autônoma, enquanto elemento destinado a completar o ambiente. Aqui, porém, os personagens são unicamente espectadores — e por isso se tornam para o leitor, elementos constitutivos, homogêneos e equivalente, dos acontecimentos descritos por Flaubert, relevantes apenas do ponto de vista da reconstituição do ambiente. Tornam-se manchas coloridas dentro de um quadro, e só ultrapassam os limites estáticos da moldura na medida em que se elevam a irônico símbolo da essência do filiteísmo. Tal quadro assume uma importância que não dimana o íntimo valor humano dos acontecimentos narrados e não tem relação praticamente alguma com os acontecimentos, sendo a relação obtida, ao invés disso, por meio da estilização formal.

O conteúdo simbólico é realizado em Flaubert através da ironia e possui um notável nível artístico, alcançado com meios — pelo menos em parte — genuinamente artísticos. Mas, quando, como em Zola, o símbolo deve adquirir por si mesmo uma monumentalidade social, quando tem a função de imprimir a um episódio que em si é insignificante o selo de um grande significado social, então se abandona o campo da verdadeira arte. A metáfora aparece inchada de realidade. Um traço acidental, uma semelhança de superfície, um estado de ânimo, um encontro casual passam a constituir a expressão imediata de vastas relações sociais. Em qualquer romance de Zola se pode encontrar grande quantidade de exemplos disso. Lembremo-nos apenas do paralelo entre Naná e a mosca dourada, paralelo com que se pretendia simbolizar o fatal influxo daquela sobre a Paris de antes de 1870. Zola mesmo é quem declara expressamente a sua intenção: “Na minha obra, impera a hipertrofia do particular realista. Do trampolim da observação precisa, parte-se para se alcançar as estrelas. A um único mover de asas, a verdade se eleva a símbolo”.

Em Flaubert e em Zola, os mesmos personagens são espectadores mais ou menos interessados nos acontecimentos — e com isso os acontecimentos se transformam, aos olhos dos leitores, em um quadro, ou melhor, em uma série de quadros. Esses quadros, nós os observamos esses acontecimentos. Vivíamos esses acontecimentos.Em Walter Scott, Balzac ou Tolstoi, vínhamos de conhecer acontecimentos que eram importantes por si mesmos, mas eram também importantes para as relações inter-humanas dos personagens que os protagonizavam e importantes para a significação social do variado desenvolvimento assumido pela vida humana de tais personagens. Constituíamos o público de certos acontecimentos nos quais os personagens do romance tomavam parte ativa.

[Continua. Ensaio completo no PDF]

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[0] Ficções comentadas: Anna Karenina (Rússia, 1877) de L. Tolstoi; Nana (França, 1880) de É. Zola; Illusions perdues (França, 1837) de H. Balzac; Old Mortality (Escócia, 1816) de W. Scott; Madame Bovary (França, 1857) de G. Flaubert.
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LUKÁCS, G. “Narrar ou descrever? Contribuição para uma discussão sobre o naturalismo e o formalismo” [1936]. Trad. Giseh Vianna Konder. In:______. Ensaios sobre literatura. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 47-99.
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