quinta-feira, 6 de setembro de 2018

O silêncio agnóstico de Wittgenstein


por György Lukács

Em nossas considerações até aqui, o problema da ontologia ficou deliberadamente limitado à estrutura interna da ciência, a sua manifesta relação gnosiológica com a realidade, ao significado gnosiológico dos problemas ontológicos na apreensão de fatos concretos etc. Mas é claro que com isso o papel das interrogações e das respostas ontológicas na vida humana não está ainda suficientemente esboçado. Pois, como veremos na segunda parte, ao tratar do trabalho, a correta relação do homem com a realidade existente em si, que transcende a consciência, de fato é o problema central da vida cotidiana, da práxis cotidiana. Pode-se mesmo afirmar, legitimamente, que a atitude científica da humanidade tem sua origem geneticamente vinculada a essa necessidade elementar. Porém, mesmo com essa gênese a questão nem de longe está esgotada. Em sua essência mais íntima, todo o âmbito da atividade do ser humano é determinado pela realidade existente em si, ou seja, pelo seu espelhamento na consciência predominante em cada época: essas concepções atuam sobre os diversos conteúdos e formas da práxis humana. Esse complexo só pode receber um tratamento adequado e aprofundado no âmbito das ciências sociais concretas, nas análises concretas da práxis humana, incluída a ética. Por isso, aqui é possível apenas fornecer um esboço indicativo, sumário, dos fatos mais fundamentais. Apesar disso, tal esboço é indispensável porque o predomínio mundial do neopositivismo, que emerge de maneira gradual, justamente por sua postura de neutra recusa a toda ontologia tornou-se um fator decisivo na formação das modernas concepções de mundo, tanto no sentido da teoria pura como no da práxis a ela intimamente vinculada, na acepção mais ampla da palavra práxis. Já conhecemos a atitude universalmente dominante dos neopositivistas: trata-se do benevolente desprezo do manager, enfim completamente adulto e amadurecido, pelas ilusões infantis-românticas daqueles que, não encontrando realização e satisfação no perfeito funcionamento de um mundo inteiramente manipulado, perseguem sonhos originados nos estágios primitivos, há muito ultrapassados, do desenvolvimento da humanidade.

Todo conhecedor do desenvolvimento da filosofia moderna sabe, porém, que desse modo a análise realizada não abrangeu a totalidade do pensamento burguês socialmente significativo. Em paralelo com a marcha triunfal do positivismo aparecem continuamente filosofias que, embora posicionadas, do ponto de vista gnosiológico, em terreno totalmente ou bastante semelhante, consideram que se devem discutir os problemas “históricos” e “tradicionais” da filosofia e encontrar soluções para eles em conformidade com a nova época. Do ponto de vista da atitude social, isso significa que esses pensadores reconhecem o irresistível avanço da manipulação no capitalismo contemporâneo como inelutável, como “destino”, mas procuram ostentar uma resistência espiritual às suas consequências ideológicas espontâneas, imediatas. A grande influência desses pensadores mostra que exprimiram e exprimem uma necessidade social efetivamente existente. Também nesse particular não podemos ter a intenção de discutira fundo, in extenso, esse movimento de protesto. Remetemos somente a Nietzsche, na segunda metade do século passado, e a Bergson, na virada do século. Que a teoria do conhecimento de Nietzsche estava muito próxima do positivismo, já o havia reconhecido Vaihinger, certamente uma competente testemunha, posto que ele – ao tempo da redação da Filosofia do como se – foi um dos primeiros a tentar reinterpretar Kant em conformidade com um positivismo coerente. Nesse contexto, considerava, junto com Forberg e Lange, Nietzsche como um companheiro de jornada, e com toda razão não o perturbava o fato de Nietzsche ter construído sobre sua teoria do conhecimento positivista uma metafísica (sem aspas) romanticamente aventureira, que de certa maneira tinha sua parte crucial no “eterno retorno”. A relação íntima da teoria do conhecimento bergsoniana com o pragmatismo é por demais conhecida para que seja necessário analisá-la mais de perto. E a lista de tais figuras intermediárias poderia ser estendida à vontade.

Porém, aqui nos interessa mais o presente do que a sua pré-história. Sobre o polo “rebelde”, da moda, oposto à autossuficiência do neopositivismo, ao conformismo neopositivista diante da generalização da manipulação, justamente agora em pleno florescimento, sobre o existencialismo, enfim, falaremos em breve. Entretanto, parece-nos instrutivo, por exemplo, constatar não somente a profunda influência de Carnap e Heidegger, como extremos opostos, sobre o pensamento moderno, mas, sobretudo, o fato de serem os extremos de correntes que socialmente provêm da mesma origem, razão pela qual têm muito em comum em seus fundamentos teóricos e se completam em tal polaridade. Por isso, parece-nos necessário, antes de passar ao exame do existencialismo, aludir brevemente a um neopositivista que esteve de acordo com os neopositivistas em todas as questões gnosiológicas fundamentais do neopositivismo, que muito contribuiu para fundamentar e aperfeiçoar suas aspirações e influiu essencialmente no desenvolvimento da doutrina, mas que, por permanecer filósofo, e não simplesmente um manager da vida intelectual, vivenciou como problemas os tradicionais problemas da filosofia, e mesmo se – conforme a boa ortodoxia neopositivista – os tenha expulsado do reino da filosofia científica, sentiu-os como autênticos problemas, como um conflito interior: pensamos em Wittgenstein.

Não é preciso mostrar detalhadamente que as concepções de seu Tractatus (consideraremos aqui apenas essa, que é a mais famosa e influente obra de Wittgenstein) estão muito próximas das concepções da escola neopositivista. Também repudia toda problemática ontológica como metafísica, como absurda. Ele afirma:
A maioria das proposições e questões escritas sobre temas filosóficos não é falsa, mas um contrassenso. Por isso, não podemos de modo algum responder a questões dessa espécie, mas apenas estabelecer seu caráter de contrassenso. A maioria das questões e proposições dos filósofos decorre de não entendermos a lógica de nossa linguagem. [...] E não é de admirar que os problemas mais profundos de fato não sejam problemas.[1]
O conteúdo dessa formulação está plenamente de acordo com a doutrina geral do neopositivismo, tem meramente outra entonação. Não somente evoca a sensação de que os problemas desterrados da filosofia científica permanecem, a despeito de tais decretos,como problemas humanos autênticos, mas deixa entrever igualmente um estranho dilema na postura interior em relação ao mundo sem ontologia, sem realidade, da perspectiva neopositivista. Wittgenstein refuta também o nexo causal como superstição[2]. Por essa razão, considera coerentemente um mito, no sentido dos velhos mitos, uma moderna visão de mundo fundada sobre as ciências naturais, na medida em que pretenda ser visão de mundo.
Toda moderna visão de mundo baseia-se na ilusão de que as chamadas leis naturais sejam as explicações dos fenômenos naturais. Portanto, ficam diante das leis naturais como diante de algo inatingível, como os antigos diante de Deus e do Destino. E uns e outros estão certos e estão errados. Os antigos certamente são mais claros, na medida em que reconhecem um fechamento evidente, ao passo que no novo sistema deve parecer que está tudo explicado.[3]
Porém, é notável e interessante que em Wittgenstein o rigoroso logicismo incline-se às vezes para uma ontologia irracionalista. Assim, ele contesta – em total conformidade com a rigorosa semântica neopositivista – que a marca das proposições lógicas seja a generalidade e explica essa sua tese afirmando que uma proposição não generalizada pode ser tão tautológica, isto é, uma proposição da lógica, quanto uma proposição generalizada. Nesse contexto, porém, esta notável sentença é introduzida: “Ser geral quer dizer apenas: valer casualmente para todas as coisas”[4]. O que significa, aqui, “casualmente”? Ainda que a expressão fosse interpretada num sentido puramente semântico, conduziria de todo modo a consequências irracionalistas, posto que, também em Wittgenstein, o logicismo matemático tem a função de produzir, entre as proposições singulares, sequências homogêneas da redutibilidade de uma à outra, por conseguinte, de criar – pelo menos no plano da manipulação das proposições – séries de deduções logicamente conexas que excluem toda casualidade. A validade casual da generalidade para os objetos dos quais ela é a generalização transformaria num absurdo todas essas conexões, porque a pura casualidade não é redutível nem traduzível. Mas como dificilmente se poderia esperar de um lógico extremamente talentoso como Wittgenstein uma inconsequência metodológica dessa espécie, parece-nos que essa frase deve ser atribuída a uma involuntária derrapagem de Wittgenstein no ontológico, ao ser surpreendido pelo brilho intenso de uma profunda discrepância ontológica entre sua própria lógica matemática e a realidade subitamente tornada consciente.

Naturalmente trata-se de um episódio isolado, mas curiosamente não é o único. De fato, a observação franca e sincera sobre o solipsismo tem um caráter semelhante.Wittgenstein diz:
O que o solipsismo pensa é inteiramente correto, só que não pode ser dito, mas se mostra. – Que o mundo é meu mundo mostra-se no fato de que os limites da linguagem (da linguagem que só eu compreendo) significam os limites do meu mundo. – O mundo e a vida são um. – Eu sou meu mundo. (O microcosmo.) [...] O sujeito não pertence ao mundo, mas é um limite do mundo.[5]
Trata-se de muito mais do que a mera revelação de segredos escolares à la Heine. Mais uma vez, é uma súbita compreensão da realidade, o abismo da realidade repentinamente se escancara diante do neopositivista, e novamente ele renega, de maneira irracionalista,o sagrado dogma da neutralidade da esfera da manipulação no que se refere à subjetividade e à objetividade. Nesse caso, a oposição entre a impossibilidade de dizer – o neopositivista pode dizer tudo que é logicamente correto – e a mera possibilidade de mostrar, essencialmente irracionalista, denuncia uma atitude diante da realidade, em última análise, análoga à revelada em nosso exemplo anterior.

A conclusão do tratado traz uma espécie de síntese desse sentimento em relação à vida. Wittgenstein exprime-se ali com cativante franqueza:
Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham sido respondidas, os problemas de nossa vida não terão sido sequer tocados. Nesse caso, é claro que não restará mais nenhuma questão, e essa é precisamente a resposta. Percebe-se a solução do problema da vida no desaparecimento desse problema. (Não é por essa razão que as pessoas, para as quais, após longas dúvidas, o sentido da vida se tornou claro, não puderam dizer em que consiste esse sentido?) Há, entretanto, o inefável, ele se mostra, é o místico.[6] 
E é importante que esse raciocínio tenha sido precedido pelo aforisma: “O místico não é como o mundo é, mas que ele é”. Sob esse aspecto, e não do ponto de vista de um positivismo consistente, que o Tractatus conclui com máxima coerência: “Do que não se pode falar, deve-se silenciar”[7]. No entanto, quando a resposta de um filósofo ao que são os problemas da vida consiste na prescrição do silêncio, que outro significado pode haver nisso senão a confissão da falência dessa própria filosofia? Falência naturalmente não do ponto de vista do puro neopositivismo, que floresce, prospera e está conformado e feliz nessa situação, mas do ponto de vista da filosofia tal como sempre foi entendida pela humanidade desde seu despertar para a consciência e para a autoconsciência. Wittgenstein se refugia das consequências de sua própria filosofia no irracionalismo, só que é demasiado inteligente e filosoficamente lúcido para querer fazer desse abalo ontológico uma filosofia irracionalista própria. Ele se mantém fiel à sua causa, ao neopositivismo, e, diante do abismo, diante do beco sem saída de seu próprio pensamento, recolhe-se a um silêncio orgulhoso e recatado. Nesse silêncio, entretanto, ressoa um profundo não conformismo: do ponto de vista da vida, dos genuínos problemas da vida, a universalidade da manipulação é declarada nula, anti-humana e degradante para o pensamento humano autêntico. O comportamento de Wittgenstein é – naturalmente, sob o aspecto puramente intelectual – contraditório até a insustentabilidade. Justamente por isso, no entanto, expressa – por assim dizer, com um gesto filosófico – algo extremamente importante e contraditório para a presente situação social: o pensamento (e, sobretudo, o sentimento) daqueles que não vislumbram saída da manipulação geral da vida pelo capitalismo atual, mas que são capazes de contrapor-lhe apenas um protesto antecipadamente impotente – o silêncio de Wittgenstein.

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Notas:
[1] Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus (Londres, 1955), p. 62.
[2] Ibidem, p. 108.
[3] Ibidem, p. 180.
[4] Ibidem, p. 162.
[5] Ibidem, p. 150.
[6] Ibidem, p. 186.
[7] Ibidem, p. 188.
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LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 74-79.
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2 comentários:

  1. Gostei do texto.
    Só uma pergunta, o homem irracionalista é o que não vê ordem lógica e formal no mundo? Vi Pondé (sim, Pondé) falar isso em um vídeo dele e fiquei me perguntandi

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    1. O irracionalismo diz mais sobre uma avaliação da faculdade racional, rebaixando a sua importância para a vida humana, mas, junto a isso, também pode ser uma avaliação da realidade objetiva como essencialmente desprovida de sentido. O niilismo, por exemplo, é uma expressão irracionalista.

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