Os limites da antropologia: entre o naturalismo e o culturalismo
KOFLER: Quando o senhor fala de “ontologia”, não pensa realmente em “antropologia”?
LUKÁCS: Não, porque penso que certas constelações ontológicas existem
totalmente independentes do fato de que exista o homem. Se, por exemplo,
estudo diversos planetas do nosso sistema solar para verificar se neles
existe vida orgânica, isso não tem, em geral, relação alguma com os
homens. De fato,se a vida se desenvolveu num planeta, daí não se deduz
necessariamente que a vida deva levar ao homem. Existe, aqui, um segundo
salto que, por falta de material, não podemos analisar, se bem que eu
esteja plenamente convencido a esse respeito de que, através de uma
análise posterior, serão descobertas coisas muito complexas. Marx
observou com muita justeza que o darwinismo é o ajuste de contas com a
teleologia. Hoje me dia, na evolução dos seres vivos, já podemos ver que
existem becos sem saída, e precisamente num estágio relativamente
superior de desenvolvimento. A forma mais desenvolvida da chamada
sociedade animal é encontrada entre insetos e não entre animais
superiores. E, no insetos, precisamente a socialidade aparece como um
limite para a evolução posterior. De fato, a divisão do trabalho, por
exemplo, entre abelhas, é uma divisão do trabalho biológica, e a colmeia
pode se renovar apenas biologicamente, mas não pode evoluir no sentido
da substituição da subjugação ao poder soberano da rainha pela
democracia. Repito aqui, intencionalmente, um velho absurdo. Com efeito,
um desenvolvimento social posterior só é possível partindo da
constelação que aparece exclusivamente com o homem, na qual a divisão do
trabalho tem um caráter social e não um caráter biológico.
KOFLER: Exatamente, mas esses problemas não são diferentes na filosofia
tradicional? O que se poderia aceitar neste ponto, aparece no campo
humano-social como algo inteiramente diferente, isto é, como
antropologia. Por exemplo, o conceito de teleologia: se fizermos desse
conceito uma filosofia para um terreno no qual ela nos conduz a
problemas aparentes e provoca soluções aparentes.
LUKÁCS: Hoje
há, naturalmente, uma tendência muito forte para reduzir esta questão ao
campo antropológico. Mas esta redução exclui todo o passado da
natureza, exclui o fato de que certos fenômenos, mesmo nos homens,
provêm unicamente das leis necessárias do mundo inorgânico. Uma vez, um
homem cheio de espírito fez-me notar um fato interessante, isto é, que
não existe um único ser vivo no qual os órgãos do movimento tenha número
ímpar. Números ímpares apresentam-se em nós: temos um nariz e uma boca.
Mas temos dois pés, e o senhor não poderá citar um único ser vivo que
tenha três ou cinco pés; terá dois, quatro, oito, dez pés etc.. o que
depende simplesmente das leis físicas do movimento, que são realizadas
deste modo nos seres vivos. Posso chamar a isso de antropologia? Acho
que talvez seja uma ampliação um tanto abusiva. Creio que a acentuação
da antropologia derive de uma orientação que acho justa e progressista;
ou seja, os homens chegaram a pôr em dúvida a chamada ciência
psicológica. A psicologia isolou certos modos de expressão do homem e
por isso não percebeu que todo modo de expressão do homem é o resultado
de uma dupla causalidade: por um lado, é condicionado pela constituição
fisiológica do homem e pela ação das forças fisiológicas; por outro
lado, é condicionado pela reação aos acontecimentos sociais. Na
psicologia prevalece uma expressão unitária. Se eu, por exemplo, digo
que um perfume não me agrada, isso já não é mais um fato meramente
fisiológico, porque o senhor sabe o quanto os perfumes dependem da moda,
e sabe que o modo pelo qual os homens reagem aos perfumes é um fato
social. Este talvez não seja um bom exemplo. Mas com ele desejo mostrar
que não há uma só das chamadas reações psicológicas que não seja
simultânea e inseparavelmente fisiológica e social. Não quero, com isso,
negar que se tenha formado, com o tempo, uma ciência antropológica
concentrada sobre ações recíprocas destas duas componentes. Mas é ilusão
pensar que com isto se resolvam problemas essenciais do desenvolvimento
social, porque o desenvolvimento social se realiza (se bem que esteja
ligado aos homens) sobre a base de uma específica normatividade
econômica. Tenho muita curiosidade em ver de que modo, para voltar a um
exemplo anterior, poder-se ia deduzir antropologicamente o aumento da
taxa de lucro.
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(LUKÁCS, G. Conversando com Lukács:
entrevista a Léo Kofler, Wolfgang Abendroth e Hans Heinz Holz. Trad.
Giseh Vianna. São Paulo Instituto Lukács, 2014, p. 91-93).
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Por paradoxal que seja, é a postura de neutralidade que impede a apropriação integral do objeto. Na medida em que existe uma vinculação essencial entre conhecimento e perspectiva de classe, então, nenhum conhecimento pode ser produzido sem estar marcado, de alguma maneira, por essa vinculação. Independente da consciência e/ou da aceitação do pensador, os pressupostos e as categorias por ele utilizadas já implicam, em si mesmas, essa vinculação. O equívoco na afirmação da neutralidade científica está exatamente na rejeição da relação entre conhecimento e perspectiva de classe, na suposição de que o pensador é o sujeito único do conhecimento.
Esse equívoco também se manifesta na confusão entre objetividade e neutralidade, como se esses conceitos fossem sinônimos. Tentando superar a crença na neutralidade da ciência, o neoiluminismo, a exemplo de H. Japiassú, P. Demo e outros, rejeita essa crença na neutralidade da ciência como sendo um produto típico do cientificismo positivista. Argumentam os neoiluministas que, sendo a ciência um produto humano, ela jamais poderá deixar de ser perpassada por valores. Todo conhecimento é histórica e socialmente enraizado. Por isso mesmo, não pode existir neutralidade na ciência. Essa crítica neoiluminista, porém, permanece prisioneira da centralidade do sujeito, pois atribui a este a tarefa de superar os obstáculos postos pela intervenção de interesses sociais no processo de produção do conhecimento. Tratar-se-ia, em síntese, simplesmente, de evitar a ingenuidade elevando à consciência os interesses subjacentes ao conhecimento. Isto permitiria ao cientista compreender os condicionantes históricos e sociais do seu trabalho, o que seria suficiente para afastar qualquer veleidade de neutralidade científica. Mas, de que gênero são esses condicionantes históricos e sociais e quais os pressupostos para identificá-los, isto sempre fica a cargo do sujeito!
Na verdade, o neoiluminismo nada mais é do que a retomada, sob outras roupagens, das tentativas do historicismo alemão de superar a pretensa neutralidade da ciência afirmada pelo positivismo. Assim como o historicismo alemão, também o neoiluminismo se vê incapaz de fazer uma crítica acertada à problemática da neutralidade da ciência e de compreender corretamente a diferença entre neutralidade e objetividade. Isto porque ele permanece prisioneiro da perspectiva gnosiológica moderna, que vê no indivíduo o sujeito fundamental e único do conhecimento. Somente a perspectiva ontológica instaurada por Marx, ao constatar a íntima vinculação entre o conhecimento científico e as perspectivas de classe, permite equacionar de modo correto esta problemática.
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TONET, Ivo. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013, p. 109-110.
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