domingo, 6 de maio de 2018

Trechos sobre a cientificidade

Os limites da antropologia: entre o naturalismo e o culturalismo

KOFLER: Quando o senhor fala de “ontologia”, não pensa realmente em “antropologia”?

LUKÁCS: Não, porque penso que certas constelações ontológicas existem totalmente independentes do fato de que exista o homem. Se, por exemplo, estudo diversos planetas do nosso sistema solar para verificar se neles existe vida orgânica, isso não tem, em geral, relação alguma com os homens. De fato,se a vida se desenvolveu num planeta, daí não se deduz necessariamente que a vida deva levar ao homem. Existe, aqui, um segundo salto que, por falta de material, não podemos analisar, se bem que eu esteja plenamente convencido a esse respeito de que, através de uma análise posterior, serão descobertas coisas muito complexas. Marx observou com muita justeza que o darwinismo é o ajuste de contas com a teleologia. Hoje me dia, na evolução dos seres vivos, já podemos ver que existem becos sem saída, e precisamente num estágio relativamente superior de desenvolvimento. A forma mais desenvolvida da chamada sociedade animal é encontrada entre insetos e não entre animais superiores. E, no insetos, precisamente a socialidade aparece como um limite para a evolução posterior. De fato, a divisão do trabalho, por exemplo, entre abelhas, é uma divisão do trabalho biológica, e a colmeia pode se renovar apenas biologicamente, mas não pode evoluir no sentido da substituição da subjugação ao poder soberano da rainha pela democracia. Repito aqui, intencionalmente, um velho absurdo. Com efeito, um desenvolvimento social posterior só é possível partindo da constelação que aparece exclusivamente com o homem, na qual a divisão do trabalho tem um caráter social e não um caráter biológico.

KOFLER: Exatamente, mas esses problemas não são diferentes na filosofia tradicional? O que se poderia aceitar neste ponto, aparece no campo humano-social como algo inteiramente diferente, isto é, como antropologia. Por exemplo, o conceito de teleologia: se fizermos desse conceito uma filosofia para um terreno no qual ela nos conduz a problemas aparentes e provoca soluções aparentes.

LUKÁCS: Hoje há, naturalmente, uma tendência muito forte para reduzir esta questão ao campo antropológico. Mas esta redução exclui todo o passado da natureza, exclui o fato de que certos fenômenos, mesmo nos homens, provêm unicamente das leis necessárias do mundo inorgânico. Uma vez, um homem cheio de espírito fez-me notar um fato interessante, isto é, que não existe um único ser vivo no qual os órgãos do movimento tenha número ímpar. Números ímpares apresentam-se em nós: temos um nariz e uma boca. Mas temos dois pés, e o senhor não poderá citar um único ser vivo que tenha três ou cinco pés; terá dois, quatro, oito, dez pés etc.. o que depende simplesmente das leis físicas do movimento, que são realizadas deste modo nos seres vivos. Posso chamar a isso de antropologia? Acho que talvez seja uma ampliação um tanto abusiva. Creio que a acentuação da antropologia derive de uma orientação que acho justa e progressista; ou seja, os homens chegaram a pôr em dúvida a chamada ciência psicológica. A psicologia isolou certos modos de expressão do homem e por isso não percebeu que todo modo de expressão do homem é o resultado de uma dupla causalidade: por um lado, é condicionado pela constituição fisiológica do homem e pela ação das forças fisiológicas; por outro lado, é condicionado pela reação aos acontecimentos sociais. Na psicologia prevalece uma expressão unitária. Se eu, por exemplo, digo que um perfume não me agrada, isso já não é mais um fato meramente fisiológico, porque o senhor sabe o quanto os perfumes dependem da moda, e sabe que o modo pelo qual os homens reagem aos perfumes é um fato social. Este talvez não seja um bom exemplo. Mas com ele desejo mostrar que não há uma só das chamadas reações psicológicas que não seja simultânea e inseparavelmente fisiológica e social. Não quero, com isso, negar que se tenha formado, com o tempo, uma ciência antropológica concentrada sobre ações recíprocas destas duas componentes. Mas é ilusão pensar que com isto se resolvam problemas essenciais do desenvolvimento social, porque o desenvolvimento social se realiza (se bem que esteja ligado aos homens) sobre a base de uma específica normatividade econômica. Tenho muita curiosidade em ver de que modo, para voltar a um exemplo anterior, poder-se ia deduzir antropologicamente o aumento da taxa de lucro.

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(LUKÁCS, G. Conversando com Lukács: entrevista a Léo Kofler, Wolfgang Abendroth e Hans Heinz Holz. Trad. Giseh Vianna. São Paulo Instituto Lukács, 2014, p. 91-93).
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A crítica neoiluminista ao cientificismo
 
A demonstração da estreita vinculação entre o conhecimento e os interesses de classe nos permite infirmar a tese da neutralidade da ciência, defendida pela perspectiva moderna. Permite, também, fazer a clara distinção entre neutralidade e objetividade. O conhecimento científico, porque se pretende verdadeiro, deve ser objetivo, uma vez que sua função é capturar a realidade como ela é em si mesma. Ser objetivo é capturar a lógica própria do objeto. Ser neutro é não tomar partido, isto é, não permitir que julgamentos de valor interfiram na produção do conhecimento. À primeira vista, poderia parecer, então, que portar-se de maneira não neutra impossibilitaria a apropriação do objeto na sua integralidade. Tomar partido implicaria uma visão parcial do objeto.

Por paradoxal que seja, é a postura de neutralidade que impede a apropriação integral do objeto. Na medida em que existe uma vinculação essencial entre conhecimento e perspectiva de classe, então, nenhum conhecimento pode ser produzido sem estar marcado, de alguma maneira, por essa vinculação. Independente da consciência e/ou da aceitação do pensador, os pressupostos e as categorias por ele utilizadas já implicam, em si mesmas, essa vinculação. O equívoco na afirmação da neutralidade científica está exatamente na rejeição da relação entre conhecimento e perspectiva de classe, na suposição de que o pensador é o sujeito único do conhecimento.

Esse equívoco também se manifesta na confusão entre objetividade e neutralidade, como se esses conceitos fossem sinônimos. Tentando superar a crença na neutralidade da ciência, o neoiluminismo, a exemplo de H. Japiassú, P. Demo e outros, rejeita essa crença na neutralidade da ciência como sendo um produto típico do cientificismo positivista. Argumentam os neoiluministas que, sendo a ciência um produto humano, ela jamais poderá deixar de ser perpassada por valores. Todo conhecimento é histórica e socialmente enraizado. Por isso mesmo, não pode existir neutralidade na ciência. Essa crítica neoiluminista, porém, permanece prisioneira da centralidade do sujeito, pois atribui a este a tarefa de superar os obstáculos postos pela intervenção de interesses sociais no processo de produção do conhecimento. Tratar-se-ia, em síntese, simplesmente, de evitar a ingenuidade elevando à consciência os interesses subjacentes ao conhecimento. Isto permitiria ao cientista compreender os condicionantes históricos e sociais do seu trabalho, o que seria suficiente para afastar qualquer veleidade de neutralidade científica. Mas, de que gênero são esses condicionantes históricos e sociais e quais os pressupostos para identificá-los, isto sempre fica a cargo do sujeito!

Na verdade, o neoiluminismo nada mais é do que a retomada, sob outras roupagens, das tentativas do historicismo alemão de superar a pretensa neutralidade da ciência afirmada pelo positivismo. Assim como o historicismo alemão, também o neoiluminismo se vê incapaz de fazer uma crítica acertada à problemática da neutralidade da ciência e de compreender corretamente a diferença entre neutralidade e objetividade. Isto porque ele permanece prisioneiro da perspectiva gnosiológica moderna, que vê no indivíduo o sujeito fundamental e único do conhecimento. Somente a perspectiva ontológica instaurada por Marx, ao constatar a íntima vinculação entre o conhecimento científico e as perspectivas de classe, permite equacionar de modo correto esta problemática.

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TONET, Ivo. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013, p. 109-110.
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