sábado, 28 de abril de 2018

A crítica de Lênin ao agnosticismo na física moderna


por György Lukács

Foi necessário colocar todas essas questões para chegar ao problema da dialética. Vimos com que vigor Lênin sublinha a importância do materialismo; seria entretanto totalmente falso concluir daí que despreza a dialética. Ao contrário: é o primeiro pensador revolucionário, depois de Marx e Engels, que soube dar um novo impulso ao estudo da dialética. O problema do primado gnosiológico da matéria apresenta-se nele sob um aspecto novo. O materialismo ocupa, com efeito, um lugar central na evolução atual do pensamento, precisamente porque o método dialético não poderia agora afirmar-se de outro modo a não ser sobre a base da ideologia materialista. A crise do idealismo exclui definitivamente, com efeito, a possibilidade de ver surgir no nosso tempo — guardadas todas as proporções — um Proclo, um Nicolau de Cusa, um Vico ou um Hegel.

Mas a vida não para; as ciências naturais prosseguem sua evolução, e os problemas sociais estão agora carregados de uma força da qual depende o futuro da humanidade. Esses processos continuam seu curso, sejam ou não adeptos do método dialético os pensadores da nossa época. A própria vida, a evolução da sociedade e da natureza são de caráter dialético e quanto mais nosso conhecimento as penetrar, quanto mais nossa evolução objetiva prosseguir, mais esse caráter se desvenda a nós. É assim que a ciência e, antes de tudo, a filosofia, acabam por se encontrar em face de problemas que não poderiam ignorar e que tomam um caráter dialético cada vez mais acentuado. A ciência e, em primeiro lugar, a filosofia, são entretanto incapazes de fornecer a essas questões dialéticas respostas que o sejam igualmente. O problema autêntico, frequentemente decisivo para o homem, recebe uma solução falsa, desfigurada, enganadora. A questão real, cuja resposta implicaria possibilidades grandiosas de progresso, torna-se assim uma arma a serviço da reação.
 
A grande subversão da física moderna, essa subversão cujo resultado concreto não se manifesta para nós senão há pouco, data, como se sabe, da primeira década do nosso século [XX]. Lênin logo reconheceu a importância dessa transformação do ponto de vista da filosofia, o que lhe permitiu fornecer imediatamente a resposta dialética ao problema igualmente dialético que essa transformação das ciências naturais tinha objetivamente colocado. Essa transformação manifestara-se, antes de mais nada, pela derrocada “brusca” de concepções consideradas inabaláveis há décadas e mesmo há séculos, sobre as qualidades e a estrutura da matéria. A dualidade clássica da matéria e da energia, da matéria e do movimento tornou-se “de repente” vacilante. A necessidade de noções físicas novas apresentava-se ao mesmo tempo motivada pela vontade de dar aos fenômenos que se acabava de descobrir, uma expressão adequada no plano do pensamento. Ora, a grande maioria dos físicos filósofos, como pensadores especializados em comentar a evolução das ciências naturais, recuava em desordem diante dessa questões, decididamente insolúveis, sem o recurso do método dialético. Essa fuga em pânico para o idealismo reacionário devia arrastar mesmo certos físicos que permaneceram no entanto materialistas nos seus trabalhos científicos.

A crise teórica das ciências da natureza apresentava-se de um lado sob o aspecto de uma crise de concepções estabelecidas e, de outro, — sobretudo no domínio especulativo — como crise do materialismo. A transformação da física significava, para alguns, o desaparecimento da matéria, e, portanto, a derrocada da ideologia materialista. Sabemos que essa crise da filosofia não deixou de causar estragos nos meios marxistas: mais ou menos em toda parte, na II Internacional, o materialismo perdia terreno, enquanto o revisionismo filosófico, o kantismo, a doutrina de Mach encontravam adeptos.

É ao longo dessa crise que Lênin soube aproveitar a fertilidade e a eficácia da ideologia materialista. Lênin via muito claramente que a subversão da física não tocava em nada as bases filosóficas do materialismo. Quando a física dá uma definição inteiramente nova da estrutura da matéria, é evidente que a filosofia materialista deve dela se aproveitar. Mas quaisquer que sejam as descobertas da física, qualquer que seja o conteúdo concreto das leis e das hipóteses que fundam, a única questão fundamental da teoria do conhecimento permanece inalterada. Eis o que diz Lênin a esse respeito:

O único ponto de vista justo, o do materialismo dialético, deve ser formulado assim: os elétrons, o éter e todo o resto existem ou não fora da consciência humana, enquanto realidade objetiva? É a essa questão que os cientistas devem responder sem hesitação e eles respondem sempre afirmativamente, da mesma forma que admitem a existência da natureza como anterior ao nascimento do homem e da matéria orgânica. A questão está assim decidida em favor do materialismo, pois, como já vimos, a noção de matéria nada mais significa, do ponto de vista da teoria do conhecimento, do que a realidade objetiva, cuja existência é independente da consciência humana e é refletida por esta.
 
No entanto, essa resposta justa e decisiva constitui para Lênin apenas um ponto de partida. Explicando a crise, analisa o idealismo reacionário ao qual dá origem e demonstra irrefutavelmente que as hipóteses novas que serão construídas sobre fenômenos novos não tocam em nada as bases da teoria do conhecimento materialista. Sublinha igualmente que crise da física é ao mesmo tempo a do antigo materialismo. Não é a matéria que desaparece, não é a categoria gnosiológica da matéria que muda, mas é o método teórico do materialismo mecanicista que desmorona por causa da incapacidade em apreender fenômenos novos de maneira adequada. As causa de sua falência são antes de mais nada a rigidez dogmática de suas categorias, a preponderância da doutrina mecanicista, a incompreensão do relativismo das teorias da ciência e, enfim, a ausência do método dialético. Lênin nos diz que
 
a física nova devia macular-se de idealismo, essencialmente porque os físicos ignoravam tudo da dialética. Combatiam o materialismo metafísico (na acepção engelsiana do termo e não dos positivistas, isto é, de Hume), e lutando contra seu caráter unilateral e mecanicista, terminaram por minar os fundamentos do materialismo. A negação da imutabilidade da estrutura e das qualidades até então conhecidas da matéria conduziu-os à negação da própria matéria, em outras palavras, à negação da realidade objetiva do mundo físico. A negação do caráter absoluto das leis fundamentais mais importantes levou-os a colocar em dúvida a existência de toda lei objetiva na natureza e declarar que as leis naturais eram simplesmente “convenções”, “necessidades lógicas” etc. Postulando o caráter aproximativo e relativo do conhecimento, foram levados a negar o objeto que existe independentemente do conhecimento, objeto que esse conhecimento reflete de uma maneira aproximativa e relativamente justa etc., etc.

Vemos portanto que é precisamente para defender o materialismo que Lênin dirige-se contra o materialismo antigo e que é ainda a defesa do materialismo que o leva a acentuar os problemas da dialética. Lênin ataca frontalmente esses problemas, colocando a questão da relatividade do conhecimento. O método dialético formula essa questão da maneira seguinte: como a relatividade do conhecimento — a das leis, teoremas etc. — pode constituir um elemento necessário, inelutável, do absoluto? Como ocorre que a relatividade do conhecimento não destrói a objetividade das leis e teoremas, assim como a objetividade e a permeabilidade ao conhecimento do mundo exterior?

Somente a dialética pode fornecer-nos a resposta a essa questão. Para todo pensamento mecanicista, metafísico ou atolado na lógica formal, a verdade não pode ser senão absoluta ou relativa. Não há transição: é preciso escolher entre os dois. O materialismo não-dialético não escapa também a essa alternativa. Ora, o relativismo e, com ele, o agnosticismo terminaram necessariamente por impor-se ao pensamento antidialético moderno porque a evolução das ciências e a evolução da própria vida impõe-nos a todo momento novas provas da relatividade dos fenômenos, assim como o conhecimento que temos deles.

A questão que Lênin põe, em presença da crise da física moderna e da falência do materialismo não-dialético, tem portanto um sentido bem mais profundo e mais geral que a ocasião que lhe serve de pretexto. Comentando a crise da física moderna, Lênin não se limita a fazer o processo do materialismo não-dialético, mas sublinha que o idealismo atual é incapaz de assimilar os fatos novos trazidos à luz pela evolução da ciência. Só a forma de sua falência é particular, porque resulta numa ideologia relativista, que aliás se afirmará ao longo da evolução do pensamento moderno. A título de exemplo, bastará evocar o papel da probabilidade no existencialismo francês.

À questão assim posta por Lênin, Hegel tinha já dado uma resposta dialética, declarando que o relativo era um componente, mas somente uma componente, da dialética. Em relação à totalidade, não se chega à negação da verdade objetiva, mas à definição histórica e gnosiológica da aproximação da verdade. Eis como Lênin expõe esse princípio:

Para o materialismo moderno, isto é, para o marxismo, somente os limites da aproximação da verdade objetiva são historicamente determinados, enquanto que a existência dessa verdade mesma é absoluta, tanto quanto nosso progresso em direção a ela... O que é historicamente determinado é a data e as circunstâncias da conclusão de nosso conhecimento da essência das coisas... mas o fato de que toda descoberta de tal natureza é um progresso do “conhecimento absolutamente objetivo”, é ele mesmo absoluto. Em suma, toda ideologia é historicamente determinada, mas é absoluto que toda ideologia científica corresponde uma verdade objetiva, isto é, um elemento da natureza absoluta. Objetar-me sem dúvida que essa distinção entre verdade relativa e verdade absoluta é bem vaga. Responderei a essa objeção dizendo que minha distinção é suficientemente vaga para impedir a transformação da ciência em dogma no sentido pejorativo da palavra, isto é, em uma coisa morta, rígida, petrificada, mas que é ao mesmo tempo suficientemente nítida para traçar, nítida e irrevogavelmente, a fronteira entre o fideísmo e o agnosticismo de um lado, o idealismo filosófico e os sofismas dos discípulos de Kant e de Hume, de outro.

Somente o materialismo dialético pode chegar a essa concepção, flexível e intransigente ao mesmo tempo, da relatividade enquanto momento do absoluto. Sua fé no Weltgeist autorizava a Hegel uma convicção tão profunda na existência objetiva e na inteligibilidade do mundo exterior, que pode perfeitamente conceber a relatividade enquanto momento, sem cair no relativismo. Em Hegel, esse reconhecimento da natureza dialética da realidade roça mais uma vez, aliás, o limite da dialética materialista. O idealismo atual ao contrário, quando tenta ultrapassar o agnosticismo puro ou o solipsismo, só pode perder-se em mitos sem fundamento, frequentemente demagógicos, ou então elaborar pensamentos, ideais e experiências vividas que não pertencem a ninguém e que são tidas como “elementos comuns” ao mundo objetivo e ao mundo subjetivo. Para a filosofia moderna. a escolha está portanto limitada entre um mito confessado e o mito que procura esconder-se. Mas permanece fatalmente anticientífica e antiprogressista, porque, suas sínteses fundam-se apenas num único elemento.

O pensamento que se constrói sobre tais bases não poderia ser dialético. Se bem que idealista, o pensamento de Hegel era dialético, mesmo que seu Weltgeist abarcasse, ainda que sob um aspecto mitificado, o conjunto da natureza e da sociedade, como também a história desta. Além disso, a concepção hegeliana não era dogmática e rígida, mas sim a representação móvel do processo universal da vida, renovando-se sem cessar pela morte.

Uma tal concepção é impossível para o “terceiro caminho” do idealismo moderno. Não é por acaso que a revolução de 1848 marca o término da crise da filosofia hegeliana, à qual deveriam suceder diversas variantes do materialismo mecanicista e do idealismo subjetivo, muito diferentes entre si mas todas igualmente antidialéticas. Não é por acaso que essa época vive também o apogeu da influência de Schopenhauer, que qualificava a dialética de “delírio”. Enfim, não é por acaso que Kierkegaard, o adversário mais intransigente da dialética hegeliana, torna-se o pensador em moda nos anos que deveriam preceder o advento do fascismo. Essas poucas considerações bastam sem dúvida para indicar quão intransponível é o abismo entre o materialismo dialético e todas as outras correntes do pensamento no estágio do imperialismo. É aliás precisamente a consciência dessa contradição irreconciliável que explica o vigor decisivo da argumentação, nos escritos filosóficos de Lênin. Lênin via acertadamente, desde o início, o que se preparava; sabia que todas essas teorias distintas, redigidas numa linguagem completamente inacessível à média das pessoas, forjariam as armas filosóficas, políticas e sociais da reação mundial.

Lênin sabia, como grande pensador dialético, extrair o lado positivo deste conjunto de fatos negativos. Assim como as leis da dialética ensinam, a negação é a força motriz do progresso. É evidente que não falamos das teorias reacionárias e dos mitos, mas dos próprios fenômenos, que fundam estas visões do espírito. A negação fértil, força motriz do progresso, reside sempre nas questões e não nas respostas. Ora, no caso de que nos ocupamos, trata-se da crise física e da derrocada da antiga noção da matéria. Lênin combatia os comentadores idealistas desse fenômeno e estudava com interesse e compreensão o próprio fenômeno, tal como se manifestava na crise das ciências naturais. Também devia ele compreender que a derrocada das concepções do materialismo mecanicista marcava precisamente o momento do nascimento da concepção nova do materialismo dialético. “A física moderna, escreve, está em vias de dar à luz o materialismo dialético”. Citamos acima a crítica leninista das concepções de Plekhanov sobre a história da filosofia. Aqui, Lênin não se contenta em exercer uma crítica. Por sua própria ação prática, opôs sua concepção verdadeiramente marxista do progresso ideológico da humanidade à imagem desfigurada e grosseira que o materialismo mecanicista fez dele.

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LUKÁCS, G. Existencialismo ou marxismo? Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Ciências Humanas, 1979, pp .219-228.
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