sexta-feira, 14 de julho de 2017

A miopia agnóstica de Popper contra Darwin e Marx



Metafísica descontinuísta da ciência

Não é o lugar aqui para me alongar na crítica da filosofia da ciência de Sir Karl Popper. Ele mantém as premissas neopositivistas de que “causas” e “leis” são meras construções lógicas que não se referem à realidade em si, mas recusa o “princípio da verificação” das hipóteses científicas por via indutiva do empirismo lógico (Shilick, Carnap, Heichenbach) como critério para distinguir a ciência da pseudociência. Popper propõe um esquema de procedimentos dedutivos que oriente a refutação das teorias: “deve ser tomado como critério de demarcação não a verificabilidade, mas a falseabilidade”. Em escritos no contexto da Guerra Fria, Popper ataca o marxismo como um mito inimigo da “sociedade aberta” (que para ele e seus amigos neoliberais tem que ficar dentro dos muros do capitalismo) e como “profecia historicista”. A leitura destes livros demonstra a profunda incompetência de Popper para compreender o pensamento dialético em geral e uma total incompreensão, em particular, acerca das concepções teóricas e do dinamismo interno da estrutura de pensamento de Marx. Quem não consegue compreender não é capaz de uma crítica efetiva, é incapaz de superar ou ir além.

Em Conjecturas e refutações — onde defende o método que prevê a cada falsificação empírica singular ou a cada incoerência lógica uma recusa de todo o conjunto de hipóteses teóricas e sua substituição por conjecturas novas — Popper volta a atacar Marx como um religioso que deifica a história e apresenta “profecias como as do velho testamento” e não “predições científicas”, porque estas teriam que ser “condicionais”, do tipo: “determinadas alterações (por exemplo, a mudança da temperatura da água numa chaleira) serão acompanhadas por outras modificações (como a fervura da água)”. Aí temos a reafirmação da concepção neopositivista de ciência — restrita a “sistemas estacionários e recorrentes” — que desqualifica qualquer lei histórica (inclusive as da teoria da evolução de Darwin) e sequer compreende o conhecimento dialético da história concreta (em que o complexo é reconstruído na sua manifestação atual, gênese e devir tendencial).

Já a aplicação do modelo popperiano de “refutações” é unilateralmente descontinuísta (remete à metafísica de Hume) e impossibilitaria todo progresso efetivo na sistematização do conhecimento; pois uma teoria científica deve ser julgada pela fertilidade a longo prazo do núcleo duro de seu programa de investigação, mais do que pela refutação de algum erro factual ou inconsistência singular.

Ainda assim, deve-se dizer que as leis histórico-ontológicas expostas nas obras de Marx são sempre condicionadas: são ligações internas e necessárias dos complexos fenomênicos, mas sua necessidade é tendencial e histórica; desde sua obra juvenil sobre Epicuro, Marx afirma a objetividade do acaso e recusa qualquer dogmatismo racionalista; para ele a necessidade existe só na forma “se é isto, então será aquilo”.

Seria algo bastante simples “refutar” as teorias de Marx se a experiência histórica concreta mostrasse, por exemplo, que: na medida em que se desenvolve a indústria capitalista ela depende menos da tecnologia e o capital fica menos concentrado e centralizado; que a parte do salário destinada a adquirir mercadorias diminui e aumenta a parte do salário destinada a adquirir os próprios meios de produção, permitindo que mais e mais trabalhadores se tornem donos das fábricas; se com o desenvolvimento do capitalismo diminuíssem as desigualdades sociais; se, além disso, transcorressem décadas sem crises econômicas e desaparecessem as contradições entre capital e trabalho. Então as predições de Marx estariam refutadas. É evidente que não foi esta a história real do capitalismo desde 1867, pelo contrário, as leis tendenciais de movimento que Marx descobriu estão sendo comprovadas pela experiência histórica.

Geraldo Barbosa, Atualidade de Marx e crise do capitalismo.
In: Voz Operária, entrevista, abril, 2011.

Racionalismo formal e necessidade religiosa

O neopositivismo [e toda a tradição do racionalismo formal] não leva em conta, diretamente, as necessidades religiosas, sendo mesmo possível afirmar que sua mais profunda tendência consiste em ignorar por completo tudo aquilo que não pode encontrar expressão adequada na “linguagem” da ciência por ele semanticamente depurada. Porém, de tal regulamentação da linguagem pode, no máximo, resultar que uma série de problemas com os quais a filosofia se ocupou até o presente fique excluída do âmbito dessa regulamentação e, desse modo — da óptica neopositivista — deixe de pertencer à série de problemas científicos. Com isso, no entanto, nada se diz nem a favor nem contra as necessidades religiosas. Portanto, quando os representantes espirituais das necessidades religiosas referem-se a determinados resultados da filosofia neopositivista, isso não implica necessariamente uma concordância com as intenções desta última, mas tão somente a utilização de seus resultados.
 
[...] Quando a ciência e a filosofia científica, pela eliminação de toda problemática ontológica de seu âmbito, provocam o renascimento da dupla verdade, a científica e a metafísica (assim o neopositivismo designa todo problema ontológico), a religião fica livre para preencher esse espaço como bem entender e puder.
 
György Lukács, Para uma ontologia do ser social I.
São Paulo: Boitempo, 2012, p. 51-52.

Empirismo camuflado 
 
Consideremos a mais conhecida tese de Popper: a ciência não procede por “indução” — isto é, encontrando instâncias confirmativas de uma conjectura, mas antes falsificando conjecturas arriscadas e atrevidas. A confirmação, argu­mentou, é lenta e nunca é certa. Por contraste, uma falsificação pode ser súbita e definitiva. Além do mais, encontra-se no coração do método científico.

Um exemplo familiar de falsificação liga-se à asserção de que todos os cor­vos são pretos. Sempre que se encontra um novo corvo preto confirma-se obviamente a teoria, mas há sempre a possibilidade de que apareça um corvo não preto. Se tal acontece, a conjectura é imediatamente desacreditada. Quanto mais vezes uma conjectura enfrentar os esforços para a falsificar, afir­mou Popper, maior se torna a sua “corroboração”, todavia, a corroboração é também incerta e não pode nunca quantificar-se o seu grau de probabilidade. Os críticos de Popper insistem em que “a corroboração” é uma forma de indução, e que Popper simplesmente introduziu à sorrelfa a indução pela porta das traseiras dando-lhe um novo nome. A questão famosa de David Hume era “Como é que a indução pode ser justificada?” Não pode, disse Popper, porque tal coisa como a indução não existe!

Há muitas objeções a esta afirmação assombrosa. Uma é a de que as fal­sificações são muito mais raras em ciência do que a procura de instâncias confirmativas. Os astrônomos procuram por sinais de água em Marte. Não pensam que estão a fazer esforços para falsificar a conjectura de que Marte nunca teve água. [...]
 
Popper reconheceu — mas descartou como não sendo importante — que a falsificação de uma conjectura é simultaneamente a confirmação de uma conjectura oposta e que cada instância confirmativa de uma conjectura é uma falsificação de uma conjectura oposta. [...] 

Para os cientistas e filósofos estranhos à confraria popperiana, a ciência opera principalmente por indução (confirmação) e também e menos frequentemente por desconfirmação (falsificação). A sua linguagem é quase sempre a da indução. Se Popper aposta num certo cavalo para ganhar uma corrida e o cavalo ganha, não é de esperar que grite, “Boa, o meu cavalo não conseguiu perder”. 

Os astrônomos estão agora a encontrar evidência constringente de que planetas mais [“maiores”?: trad. errada?] e mais pequenos orbitam sóis distantes. Seguramente esta é evidência indutiva de que pode haver planetas do tamanho da Terra mais além. Porquê preocupar-se em dizer, cada vez que um novo e mais pequeno planeta é descoberto, que tende a falsificar a conjectura de que não há plane­tas pequenos [“maiores”, ou “não pequenos”, como a Terra?: trad. errada?] para além do nosso sistema solar? Porquê arranhar a orelha esquerda com a mão direita? [...] 

Ernest Nagel, famoso professor de Filosofia da Ciência da Universidade de Columbia, na sua Teleology Revisited and Other Essays in the Philosophy and History of Science (1979), resumiu o assunto deste modo: “A con­cepção de Popper acerca do papel da falsificação... é uma sobressimplificação que está perto da caricatura dos procedimentos científicos”.

Para Popper, aquilo que o seu principal rival Rudolf Carnap designava por um “grau de confirmação” — uma relação lógica entre uma conjectura e toda a evidência relevante — é um conceito inútil. Em vez disso, como referi anteriormente, quanto mais testes de falsificação uma teoria passar, mais ela ganha em corroboração. É como se alguém declarasse que a dedução não existe, mas que, certamente, algumas afirmações podem implicar logica­mente outras afirmações. Vamos inventar um novo termo para dedução, tal como “inferência justificada”. Popper não discordava assim tanto de Carnap e de outros indutivistas, de modo que reformulou as suas ideias numa termi­nologia bizarra e esotérica.

Martin Gardner, A Sceptical Look at Karl Popper 
(Traduzido e adaptado por Pedro Mota).
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