terça-feira, 12 de setembro de 2017

Sobre o ontologismo de Nicolai Hartmann

A conquista terrenal de Nicolai Hartmann

A sobriedade e a sensatez de Hartmann evidenciam-se já no modo como ele levanta a pergunta pelo conhecimento ontológico. Enquanto as questões ontológicas tradicionais por séculos tiveram caráter essencialmente teológico (ou eram expressão de uma teologia secularizada, como pudemos observar no caso de Heidegger), em Hartmann o ponto de partida e o de chegada eram totalmente terrenais. Se a ontologia quiser desempenhar um papel filosoficamente fundamentado no âmbito atual do conhecimento, deve aflorar da vida, da vida cotidiana das pessoas; ela jamais poderá perder essa conexão com os modos elementares da existência, caso queira permanecer apta a ser ouvida como voz crítica sóbria também e justamente nos casos em que são verbalizadas as questões mais complexas e sutis do conhecimento. Para Hartmann, portanto, a ontologia não é o resultado final metafísico da filosofia, o que ela ainda era nos séculos XVII e XVIII; pelo contrário, ela é, muito antes, a base da filosofia do lado da realidade e de, modo correspondente, a instância de controle permanente de todo e qualquer conhecimento humano ou atividade humana, ou seja, justamente o critério para ver como seus resultados se posicionam diante da própria realidade, o quanto seus métodos são apropriados para estabelecer a conexão com a realidade. Desse modo, a virada ontológica da filosofia, na medida em que é autêntica, como em Hartmann, e não um complemento irracionalista-subjetivista à postura epistemológica dos séculos XIX e XX, como na fenomenologia, constitui um ataque frontal ao antiontologismo do primado da teoria do conhecimento, que atingiu em Kant a sua forma clássica mais influente. Por essa razão, o contraste não foi reduzido apenas à questão de se o lugar da filosófico central seria ocupado pela ontologia ou pela teoria conhecimento, mas também se o ponto de partida seria de "cima" ou de "baixo".

György Lukács, Para uma ontologia do ser social I.
Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider.
São Paulo: Boitempo, 2012, p.132-133.

A insuficiência dialética de Nicolai Hartmann

Em nossa crítica, estivemos empenhados em analisar concretamente o concreto e, quando necessário, refutá-lo concretamente. Porém, ao concluirmos tais considerações, é preciso dizer o seguinte: as limitações de Hartmann estão essencialmente ligadas ao fato de ele evitar com certo receio os problemas manifestamente dialéticos. Sendo um observador lúcido e imparcial da realidade, é natural que ele seja reiteradamente confrontado com constelações dialéticas. Mas se desvia da sua essência dialética, refugiando-se na dialética de Aristóteles e limitando-se a falar de aporias sempre que problemas dialéticos exigem uma solução dialética. Naturalmente que Hartmann conhece Hegel, pois escreveu um livro inteiro sobre ele. Porém, é bem característico de Hartmann o modo como ele se posiciona, nesse livro, sobre o método dialético:
Evidentemente existe uma aptidão singularmente dialética, que ganha forma, mas não pode ser apreendida. Ela consiste num tipo bem próprio, originário, de visão interior, que não pode ser derivada de nenhuma outra coisa, mais exatamente, uma visão inteiramente conspectiva, que, avançando pelos nexos do objeto, visualiza-os sempre a partir de diversos aspectos simultaneamente e, em consequência, cintilante de contradições, e, apesar disso, vê também o contraditório em sua ligação com a unidade, ligação que é característica do objeto. É digno de nota que nem mesmo os cérebros dialéticos logrem desvendar o mistério da dialética. Eles possuem e manejam muito bem o método, mas não são capazes de nos revelas como fazem isso. Eles próprios, pelo visto, não sabem. Ocorre o mesmo que no processo de criação do artista.
György Lukács, Para uma ontologia do ser social I.
Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider.
São Paulo: Boitempo, 2012, p.180.


O materialismo inteligente de Nicolai Hartmann

É por exemplo bastante chocante ver que ele [Lukács] tenha escolhido por epígrafe do capítulo sobre Hartmann uma fórmula bem conhecida de Lênin, extraída dos Cadernos filosóficos: “O idealismo inteligente está muito mais próximo do materialismo inteligente do que o materialismo tacanho”. Lukács pensava assim prestar homenagem ao pensamento de Hartmann, indicando a proximidade de alguns de seus pontos de vista sobre o materialismo ontológico do marxismo, mas relegava Hartmann ao idealismo, “inteligente” evidentemente, mas ainda assim idealismo.

Ora, se há no século XX um pensador que, nos campos da ontologia e da gnosiologia, desenvolveu uma crítica implacável do idealismo filosófico, desvelando sem concessões as raízes mesmas de seus erros e perseguindo-o até os últimos redutos, é exatamente Nicolai Hartmann. Já no início dos anos 1920, Paul Natorp exprimia numa carta sua surpresa de ver o jovem filósofo – que ele considerava até então como pertencendo ao círculo da Escola de Marburgo – questionar sua teoria “idealista” do conhecimento como “subjetivista”.
  
Nicolas Tertulian, "Nicolai Hartmann e Georg Lukács: uma aliança fecunda".
In: Crítica Marxista, n. 32, p. 9-32, 2011.

= = =

Nenhum comentário:

Postar um comentário