por Henri Lefebvre
Poder-se-á, contudo, apresentar a seguinte objeção: o próprio materialismo é uma metafísica, não
do espírito ou da ideia, mas da matéria.
Ele admite uma realidade absoluta; aceita o impensável, o inconcebível,
uma “coisa em si”: a matéria situada fora da consciência e da
experiência, até mesmo do conhecimento. Como os metafísicos e os
místicos, os materialistas saltam no desconhecido, admitindo a
existência de algo na outra margem, além dos limites do conhecido.
Reconhecendo nossas sensações como a única fonte de nossos
conhecimentos, os materialistas não se atêm a sensações efetivamente
experimentadas, aos “fenômenos”; admitem a “coisa em si” (expressão
kantiana que designa a realidade absoluta), duplicando assim o mundo dos
fenômenos através de um mundo absolutamente real e verdadeiro.
Essa crítica atinge um tipo de materialismo hoje ultrapassado: o atomismo, o mecanicismo.
O atomismo de Epicuro e de Lucrécio leva em conta certas propriedades
simples dos objetos materiais — a dureza, a elasticidade — e os eleva ao
absoluto, definindo através deles uma matéria eterna. Segundo esses
dois pensadores, o mundo se forma pela aglomeração instável de pequenos
corpos, os átomos, que são os elementos últimos, irredutíveis, simples,
do universo material.
Quando o materialismo afirma, com Karl Vogt, que o “o pensamento tem com
o cérebro a mesma relação que a bílis com o fígado”; ou, com certas
escolas de psicologia, que a consciência é “epifenômeno” sem eficácia e
que somos “autômatos conscientes” (Huxley); esse materialismo nega uma
parte da realidade e sua história biológica e social;
leva ao absoluto um fato fisiológico: a secreção, o reflexo.
O materialismo metafísico envolve-se em contradições. Para
explicar como os átomos inertes podem entrar em movimento e se prenderem
uns nos outros, os atomistas da antiguidade viram-se forçados a
complicar a hipótese, atribuindo aos átomos formas variadas e
emprestando-lhes uma força misteriosa capaz de desviá-los dos trajetos
verticais e paralelos a que seriam levados pela simples ação do peso
(teoria do “
clinamen”).
A escola do materialismo “epifenomenista” chega a afirmar que, sem a
consciência, os seres humanos — através tão-somente dos seus reflexos e
comportamentos automáticos — continuariam a realizar as mesmas ações; e
que, mesmo sem consciência, automaticamente, Descartes teria escrito
“penso, logo sou”.
[1]
A essas sutilezas grosseiras, correspondem as sutilezas igualmente
grosseiras do idealismo. Bergson chega a provar (no início de Matière et Mémoire)
que o mundo é apenas um conjunto de “imagens” e que o próprio cérebro
não é mais que uma “imagem” — embora, na verdade, uma imagem
“privilegiada”. Afirmar que o cérebro é condição do pensamento, diz
Bergson[2], significaria que “a parte é o todo”.
Parece até que, quando um traumatismo atinge gravemente ou destrói o
cérebro de um homem, é apenas uma pequena parte de suas “imagens” que
desaparece!
O idealismo contemporâneo, notadamente com Bergson, obstina-se em replicar o materialismo que:
... temos certeza imediata apenas da ideia, seja da ideia do pensamento ou
das coisas corporais. Mas... a ideia das coisas corporais não pode por
si mesma atingir um objeto que, caso exista, está além dela e cuja
existência, por conseguinte, é um problema.[3]
Essa metafísica idealista corresponde a uma afirmação — e a uma
“experiência” — do caráter subjetivo da consciência, concebida como um
“eu” fechado em si mesmo; ora, mostramos como esse “eu” não é mais que o
“eu” do intelectual separado da vida prática, efetivamente fechado em
si mesmo. O idealismo leva ao absoluto uma pequena experiência humana
muito suspeita, ou seja, a consciência puramente subjetiva.
O materialismo vulgar responde negando o “eu”, a consciência, a
atividade humana; levando ao absoluto constatações de detalhe (por
exemplo, os reflexos), sai desse círculo vicioso da consciência, mas
para renunciar à consciência, que, na opinião dele, continua a ser um
círculo vicioso!
Por essas razões, tal materialismo conserva-se brutalmente
“mecanicista”; aplica aos processos da natureza química e orgânica
tão-somente os métodos de exploração e explicação mecânicos. Assim, leva
em consideração apenas as propriedades mais elementares — e, portanto
num certo sentido, as mais abstratas — da natureza material. Negligencia
a variedade inumerável das formas de energia e de potência criadora na
natureza; e, além disso, deixa de lado todos os processos históricos, a
história humana e mesmo a história da natureza, naquilo que essa tem de
complexo e de evolutivo. Por isso, o idealismo conservou até bem pouco
tempo uma espécie de monopólio efetivo no que se refere à teoria do
pensamento e ao conhecimento da sociedade; tão-só ele — à sua maneira —
abordava os problemas respectivos a essas áreas, que eram negligenciados
ou tratados superficialmente pelo materialismo mecanicista.
O pensamento oscilava incessantemente entre essas duas variedades de
metafísica, o idealismo e o materialismo, desencorajado por seus
paradoxos e contradições, indo de um suicídio pela negação idealista de
mundo, sem motivo para se fixar, ora seduzido pelo encantamento
idealista, ora atraído pelo realismo materialista.
O materialismo moderno ultrapassa resolutamente essas controvérsias estéreis, porque as define como uma posição
no interior da metafísica; e ultrapassa resolutamente os “problemas” metafísicos.
A única propriedade atribuível
filosoficamente (na teoria do
conhecimento) à “matéria” e cuja admissão define o materialismo moderno é
o fato de existir fora de nossa consciência, sem nós, antes de nós —
qualquer que seja essa existência.
Um “sistema” fechado da natureza, que pretendesse abarcar e definir tudo, notadamente a “matéria”, é incompatível com esta lei: o conhecimento humano progride da ignorância à ciência. Um sistema desse tipo, pretendendo fechar o saber, paralisa o trabalho da ciência. Ora, a ciência da natureza — e somente ela — descobre pouco a pouco o que é esse existência “material”, essa realidade objetiva; e a descobre progressivamente: certas descobertas inauguram períodos novos do saber e nos obrigam a revisar todas as nossas velhas ideias. Quaisquer que sejam as transformações da ciência da natureza, mantém-se o fato de que ela conhece uma natureza!
Cada época deve esforçar-se por organizar, sistematizar numa “síntese”, o conjunto dos conhecimentos sobre a natureza. Mas nenhuma dessas sínteses pode se pretender definitiva.